sábado, 30 de maio de 2009

Martha Medeiros


aceito flores, beijos e anéis
a contragosto e em último caso, motéis

mas não me venha com suíte
que romantismo tem limite

sexta-feira, 29 de maio de 2009

As horas felizes de Lygia


Para o escritor, jornalista e crítico José Castello, colunista do Prosa & Verso, os livros de Lygia Fagundes Telles revelam uma "procura intensa da felicidade por entre as fendas de dor". No texto abaixo, publicado no Prosa & Verso deste sábado, Castello desvenda um pouco mais da obra de Lygia falando de seus livros e lembrando histórias da escritora, que também ajudam a entender o fio da meada de sua literatura. Lygia Fagundes Telles costuma recordar uma frase que leu no mostrador de um relógio de praça, em Paris: “Horas non numero nisi serenas” (“Conto somente as horas felizes”). A máxima estabelece uma difícil noção de felicidade: a que carrega em seu fundo a infelicidade. O importante, sugere, é, mesmo sem negá-la, não se submeter à infelicidade. Saltar sobre elas, e fixar-se nas horas felizes. Momentos que, para Lygia, tomam corpo na literatura.
Agora que sua obra recebe uma edição de luxo com o selo da Companhia das Letras — o lançamento no Rio será na próxima quinta-feira, dia 28, na Academia Brasileira de Letras — a frase volta a se oferecer como guia para seus leitores. Seus livros são uma procura intensa da felicidade por entre as fendas de dor. Nessa luta, o escritor conta com a sensibilidade. Como escreve Ananta Medrado, personagem do romance “As horas nuas”, de 1989: “Eu me aproximo das pessoas como um ladrão que se aproxima de um cofre, os dedos limados, aguçados, para descobrir, tateantes, o segredo.” Para Lygia, o escritor precisa cultivar três atributos: a insatisfação, a percepção e a intuição. Dito de outro modo: nenhum escritor vive sem sua fome, seu faro e seus arrepios. Compara os escritores aos gatos, animais pelos quais é apaixonada. Não há outra maneira de avançar por entre os escombros da realidade: pisando levemente. A própria vida de Lygia está cheia de momentos em que a invenção e a alegria brotaram da dor.
Ano de 1971, plena ditadura militar. Lygia rascunha as primeiras páginas de “As meninas” — um dos três primeiros livros agora reeditados. Começa seus relatos tateando no escuro; a luz vem de onde menos ela espera e pode, até, vir das trevas. O porteiro a interrompe trazendo a correspondência. Entre as cartas, um panfleto anônimo. Impresso em um mimeógrafo, com rasuras e borrões, ele relata a tortura de um preso político.
Trêmula, Lygia o mostra ao marido, Paulo Emílio Salles Gomes. “O que faço com isso?”, pergunta. “Aproveite em seu romance”, ele sugere. “É arriscado, mas acho que vale o risco”. Nesse momento nasceu Lia, a “subversiva”, que, ao lado da “burguesa” Lorena e da “drogada” Ana Clara, protagonizam “As meninas”. Moças de seu tempo, sempre em combate contra os limites estreitos da realidade. Surgia, em particular, a dolorosa narrativa de uma tortura, que se estende por duas páginas do romance (148 e 149). Depois de redigir a cena, Lygia a mostrou a Paulo. “Está ótimo. Perigoso, mas ótimo”, ele disse. Vendo o terror estampado em seus olhos, procurou tranquilizá-la: “Caso você venha a ser interrogada, dirá simplesmente que não pode responder pelas suas personagens, que são livres, completamente livres”.
Dois anos depois, a crítica recebeu “As meninas” com grande entusiasmo. As posições se inverteram: Lygia não cabia em si de alegria, mas Paulo, agora, andava preocupado. Um dia, porém, chegou rindo em casa. Tinha um amigo que era próximo aos homens da censura política. Através dele, soube que o censor encarregado de ler “As meninas” não conseguiu passar da página 40. “Ele achou tudo muito chato”. A preguiça intelectual o fez largar o livro 108 páginas antes daquele que é, talvez, seu momento mais forte. “Você escapou!”
Uma apreciação sutil veio, pouco depois, do poeta Carlos Drummond de Andrade: “Que matéria viva e lancinante”, escreveu. Em “As meninas”, como em suas outras narrativas, Lygia não se limita a narrar a realidade brutal. Frequenta, também, zonas escuras que a carregam para além das circunstâncias. Aos que lhe perguntam sobre o que busca quando escreve, costuma responder com uma ideia do filósofo Henri Bergson: “Nunca saberemos até que ponto vamos atingir, se não nos pusermos imediatamente a caminho”. Se o escritor é um peregrino da realidade, nos mostra Lygia, ele é também alguém que não dispõe de uma bússola e que só conta consigo mesmo. Ou, com aquilo que Bergson chamava de intuição, força inexplicável que nos carrega para o coração das coisas. A literatura se transforma, assim, em uma procura. Segue os versos célebres de Carlos Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Lygia Fagundes Telles é uma leitora apaixonada de Drummond. Agarra-se a momentos assim: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”. Lygia sempre leu mais poesia que prosa. É não só uma escritora intimista, mas uma miniaturista, que se apega às miudezas do humano — pequenas partes que, uma vez retiradas, porém, tornam o humano, desumano. A literatura é um instrumento para esmiuçar o mundo. Esse gosto pelo menor, muitas vezes, é entendido como perversidade. Nada a faz, porém, perder a elegância. Em certo jantar, em São Paulo, ouviu de Jorge Luis Borges uma revelação. “Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar”. Gosta de repetir a frase espantosa, mas sempre esconde o nome do amigo misterioso de Borges. “No exato momento em que Borges mencionou seu nome, alguém deixou cair uma taça, e não consegui ouvir”, explica.
O nome perdido do amigo de Borges é o ponto zero — ponto morto — sobre a qual ela tece seus escritos. Voltemos a “As meninas”: romance solar, forte retrato de uma época. Muito bem. Mas quando o leitor resolve procurar em qual das três protagonistas Lygia se esconde, nada acha. Lygia não é nenhuma delas, mas um rombo — um zero — que entre elas se abre. Zero que sustenta a escrita. O zero é um número que não tem nuances; é um número desumano ou, com outras palavras, é um ralo pelo qual o humano escorre. É sobre esse abismo que Lygia escreve.
Uma de suas personagens, Lorena, resume a visão de mundo dominante em sua literatura: “No fundo somos todos um pouco loucos”. Isto é: não somos intercambiáveis. Seus personagens não escapam da perplexidade e, por isso, parecem estranhos. Lygia trabalha em um mundo intermediado pelas sombras e pelos meios tons, em que a nitidez é uma mentira. Nada mais opressor que uma imagem nítida; elas estão banidas de seus livros. Era nisso, por certo, que o crítico Otto Maria Carpeaux pensava quando falou da “delicadeza atmosférica” de Lygia.
Quando visitou São Paulo, no início dos anos 50, o escritor William Faulkner passou a maior parte do tempo alcoolizado. “Ele nunca sabia onde estava, olhava para nós como se estivesse submergindo”, Lygia — leitora apaixonada de Faulkner — descreveu depois. Certa tarde, ela o acompanhou a uma visita ao Butantã. Depois de cumprimentá-la, Faulkner, muito sereno, perguntou: “Isso aqui é Chicago?” Com a placidez dos monges, Lygia respondeu: “Não, Sr. Faulkner, estamos em São Paulo, Brasil”. Recorda ainda hoje seu olhar de espanto. Pouco depois, Faulkner se virou e disse: “Você tem lindos olhos”. Sempre irônico, o escritor Mário da Silva Brito, que os acompanhava, resmungou nos ouvidos da amiga: “Não esqueça de colocar esse comentário na orelha de seu próximo livro. É o único comentário que Faulkner conseguiu fazer a respeito da literatura brasileira”. Lygia riu, mas estava em outra sintonia. Aquele instável Faulkner confirmava toda a grandeza que dele se esperava. As zonas de mistério são, por definição, o cenário de suas narrativas. Não cede, po$ém, à sedução do fantástico, ou do espantoso. Para Lygia, o mistério — como em Julio Cortázar, com quem tem um vínculo secreto — se esconde nas pequenas coisas, nas insignificâncias. O surpreendente não é que existam extraterrestres, ou vampiros. O surpreendente, como já disse, é que, na Pérsia, todos os gatos sejam persas.
Escreve por impulsos — sente-se impelida a trilhar certa direção e simplesmente avança. A intuição a governa. Certa vez, durante um voo da Cidade do México a Paris, o avião enfrentou uma fortíssima tempestade. Naquele avião que sacolejava, ela se sentiu como se estivesse escrevendo. “Não sei o que há lá fora. Não sei o que vai acontecer. Eu me entrego”, resumiu depois. Não escreve para chegar a esse, ou àquele lugar. Gosta de uma reflexão de Cortázar: “Um livro é um gato. Você o joga para o alto e do jeito que ele cair, caiu”.
(http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/)

Lígia Fagundes Telles


Posso dizer que conheço a obra de Lígia,li tudo que ela publicou.É uma das minhas autoras preferidas,meu maior sonho é conhecê-la pessoalmente,temo que esse sonho não vá se concretizar,pela idade,pela geografia,ela já velhinha não tem como vir a Natal e me parece que tem circulado pouco,evita sair de casa.Concedeu essa excelente entrevista ao "prosa e verso",um deleite que dispobilizo aqui: Aos 86 anos, Lygia Fagundes Telles inicia, com “As meninas”, “Antes do Baile Verde” e “Invenção e memória” o relançamento de seus livros por uma nova editora, a Companhia das Letras. A escritora conta que sua “separação” com a editora anterior, a Rocco, foi cordial, mas se revela encantada com a nova parceria. “É uma espécie de renascimento da minha obra. Estou renascendo junto. A impressão que tenho é que acabei de escrever estes livros. Estou oferecendo ao leitor frutos renovados”. Lygia falou ao GLOBO em sua casa, em São Paulo e, numa conversa pontuada pela emoção, contou sobre seus planos para um novo livro, as dificuldades em ser uma pioneira na literatura brasileira e sobre seu processo de criação. (Foto de Anderson Prado/Diário de S. Paulo)


A senhora fala de seu ofício como uma missão e deseja transmitir uma mensagem a seus leitores. Qual seria esta missão, esta mensagem? Quero passar para o próximo esperança. Eu acredito muito nas três virtudes teológicas: a fé, a esperança e a caridade. Então, procuro passar o sonho para o próximo. O escritor, pelo menos o da minha linha, pode ser corrompido, mas não corrompe o leitor. O escritor pode ser louco, mas não enlouquece o leitor. Ao contrário, pode afastá-lo da loucura. O escritor pode ser triste, solitário, mas vai acompanhar o leitor que está na solidão. Quero dizer que o escritor tem sim uma missão mais profunda do que esta coisa superficial, como é tomada no Brasil.
Qual sua relação com os leitores? O leitor não é meu parceiro, é meu cúmplice. Ele vem, toma satisfações, conversa comigo. Outro dia, andando na rua, veio uma senhora e perguntou: “A senhora é Dona Lygia? A senhora escreveu um livro chamado ‘Meus contos preferidos’. Mas a senhora não pôs aquele conto, ‘A confissão de Leontina’. Esse conto é o melhor que a senhora escreveu. A senhora não sabe seus contos melhores”. Ao que respondi: “desculpe”. Meu cúmplice veio tomar satisfações. Depois, em uma universidade, eu estava falando e vi que o pessoal estava desatento. Aí disse: “olha, não sei o que estou fazendo aqui, isso é uma loucura. Vocês gostam de futebol, de balada. Agora, de escritor brasileiro, zero”. Quando fui dar autógrafos, chegou um rapaz cabeludo e me atirou um bilhete. Ainda perguntei se queria uma dedicatória e ele respondeu que não, era só para eu ler o bilhete. Chegando em casa fui ler, estava escrito assim: “não é loucura não. Alguns contos seus já me afastaram do desespero”. Guardo até hoje este bilhete.
Além das revisões das obras relançadas, está trabalhando em um novo romance? Estou pensando em um novo romance sim, antes de ir embora. Ainda não dá para contar nada. Escrevo tudo na cabeça, depois passo para o papel. É meu processo de criação. E neste romance quero me despedir.
A senhora é religiosa? Acredito em Deus. Não frequento igreja, mas amo meus anjos e santos. Tenho muita fé. Acho que além dessa nossa passagem aqui, há alguma além. Acredito muito em Cristo, nesta certeza de que há algo além da morte. Não sei bem como é, mas existe sim.
Na releitura de suas obras para a reedição, a senhora fez alguma mudança? Revendo “As meninas” (1973), com a ajuda de minha neta Lúcia Telles, percebi, além de vírgulas em excesso acrescentadas por revisores ao longo dos anos, a falta de um trecho. Disse a Lúcia que havia algo errado. A personagem Lorena conta uma história de sua infância para Lia e Ana Clara: seu irmão Rômulo foi morto pelo outro irmão, Remo, em uma brincadeira de bandido e mocinho. Foi um tiro acidental. Remo não sabia que a carabina com que brincava estava carregada. Sem querer, puxa o gatilho e o irmão cai morto. Um dia a Lia vai à casa da mãe de Lorena, a “mãezinha”. A mulher conta que o filho, Rômulo, morreu bebê. Lia fica sem saber qual é a versão verdadeira, se a da mãezinha ou a de Lorena, mas não falou mais nisso. Quando reli o livro, não quis que Lia soubesse quem mentiu, mas ela tinha de falar nisso mais uma vez. E antes das meninas se separarem, no final do livro, acrescentei que Lia olha para Lorena, se lembra da história de Rômulo, e fala: “Vou embora e ainda não sei”. Lorena pergunta: “não sabe o que, Lião?”. E Lia responde, misteriosa: “o resultado aí de uma pesquisa”. É uma coisa tão mínima, mas fiquei devendo na primeira edição.
Teve novas impressões sobre seus textos ao relê-los? De repente, cheguei à conclusão de que meus livros estão prontos. Fiz o melhor que pude. Estava terminando “As meninas”, na chácara do meu irmão em Barra de São João, quando todos dormiam. Quando acabei caí em prantos, estava me despedindo de minhas personagens. Elas conviveram comigo, falaram, discutiram o tempo todo e estavam indo embora. Ia perdê-las, mas depois pensei: “elas vão voltar, com máscaras, mas vão voltar”. As personagens são como nós mesmos. Nós gostamos da vida, queremos viver até a última gota.
Como se sente com o relançamento de sua obra? É uma espécie de renascimento da minha obra, estou renascendo junto. A impressão que tenho é que acabei de escrever estes livros e eles estão saindo lindos. Estou oferecendo ao leitor esses frutos renovados, renascidos. Acredito no próprio renascimento pessoal e no de minha obra. Estou muito contente na Companhia das Letras. O editor (Luiz Schwarcz) acreditou em mim, apostou alto. Os livros estão lindos. Um escritor precisa disso, ser cuidado.
Por que seus três primeiros livros são desconsiderados no conjunto de sua obra a ser relançado? Comecei a escrever muito jovem. Foi muito difícil. Tive uma juventude pobre. Estava ainda no curso fundamental (Lygia tinha 15 anos quando publicou o livro de contos “Porão e sobrado”) quando publiquei um livrinho. Mas foi prematuro, errado. Chamo isso de juvenilidades. Me arrependi de meus primeiros livros (“Porão e sobrado”, de 1938; “Praia viva”, de 1944; e “O cacto vermelho”, de 1946, todos de contos). Cortei-os da minha obra e começo a considerar minha carreira a partir do romance “Ciranda de pedra” (de 1954).
Como é ser escritor no Brasil? Minha literatura é engajada. Sou uma escritora do Terceiro Mundo, onde a saúde e a educação são um desastre. Quando eu era estudante de direito disse uma coisa muito importante e que vale até hoje: quando o Brasil tiver mais creche e mais escolas, ele terá menos hospitais e cadeias. Claro que estou sempre escrevendo, querendo passar para o meu leitor essa verdade sobre o meu país. Então não vou disfarçar. É muito duro um país como o nosso, mas assumi meu ofício.
O fato de ser mulher em algum momento tornou essa escolha mais difícil? Um professor da Faculdade de Direito, Miguel Reale, dizia que a mais importante revolução do século XX foi a revolução da mulher. As mulheres estavam muito na sombra, sem coragem de assumir suas vocações. Eu demorei muito para assumir minha vocação, que era escrever. Quando entrei na Faculdade de Direito, eram sete meninas para quase 200 rapazes. Quer dizer, assumi minha vocação e ousei. Em uma conferência na faculdade, um rapaz perguntou para mim: “o que vocês vieram fazer aqui? Casar?” Eu respondi: “Também”. E acabei me casando mesmo... De um certo modo, as mulheres de minha geração foram a vanguarda. Agora é duro. Ainda em meu tempo de estudante, fiz uma tarde de autógrafo. Dois rapazes chegaram e disseram: “Ô Lygia! O que é esse negócio de você escrever um livro? Você já é bonitinha, perna bonita, cabelo bonito. Que besteira é essa?” E eu desabei a chorar. A Clarice Lispector, da minha geração, também tinha muito esses medos. Ela dizia para mim: “Lygia, não tira retrato rindo, que eles não levam você a sério”.
O quanto é importante para a senhora ser tida como uma das maiores autoras nacionais? Isso não tem importância nenhuma para mim. O importante é cumprir meu ofício, minha vocação com paixão, coisa que faço até hoje. Maior, menor, isso é coisa de político. O que importa mesmo é ser fiel ao sonho até o fim. Acertou? Não acertou? Não interessa

Ledusha S.


Amiga,

Ah, que bom sabe-la feliz,
que o beloved ligou de tão longe.
Nome lindo, Nevers. Parece fora do tempo.
Se pudesse te dava uma passagem já.
Aqui, o que restou segue arrastado
às vezes como lábios, outras feito unhas.
Choveu. Fui a pé pro advogado
só pra usar a capa da Burberry.
Lá, não contive as lágrimas
quando pronunciei o nome do intratável.
Achei quase normal,
mas pedi desculpas e um Frontal.
Voltei de taxi, perdi o guarda-chuva.
Aos pedaços,
B.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Carlos Drummond de Andrade


Tarde de Maio

Como esses primitivos que carregam por toda parte o
maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não-perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto
de converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa…
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

francinaldo Borges dos Santos


ESTRADA BRANCA

pensando em Luzia Mercês do Amaral (in memorian),
a Fátima Bezerra, aniversário de 2009



Luzia vestida de senhora:
rudes ferramentas de parteira,
cabelos alvos de aurora.

Desertava-se pelos caminhos
azuis da madrugada,
cruzando chãos conhecidos.

Restos de lua descambavam
sinalizando sítio e trajetória,
clareando estrada deserta.

Escuro chão de veredas,
claro solitário de cachimbo:
tocha acesa de vaga-lume.

Menino vida estreia:
bule de água fervente,
banho inaugural em tigela.

Parto sem anestesia
filho-flor desabrochando,
quarto aceso de manhã.

Casa de poucos troços:
lamparina, rede branca,
jarro de flores sintéticas.

Rede-fôrma modelando
crânio infantil: estética
fonte de apelido: esférica.

Camarinha de aleitamento,
rezas e projetos maternos,
legado de vestes de tricô.

Região povoada por comadres:
em domingo de feira, conversa
com legião de conhecidos.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Quando a morte joga xadrêz sozinho


Hoje não tem Fernando Pessoa,dizia o compositor há décadas atrás num festival de música,agora digo hoje,hoje meu coração está tomado de uma trizteza que por mais que tente não consigo verbalizar,publico o texto de Nivaldete,ela também palmeirense,escritora,poeta,amiga do nosso querido Geraldo.Lindo Detinha sua homenagem: Um dos contos de “Inventário de Pequenas Paixões”, de Geraldo Maciel, abre-se assim: “Dr. Abílio sempre jogava xadrez à sombra do fícus com seu parceiro imaginário. Jogava sozinho por falta de quem ali entendesse aquela arte estratégica de tão variadas possibilidades, tão traiçoeira nos ataques de viés, nas arremetidas saltitantes, nas combinações de movimentos.” A morte, às vezes, é essa arte “tão traiçoeira nos ataques de viés”. Às vezes é um jogo de xadrez jogado sozinho pela própria. Ela e ela. Não há um médico por perto, não há tempo. Ela assim resolve: nocaute no coração. E fez isso com Geraldo Maciel, paraibano de Nova Palmeira, 59 anos, doutor em engenharia de produção pela USP, professor da Universidade Federal da Paraíba, mas, sobretudo, escritor que vinha se consagrando nos meios literários do nordeste e do Brasil por inteiro. Publicou o primeiro livro – “Aquelas Criaturas tão Estranhas”- pela Editora Rio Fundo-RJ (um projeto de Assis Brasil), em 1995. Depois, “Inventário de Pequenas Paixões”, 2000, e “O Concertista e a Concertina”, ambos pela Editora Manufatura (selo do próprio autor). Recentemente, recebeu o Prêmio Literário Cidade do Recife, com o livro “Peccata Mundi”, prestes a sair pela Rocco, além de mais dois.Geraldo foi um apaixonado pela leitura, desde cedo. Me lembro dele, um dia, de férias em Nova Palmeira, então uma cidade-rua-avenida de mão dupla, nossas casas olhando uma para a outra... Estava doido pra ler Clarice Lispector. Chegou perto e me perguntou: -Você tem “A maçã no escuro”?... Eu não tinha. Ofereci Camilo Castelo Branco, “Amor de Perdição”. Ele não se interessou, queria Clarice. E saiu olhando pra lugar nenhum... Acho que, nessa época, ele estudava em Catolé do Rocha (fez lá o antigo ginasial). Mas gostava também de ouvir os causos contados por Raminho de Zezé. Ria-se a valer, pois Raminho era uma mistura de contador de causos e humorista. Deve ter absorvido algo dessas narrativas orais, do mesmo modo como Guimarães Rosa aprendia com o sertanejo das Minas Gerais. Mas Geraldo tempera a sua escrita também com um sabor de Gabriel García Márquez. Prosa da melhor. Enfim, se a morte jogou esse xadrez consigo mesma, nós jogaremos esse outro, dizendo que o seu coração continua pulsando nos livros que deixou. Há poucos meses, convidou-me para ir a João Pessoa, participar de um projeto literário. Dois ou três e-mails. No último, escrevi (sobre ele):O menino contava. Contava as casas da rua-quase-cidade. Contava as luas, que eram só uma, mas o olho da imaginação via às dezenas. Lua nova, lua velha, lua moça, meia-lua, lua-e-meia, lua vazia, lua cheia. Até a lua da poça d´água...Tanta lua! Contava nos dedos e contava os dedos. Contava os gols que (não) fazia nas peladas com outros meninos. Contava os dias de ir, os dias de vir. Quando cresceu, foi contar o incontável. Foi quando se tornou contista. Dos bons.Postado por Nivaldete Ferreira http://lapisvirtual.blogspot.com/

sábado, 23 de maio de 2009


É que eu preciso te dizer que. Me fazer entender. Você entende? Há dois meses me expresso por esboços, pequenos gestos incompletos, porque. É assim. Está assim. Nem sempre me repito, se é que você imagina que. Mas contigo... Frases interditadas que, sem graça, corto com beijos pelo teu corpo. Ou nem isso. Beijo seco, quase ríspido, de boca fechada, lábios rígidos contra lábios líquidos. Porque às vezes te detesto por me fazer querer dizer qualquer coisa que nem sei ao certo se sinto. Ou se vou continuar sentindo em dois minutos, dois anos. Às vezes te detesto por me fazer ter vontade de dizer que te amo pra sempre. E você nem cobra, não investiga. Digo, não ouço tua voz me perguntando nítida o que, como, quando e por quanto tempo. Mas leio a dúvida no passeio das tuas mãos pelo meu rosto, no estalar da tua boca contra meu peito, nos teus olhares para o teto, para a lua, para a gaivota. Então fazemos silêncio e fingimos que somos cúmplices nisso enquanto nossas espadas se chocam sobre a cama. Te detesto quando sei que me tirou de um ponto de equilíbrio. Quando procuro a imagem que você enquadra na rua. Quando tenho medo de te perder por pouco ou por muito. Quando sei que não sou capaz de ser tão bom quanto decerto você imaginou no instante em que te despertei o interesse. Quando não sei o que você imaginou. E imagina.

É que preciso te dizer que talvez eu nunca consiga. Te contar que a curva do teu ombro me emociona. Que o som da tua voz me tranquiliza. Que preciso que ouça os detalhes do meu dia. Que não preciso de ti, mas te desejo intermitente, como dado imprescindível e como luxo dispensável. Que às vezes te adoro por cinco ou seis horas contínuas. E às vezes te esqueço, como forma desconhecida.

É que não posso dizer e pagar por isso na próxima esquina. É que você pode entender o contrário. É que posso repensar o contrário. E voltar atrás. E você pode não estar mais no ponto de partida. É que tenho medo, muito medo de te amar. É que tenho medo, muito medo de não saber amar.






http://manoelasawitzki.blogspot.com/

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Coisa Mais Linda


Carlos Lyra e Vinicius de Moraes

Coisa mais bonita é você
Assim, justinho você
Eu juro, eu não sei por que
Você
Você é mais bonita que a flor
Quem dera
A primavera da flor
Tivesse todo esse aroma de beleza
Que é o amor
Perfumando a natureza
Numa forma de mulher

Por que tão linda assim não existe
A flor
Nem mesmo a cor não existe
E o amor
Nem mesmo o amor existe
E eu fico um pouco triste
Um pouco sem saber
Se é tão lindo o amor
Que eu tenho por você

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Antonio Cícero


Simbiose



Sou seu poeta só
Só em você descubro a poesia
Que era minha já
Mas eu não via.

Só eu sou seu poeta
Só eu revelo a poesia sua
e à noite indiscreta
você de lua.

domingo, 17 de maio de 2009

UMA FOTO,SEM PALAVRAS

Carlos Drummond de Andrade


As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Lenilde Freitas


A CASA

Da porta principal à derradeira,
um corredor. Só o piso de madeira.

As portas laterais, trancadas.
Todas elas.

Pelas janelas,
fogem os fantasmas gerados na cumeeira.

Que mais?
Que mais?

Ah, sim: uma goteira, sangrando... sangrando...
sujando a casa inteira.

De Espaço Neutro (1991)

domingo, 10 de maio de 2009

JOSÉ PAULO PAES


A Casa
Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim dos tempos.

No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.

No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai rachando lenha.

E no telhado um menino medroso que espia todos eles;
só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.

sexta-feira, 8 de maio de 2009


Carta para Lúcio Cardoso, escritor mineiro, por quem Clarice era perdidamente apaixonada, antes de se tornar a escritora famosa.


Belém, 6 de fevereiro de 1944
''Lúcio:

Quando telefonei para você pra me despedir fiquei aborrecida com um engano seu. Eu disse que nunca tinha podido chegar mais perto de seus problemas porque você nunca deixava; que eu, por encabulamento, então, disfarçava minhas perguntas de amizade em perguntas de curiosidade. É bem possível que você já nem saiba do que estou falando, tenha esquecido. Mas eu precisava lhe repetir que minha amizade não se transformou em curiosidade, o que seria horrível para mim.

Estou aqui meio perdida. Faço quase nada. Comecei a procurar trabalho e começo de novo a me torturar, até que resolvo não fazer programas; então a liberdade resulta em nada e eu faço de novo programas e me revolto contra eles. Tenho lido o que me cai nas mãos. Cai-me plenamente nas mãos Madame Bovary, que eu reli. Aproveitei a cena da morte para chorar todas as dores que eu tive e as que eu não tive. - Eu nunca tive propriamente o que se chama de 'ambiente' mas sempre tive alguns amigos. Aqui só tem 'mutucas' (isso é besouro, mas por que não chamar tudo de mutuca logo de uma vez?)

Lúcio, como vai você? Responda, se responder, claramente a essa pergunta. (...)

Lúcio, sei que sou antipática e não posso fazer nada. Eu só falo de mim porque nem sei o modo de abordar você (...) Saudades da Clarice.''

quarta-feira, 6 de maio de 2009

ANA C.




Trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes
barganhando uma informação difícil. Agora
silêncio; silêncio eletrônico, produzido no
sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma idéia.
Eu não tenho a menor idéia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de Copacabana. Santa Clara às três
da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura
menos que o seu amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
N5o, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio
do grande rio.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Mário Bortolotto



A primeira vez que ela foi embora
Foram só guardanapos rabiscados
Na segunda eu enxuguei um Jack Daniels
Na terceira eu aprendi a rezar
Na quarta eu já não acreditava em Deus
Na quinta eu achei que ia nevar
Passei o fim de semana num hotel
Olhando pela janela
Quando voltei pra casa, ela não tinha voltado
Me mandou um cartão postal
Tá morando em São Paulo
E parece que na maior parte do tempo
Ela é feliz

Nivaldete Ferreira


Os domingos doem
Nivaldete Ferreira

Árvores desdobradas,
Sóis quebrados entre seus galhos,
Reentrâncias de sombras
Mal nomeadas,
Um silêncio monarca,
Rouco de gritos desistidos,
Lento ir-e-vir,
O não ficar
Do amor insinuado.
De solidão as casas empalidecem,
Maquiam-se de ocre,
Como de rubro os bêbados.
Os domingos doem.
Mesmo suas taças são castiçais
Para o velório do ócio.

Os domingos doem.

Eugénio de Andrade (Poeta Português)


Adeus

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

(Eugénio de Andrade)

domingo, 3 de maio de 2009

Bruna Beber


ap.

na minha casa você pode flagrar alguém
se escondendo da rotina num quarto escuro
e batendo a cinza do cigarro na janela
enquanto espia as roupas dançando em silêncio
no varal da área
às três da madrugada
você pode flagrar alguém preocupado
segurando uma caneca com vinho vagabundo
dormindo fora de hora
pensando demais na vida
e no tédio que é
essa falta de paixão.

HELENA PARENTE CUNHA


O SILÊNCIO DO CAMINHO

Não
eu não sei o caminho do chá.

Traspassei a fronteira
mas não cheguei.

Que sabem meus pés
das pedras do jardim?

O que deixei ao deixar
minha bolsa e meus sapatos
antes de entrar?

Quais nomes supérfluos
pude apagar da boca?

O que abaixei ao baixar
a cabeça
ante o baixo da porta?

Meus joelhos no tatami
se convertiam
ao liso brilho da palha.

Mas o silêncio
ah o silêncio
abafava-me os olhos.

O silêncio do caminho.

sábado, 2 de maio de 2009

a nossa é...


a nossa
é paixão
mal resolvida

olhos
que se estudam
mãos
que se encontram
e lábios
que dizem não

Ademir Antonio Bacca

ALICE RUIZ


Short Trip
minha cidade
cai pela janela
como um cisco

meu olho
caleidoscópio
é o coração que acolhe
fragmento por fragmento
até que toda cidade
e sua história
caiba dentro

nessa rua, por exemplo,
já passei há muito tempo
mas não tinha esse olhar
indo embora

para o futuro,
a memória desse momento
que passou agora
será a lembrança de outro
e ainda outro mais antigo

caio como um cisco
na cidade
somos, as duas,
uma rápida paisagem.
De passagem.

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Alice Ruiz

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Nunca existiu um ator como ele.


Nunca existiu um ator como ele. E tenho minhas dúvidas se vai aparecer alguém. Todos os grandes atores prestam reverência hoje ao cara que fez mais pela arte da interpretação que qualquer outro. Pega aí o Sean Penn, o Benício Del Toro, o Johnny Depp, Edward Norton. Todos rezam antes de dormir pro cara. Ou mesmo Robert De Niro, Robert Duvall, Jack Nicholson, Paul Newman, Antony Hopkins. Eles também sabem pra quem devem pedir a benção. Assim como faziam Steve McQueen e James Dean. Marlon Brando, o maior de todos, completa hoje 80 anos e continua um enigma indecifrável. Dono de um talento monstruoso, é dos poucos em sua arte que podem ser chamados de gênio. Esnobando o trabalho que o consagrou ele disse coisas do tipo: “Ator é o sujeito que quando você não está falando dele, ele não está prestando atenção”. O escritor Truman Capote certa vez tentou defini-lo e o máximo que conseguiu foi isso: “É um homem desordenado, caótico, sentimental, volúvel, filósofo, confuso, egocêntrico, solitário, misterioso, indiferente, colérico, amável e infantil”. Descobri Marlon Brando ainda pequeno quando assisti o faroeste Sangue em Sonora. Adoraria rever esse filme. Parece que não foi lançado em vídeo. Fiquei impressionado com o seu estilo de interpretação com aquelas pausas estranhas, o murmurar quase incompreensível e toda aquela dinamite interna prestes a explodir. Era genial. Depois procurei assistir tudo. Tenho várias fitas com filmes dele em minha coleção de VHS. Os que mais gosto são Sindicato de Ladrões, Um bonde chamado desejo, Apocalypse Now, Viva Zapata, A Face Oculta e O Último Tango em Paris. Há uma série de outras grandes interpretações. Eu poderia ficar mais um puta tempo aqui falando sobre o cara e o trabalho dele, mas eu tô meio sem tempo e além de tudo acho que ia cair no mesmo erro do Capote. Ia tentar definir alguém que não tem definição. É gênio e ponto final. Bem que ele podia ficar mais um tempo por aqui. (Mário Bortolotto)