sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Natal na passarela


Nivaldete escreveu um dos melhores textos que li sobre o Natal,confiram:


sentindo um certo vazio melancólico, saiu discretamente da sala em que parentes bebiam, trocavam presentes e risadas, despejou na pia a segunda dose de uísque 12 anos, desarrumou o cabelo lambido de gel, arrancou a roupa de marca, vestiu uma camiseta velha, branca e bem passada, olhou a torta de bacalhau sobre a mesa da cozinha, os salgadinhos, o remédio para azia e dor de cabeça -que o pai certamente tomaria às 10 da manhã-, quis levar a torta, mas achou dispensável -a quem a daria?-, quis se vestir de papai noel, palhaço ou bicho e também desistiu -para quem iria assim se mostrar?-, pensou em comprar a algum camelô solitário todo o seu estoque de presentinhos made in china para dar a quem lhe parecesse necessitado, e de novo abriu mão de mais uma ideia, que não fazia questão de encontrar ninguém, talvez nem a si próprio.
Enfim, saiu de mansinho pela porta de serviço e ganhou a rua. Foi andando, andando, e três quarteirões depois percebeu que trazia a sacola com os presente que ganhara, então abandonou-a num banco de praça e continuou andando. Subiu na primeira passarela e, não havendo qualquer transeunte além dele, parou para contemplar a cidade, que estava se acalmando como um animal que começa a recolher seus barulhos e seus botões de luz corrente. Depois olhou o céu, a lua cheia, os tufos de nuvens lembrando o algodão-doce da infância. Deitou-se na passarela com as mãos cruzadas sob a cabeça e continuou mirando a lua, as nuvens, e foi ficando agradavelmente tonto. Em casa, pensou, se estivessem todos bêbados ninguém notaria sua ausência. Se notassem, iriam ao seu quarto e veriam o cobertor sobre os travesseiros e pensariam que ele estava dormindo. Claro, no dia seguinte o chamariam de descortês. Mas, pela primeira vez, tinha sido gentil com seu espírito.


adormeceu e acordou com o sol no rosto.
e viu: um papai noel de papelão, trazido pelo vento, e que devia ter passado a noite lhe fazendo companhia, acabava de sair voando pelo gradil da passarela.

um menino, desses chamados 'de rua', medalhas de sujo pelo peito, apareceu, rasgou o pão que trazia e lhe ofereceu dizendo come, que é bom.
Postado por nivaldete ferreira .

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Poetas moram dento de seus poemas


Um saxofonista tirando à tarde a canção
que tocará à noite.
Poetas moram dentro de seus poemas.
Alguém nadando no mar quando a gente
perde de vista.
A cantora exaurida subindo as escadas
como os sapatos de salto numa das mãos.
Onde se mede a febre da cidade.
Ouvindo até quase não suportar a faixa
mais linda do disco.

(Marcelo Montenegro)

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Tiê - Se enamora




Se Enamora
Tiê
Composição: Garofalo/ Monti / Vicenzo Giuffré / Giannino Gastaldo / Edgard Poças
Quando você chega na classe
Nem sabe
Quanta diferença que faz
E às vezes
Faço que não vejo e nem ligo
E finjo, ser distraída demais

Quantas vezes te desenhei
Mas não consigo
Ver o teu sorriso no fim
Te sigo
Caminhando pelo recreio
Quem sabe
Você tropeça em mim

Se enamora
Quem vê você chegar com tantas cores
E vê você passar perto das flores
Parece que elas querem te roubar

Se enamora
Quem vê você chegar com tantos sonhos
E os olhos tão ligados nesses sonhos
Tesouros de um amor que vai chegar

Quando toca o despertador
De manhãzinha
Me levanto e vou me arrumar
E vejo
A felicidade no espelho
Sorrindo
Claro que vou te encontrar

Fico só pensando em você
E juro
Que vou te tirar pra dançar
Um dia
Mas uma canção é tão pouco
Nem cabe
Tudo que eu quero falar

Se enamora
Quem vê você chegar com tantas cores
E vê você passar perto das flores
Parece que elas querem te roubar

Se enamora
Quem vê você chegar com tantos sonhos
E os olhos tão ligados nesses sonhos
Tesouros de um amor que vai chegar

Se enamora
E fica tão difícil
De ir embora
E às vezes escondido
A gente chora
E chora mesmo sem saber porque
Se enamora
A gente de repente
Se enamora
E sente que o amor
Chegou na hora
E agora gosto muito de você

Pedro Juan Gutierrez


"Eu era um sujeito perseguido pela saudade. Sempre fora, e não sabia como me desligar e viver tranqüilamente. Ainda não aprendi. É desconfio que não aprenderei nunca. Pelo menos já sei algo valioso: é impossível me desligar da memória. É impossível se desligar daquilo que se amou. Tudo isso estará sempre junto conosco. Sempre teremos tanto o desejo de refazer o bom da vida como o de esquecer e destruir a lembrança do mau. Apagar as maldades que cometemos, desfazer a recordação das pessoas que nos prejudicaram, remover as tristezas e as épocas de infelicidade.É totalmente humano, então, ser um nostálgico, e a única solução é aprender a conviver com a saudade. Talvez para a nossa sorte, a saudade possa transformar-se, de algo depressivo e triste, numa pequena chispa que nos dispare para o novo, para entregar-nos a outro amor, a outra cidade, a outro tempo, que talvez seja melhor ou pior não importa, mas que será diferente..."
(Trilogia Suja em Havana - Pedro Juan Gutierrez)

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

CORDIALIDADE


Não penses por favor que a casa é sua.

Aqui a mesa posta
-Venha sempre-
pode ser até agrado,
nada além.Não se engane.

A toalha de renda é de família
mas só abro os armários por vaidade.
Ou vício.Talvez ócio nem sei mais.

Rosas brancas no vaso
para nos enfeitarem
escolhi
as mais escandalosas.

Não faça cerimonia,apareça.
Se você exagerar,o azar é seu.

LUIZA FRANCO MOREIRA.

domingo, 19 de dezembro de 2010

UM LUGAR LEGAL PRA ESTAR (WHEN THE MUSIC STOPS)


Ela me disse casualmente
que havia notado a mancha de sangue na minha camisa
Disse a ela: Não se preocupe, não é nada
Ela respondeu: Eu não tô preocupada
Resmunguei: é melhor assim
Achei que podia me divertir um pouco
assistindo uma luta de boxe na tv
Tirei a camisa manchada de sangue e joguei no tanque
Ela vestiu uma micro-saia e saiu pra rua
Abri uma cerveja e resolvi esperar
Os ponteiros do relógio eram guilhotinas no meu pescoço
Quando ela voltou, não falei nada
Fiquei no escuro vendo ela se mexer
deixando cair sua saia
no caminho pro banheiro
Deixou a luz acesa e ouvi o barulho
não vou usar de eufemismos nesse momento
pra dizer o que ela estava fazendo
somos um casal com tempo de serviço
nossa indiferença mútua provava isso
meu enorme peso no sofá atestava isso
Ela acendeu um cigarro no escuro da sala
e a chama do isqueiro fez com que ela me notasse
"é mais difícil do que você imagina", ela disse
e o seu desprezo me acertou como um blefe de pôquer
Ainda ficou um tempo olhando pra mim
antes de vencer o orgulho e perguntar
"O que era a mancha na sua camisa?"
"Já disse. Não é nada. Não precisa se preocupar"
Ela soltou um foda-se e foi pro quarto,
deitou e ficou fumando olhando o teto
Levantei e fui até o banheiro
Cambaleei e tive que me apoiar na porta
Abri o armário e peguei o mercúrio cromo
ou você não sabia que a maioria das histórias de amor
terminam com alguém limpando as feridas?

Mário Bortolotto

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

poeminha noturnamente urbano


ruído de automóveis
e vozes embriagadas
mais uma canção de gosto duvidoso
ferem a noite que se queria silenciosa

(o caminhão do lixo parece uma locomotiva)

e nada mais há que fazer
senão desistir do poema e janelas
fechadas deixar-se embalar pelo resmungar
(monotonamente familiar) do aparelho de ar condicionado



Márcia Maia

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

textinho cruel qual faca amolada


você eu baby, nascemos portadores dessa tal semente da melancolia. acho que algumas pessoas são assim mesmo, elas até tentam mas não faz parte da carne andar por aí sorrindo a esmo. é sempre um olhar o mundo através de um outro plano. é achar tudo tristemente belo. como se o mundo estivesse sempre com aquela luz difusa de depois que chove. é ouvir um blues constante. a maioria dos nossos amigos são assim,já reparou? talvez seja uma necessidade de se agrupar, para que não nos sintamos tão estranhos, tão alheios. é assim mesmo, não há porque desesperar. é poesia demais, é dor de mais, é subir a pé uma ladeira íngreme enquanto os outros descem de carro na contramão. é assim mesmo baby e não morreremos disso. de cirrose talvez, mas não de amor.

Escrito por Ju Roberto



A foto é da Rua do Lavradio,Lapa,Rj.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Ultimo Desejo (Noel Rosa)



Último Desejo (Noel Rosa)

Nosso amor que eu não esqueço
E que teve seu começo
Numa festa de São João
Morre hoje sem foguete
Sem retrato, sem bilhete
Sem luar e sem violão

Tudo penso nada falo
Tenho medo de chorar
Nunca mais quero seu beijo
Mas meu ultimo desejo
Você não pode negar

Se alguma pessoa amiga
Pedir que você Ihe diga
Se você me quer ou não
Diga que você me adora
Que você lamenta e chora
A nossa separaçao

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Lançamento livro João da Rua


Convite
Lançamento do livro:

O VENENO DO SILÊNCIO (Edições Sebo Vermelho)
Poemas
João Batista de Morais Neto

Local: IFRN - Cidade Alta
Dia 24 de novembro
Às 16h

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O que você perde com um cachorro


Desde que os conheci, perdi horas de sono, sapatos, papéis importantes, vasilhas, fios, livros.... Perdi a liberdade de deixar minhas coisas espalhadas por onde quisesse. Perdi tempo limpando sujeiras pela casa, no sofá, na cama. Desde que os conheci, perdi a voz repetindo por centenas de vezes “não pode!”. Perdi a paciência, repreendi, xinguei, eduquei. Desde que os conheci perdi a hora de sair me justificando para eles que logo voltaria. Perdi também a liberdade de receber qualquer pessoa em casa, pois para entrar é obrigatório que goste de cachorros.


Desde que os conheci, perdi a paz de sair de casa e passei a me preocupar com o tempo que passava fora, a sentir o coração apertado ao ir trabalhar e a me culpar por sair para o lazer sem levá-los. Quem tem um cachorro, sabe exatamente do que estou falando. Só que no meu caso, todas a emoções foram multiplicadas por três.


Na dor angustiante de perder uma grande companheira, a Lua, uma cadelinha que ficou ao meu lado por 11 anos, assumi a responsabilidade de adotar três filhotes. Amor por animais sempre senti, mas a princípio os adotei para minimizar o vazio gigantesco da partida de minha grande amiga. Pois bem, os três chegaram bagunçando a minha casa toda novinha, mordendo e roendo móveis, espalhando xixi por todo o canto. Mesmo com todos os contras, os prós foram maiores. Eram três bolinhas peludas, carinhosas e carentes.


Meus novos bebês pediam atenção praticamente durante todo o dia. Os gastos iniciais com vacinas e veterinários não estavam calculados, mas vamos lá. Os gastos com a reposição de tudo que estragaram também não foram planejados, mas paciência.... Os olhinhos fixos aos meus, em vigilância constante de meus passos, foram a prova do que eu já imaginava: represento tudo na vida deles. Além de amor incondicional, devotam enorme confiança no que ofereço e faço, sem jamais questionarem a procedência do que dou para comer, beber ou brincar. Mais que amor, idolatria. Com isso, também me ensinaram. Nunca fui tão importante em minha vida. Mesmo no caso da Lua ou da Kika, minhas primeiras cachorras, pois na casa de meus pais eu era só mais uma. Agora eu sou realmente tudo para esses pequenos e adoráveis seres. Claro que tem meu marido, mas me sinto a mãe desses filhotes, que retribuem com um amor incondicional que filho algum conseguiria ter.


Desde que os conheci, já não conto o valor do que destroem, mas a alegria de vê-los crescendo. Desde que os conheci, tenho a certeza de que pagaria o preço que fosse para vê-los felizes. Desde que os conheci, descobri em mim uma capacidade enorme de amar e de abrir mão de qualquer objeto, me preocupando apenas se aquilo que mastigaram pode fazer mal. O que estragaram, compro de novo, contanto que estejam bem. Se você não gosta ou não tem um cachorro, não sabe o que está perdendo. Não faz nem ideia....
Letícia Murta @leticiamurta

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Antônio Maria


CONVERSA DE PAI E FILHA

Antônio Maria

- Pai, eu tenho um namorado.

Pai, que ouve isso da filha mocinha, pela primeira vez, sente uma dor muito grande. Todo o sangue lhe sobe à cabeça, e o chão do mundo roda a seus pés. Ele pensava, até então, que só a filha dos outros tinha namorado. A sua tem, também. Um namorado presunçosamente homem, sem coração e sem ternura. Um rapazola banal, que dominará sua filha. Que a beijará no cinema e lhe sentirá o corpo, no enleio da dança. Que lhe fará ciúmes de lágrimas e revolta; pior ainda, de submissão, enganando-a com outras mocinhas. Que, quando sentir os seus ciúmes, com toda a certeza, lhe dirá o nome feio e, possivelmente, lhe torcerá o braço. E ela chorará, porque o braço lhe doerá. Mas ela o perdoará no mesmo momento ou, quem sabe, não chegará, sequer, a odiá-lo. E lhe dirá, com o braço doendo ainda: “Gosto de você, mais que tudo, só de você.” Mais que de tudo e mais que dele, o pai, que esse porcaria de rapaz fará a filha mocinha beber whisky, e ela, que é mocinha, ficará tonta, com o estômago às voltas. Mas terá que sorrir. E tudo o que conseguir dela será, somente, para contar aos amigos, com quem permuta as gabolices sobre suas namoradas. Ah! O pai se toma de imensa vontade de abraçar-se à filha mocinha e perdir-lhe que não seja de ninguém. De abraçá-la e rogar a Deus que os mate, aos dois, assim, abraçados, ali mesmo, antes que torça o bracinho da filha. Como é absurda e egoisticamente irracional o amor de pai! Mais que ódio de fera. Ele sabe disso e se sente um coitado. Embora sem evitar que todos esses medos, iras e zelos passem por sua cabeça, tem que saber que sua filha é igual à filha dos outros; e, como a filha dos outros, será beijada na boca. Ele, o pai, beijou a filha dos outros. Disse-lhe, com ciúme, o nome feio. E torceu-lhe o braço, até doer. Nunca pensou que sua namorada fosse filha de ninguém. Ele, o pai, humanamente lamentável, lamentavelmente humano. Ele, o pai, tem, agora, que olhar com o maior de todos os carinhos e sorrir-lhe um sorriso completo de bem-querer, para que ela, em nenhum momento, sinta que está sendo perdoada. Protegida, sim. Amada, muito mais. E, quando ela repetir que tem um namorado, dizer-lhe apenas:

- Queira bem a ele, minha filha.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Ana Rüsche


ANOTAÇÃO

esse amor demais vai acabar te matando, ana
escuta, presta atenção
vê se espreme esse coraçãozinho
pra ver se surgem um par de bolas embaixo
vai ser homem na vida
e para com isso, essa coisa toda,
essa bobageira

tem dias que a gente só quer
que nos tirem para dançar.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Aldir Blanc


VIDA NOTURNA

(Aldir Blanc)

Acendo um cigarro molhado de chuva até os ossos
E alguém me pede fogo – é um dos nossos
Eu sigo na chuva de mão no bolso e sorrio
Eu estou de bem comigo e isto é difícil

Eu tenho num bolso uma carta
Uma estúpida esponja de pó-de-arroz
E um retrato meu e dela

Que vale muito mais do que nós dois
Eu disse ao garçom que quero que ela morra
Olho as luas gêmeas dos faróis
E assobio, somos todos sós


Mas hoje eu estou de bem comigo
E isso é difícil
Ah, vida noturna
Eu sou a borboleta mais vadia
Na doce flor da tua hipocrisia

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Baudelaire


É necessário estar sempre bêbado.
Tudo se reduz a isso; eis o único problema.
Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo, que vos abate e vos faz pender para a terra, é preciso que vos embriagueis sem cessar.
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha.
Contanto que vos embriagueis.
E, se algumas vezes, nos degraus de um palácio, na verde relva de um fosso, na desolada solidão do vosso quarto, despertardes, com a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que rola, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai-lhes que horas são; e o vento, e a vaga, e a estrela, e o pássaro, e o relógio, hão de vos responder:
É hora de se embriagar!
Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem tréguas!
De vinho, de poesia ou de virtude, a vossa escolha.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Fernando Pessoa


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida…
Sou isso, enfim…
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Saudade é não saber mesmo


Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater com a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade de um filho que estuda fora. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Doem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ela no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-la, ela o dia sem vê-lo, mas sabiam-se amanhã. Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna-se menor, Ou quando alguém ou algo não deixa que esse amor siga, Ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter. Saudade é basicamente não saber. Não saber mais se ela continua fungando num ambiente mais frio. Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia. Não saber se ela ainda usa aquela saia. Não saber se ele foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre ocupada; se ele tem assistido às aulas de inglês, se aprendeu a entrar na Internete encontrar a página do Diário Oficial; se ela aprendeu a estacionar entre dois carros; se ele continua preferindo Malzebier; se ela continua preferindo suco; se ele continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados; se ela continua dançando daquele jeitinho enlouquecedor; se ele continua cantando tão bem; se ela continua detestando o MC Donald's; se ele continua amando; se ela continua a chorar até nas comédias.
Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos; não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento; não saber como frear as lágrimas diante de uma música; não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer. É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso... É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer; Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler...

Texto retirado do Livro Trem Bala da Martha Medeiros

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Pequeno tratado sobre minha casa


Sheyla,dizer o que dessa moça que eu adoro e escreve tudo aquilo que a gente sente e quer dizer.


Minha casa, às vezes, é tão pequena que sequer comporta minha armadura. Em outras vezes, nem mesmo casa é. Só um amontoado de livros, canções esquecidas, quadros dos outros, fotografias de paisagens, gatos dormindo, azuis de uma manhã que ainda não chegou.

Tem vez que minha casa é reconhecida pelos outros. Num olhar, numa frase, até mesmo em singelos elogios. Minha casa não espera muita coisa da rua. Porque a rua já é um outro tipo de morada, onde habitam meus crepúsculos favoritos e o perfume enigmático das nuvens e, por trás das nuvens, da escuridão.

Minha casa tem poucos espelhos. E às vezes é um universo por dentro, praticamente inabitado. A não ser pelas formigas que serpenteando estradas por entre as pareces, se dirigem aos seus escritórios e empresas subterrâneas. Sempre tão disciplinadas as formigas.


Minha casa, às vezes, é um rio onde não permito o aprisionamento de peixes, passarinhos, ou toda sorte de sutilezas que a natureza é capaz de empreender. Tenho sede só de quimeras e das chuvas de estrelas que banhavam meu olhar quando eu morava em outras casas e ainda nem sabia o significado de quimeras.

Minha casa pouco importa. O que me salva mesmo é esse nomadismo absoluto que prescinde de asas. Só de silêncio. E às vezes, de distância.

Sheyla Azevedo

sábado, 2 de outubro de 2010

De um universo a outro


É difícil mudar de casa. Sair da casca. Deixar o quentinho do cobertor. Sair do banho e alcançar a toalha. Mudanças são contrastes de estados e, por isso, doloridas. É nascer de novo sair de uma relação para o vazio. Ou para outra. É preciso coragem e ruptura. É preciso acreditar. Comum permanecermos imóveis por mais que o suportável. Sair do banho e agachar enrolado na toalha, pensando na vida. Demorar um tempo até tomar coragem pra mudar de posição. Mudar é um parto, sempre. Mesmo que o novo mundo seja melhor. Diante do universo inteiro que se anuncia novo, o de alguém que chegou de surpresa, muitas vezes nos acovardamos.

Cristina Guerra

domingo, 26 de setembro de 2010

Caio Fernando Abreu


"...Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada..."

Trecho do conto "Os Dragões não Conhecem o Paraíso", de Caio Fernando Abreu


A foto em destaque é Caio e Cazuza.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

ANDRÉ DE LEONES


Há o espaço a ser preenchido, o lugar de uma narrativa que ela tenta preencher aos poucos. A narrativa da crise, da internação, dos primeiros dias no hospital, e também a narrativa do período imediatamente anterior, os dias que precederam o horror. Hoje, sentada na cama do hospital com o notebook no colo, conseguiu conectar-se a uma rede sem fio das redondezas e leu os e-mails que eu lhe enviara desde o primeiro dia. Os longos e-mails que escrevi para me manter são: ela os lê e se emociona e ri, um espaço em branco a menos, dois, três, cinco, nove; revive o que não tem certeza de ter vivido, ou que não sabia ter vivido, e se refaz, e eu também.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Edwin Morgan


O Divisor

Continuo pensando em você – o que é ridículo.
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu pelos Stones;
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardam uma noite selvagem.
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou,
mesmo que não possa estar onde estou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa
que eu teria jogado sobre você – havia apenas
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia,
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar
e não se preocupar, e aquilo
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete
não senti nada além de uma punhalada
de dor me dizendo o que era,
e não posso dizer para você, nem uma palavra.

(Tradução: Virna Teixeira)

sábado, 4 de setembro de 2010

Clarice lispector


"quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? às vezes dá certo. mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. diria melhor, sentir.
e não me sinto bem. experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. no entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. como?não sei.
metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. e se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
"se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. e a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais".
em: a descoberta do mundo - clarice lispector - pg. 156.

domingo, 29 de agosto de 2010

Para atravessar agosto


Para atravessar agosto ter um amor seria importante, mas se você não conseguiu, se a vida não deu, ou ele partiu - sem o menor pudor, invente um. Pode ser Natália Lage, Antonio Banderas, Sharon Stone, Robocop, o carteiro, a caixa do banco, o seu dentista. Remoto ou acessível, que você possa pensar nesse amor nas noites de agosto, viajar por ilhas do Pacífico Sul, Grécia, Cancún ou Miami, ao gosto do freguês. Que se possa sonhar, isso é que conta, com mãos dadas, suspiros, juras, projetos, abraços no convés à lua cheia, brilhos na costa ao longe. E beijos, muitos. Bem molhados.
Não lembrar dos que se foram, não desejar o que não se tem e talvez nem se terá, não discutir, nem vingar-se, e temperar tudo isso com chás, de preferência ingleses, cristais de gengibre, gotas de codeína, se a barra pesar, vinhos, conhaques - tudo isso ajuda a atravessar agosto.

(Caio Fernando Abreu)

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

CAMELÔS


Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõeszinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam boxe
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.

Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
- “O cavalheiro chega em casa e diz: Meu filho, vai buscar
um pedaço de banana para eu acender
o charuto. Naturalmente o menino pensará: Papai está malu…”

Outros, coitados, têm a língua atada. Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo de demiurgos de
inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da meninice…
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes uma lição de infância.

*

Manuel Bandeira. De Libertinagem (1930).

domingo, 22 de agosto de 2010

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Cartola, no moinho do mundo


Você vai pela rua, distraído ou preocupado, não importa. Vai a determinado lugar para fazer qualquer coisa que está escrita em sua agenda. Nem é preciso que tenha agenda. Você tem um destino qualquer, e a rua é só a passagem entre sua casa e a pessoa que vai procurar. De repente estaca. Estaca e fica ouvindo.

Eu fiz o ninho.
Te ensinei o bom caminho.
Mas quando a mulher não tem brio,
é malhar em ferro frio.

Aí você fica parado, escutando até o fim o som que vem da loja de discos, onde alguém se lembrou de reviver o velho samba de Cartola; Na Floresta (música de Sílvio Caldas).

Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera.

A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza.

Em Tempos Idos, o divino Cartola, como o qualificou Lúcio Rangel, faz o histórico poético da evolução do samba, que se processou, aliás, com a sua participação eficiente:

Com a mesma roupagem
que saiu daqui
exibiu-se para a Duquesa de Kent
no Itamaraty.

Pode-se dizer que esta foi também a caminhada de Cartola. Nascido no Catete, sua grande experiência humana se desenvolveu no Morro da Mangueira, mas hoje ele é aceito como valor cultural brasileiro, representativo do que há de melhor e mais autêntico na música popular. Ao gravar o seu samba Quem Me Vê Sorrir (com Carlos Cachaça), o maestro Leopold Stockowski não lhe fez nenhum favor: reconheceu, apenas, o que há de inventividade musical nas camadas mais humildes de nossa população. Coisa que contagiou a ilustre Duquesa.

* * *

Mas então eu fiquei parado, ouvindo a filosofia céptica do Mestre Cartola, na voz de Sílvio Caldas. Já não me lembrava o compromisso que tinha de cumprir, que compromisso? Na floresta, o homem fizera um ninho de amor, e a mulher não soubera corresponder à sua dedicação. Inutilmente ele a amara e orientara, mulher sem brio não tem jeito não. Cartola devia estar muito ferido para dizer coisas tão amargas. Hoje não está. Forma um par feliz com Zica, e às vezes a televisão vai até a casa deles, mostra o casal tranqüilo, Cartola discorrendo com modéstia e sabedoria sobre coisas da vida. “O mundo é um moinho...” O moleiro não é ele, Angenor, nem eu, nem qualquer um de nós, igualmente moídos no eterno girar da roda, trigo ou milho que se deixa pulverizar. Alguns, como Cartola, são trigo de qualidade especial. Servem de alimento constante. A gente fica sentindo e pensamenteando sempre o gosto dessa comida. O nobre, o simples, não direi o divino, mas o humano Cartola, que se apaixonou pelo samba e fez do samba o mensageiro de sua alma delicada. O som calou-se, e “fui à vida”, como ele gosta de dizer, isto é, à obrigação daquele dia. Mas levava uma companhia, uma amizade de espírito, o jeito de Cartola botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.
Carlos Drummond de Andrade

À Noite Sonhei Contigo - Paula Toller ao vivo - DVD NOSSO

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

because pink is my favorite crayon


e logo que vc me diz
que o carregador quebrou, que pagou uma nota num novo
que ali a zona franca e que de franca só tem a zona
é mentira, fui eu quem inventei isso agora.
e a lenda as amazonas
elas, guerreiras canibais, que roem os ossos
de seus homens, que criam os filhos só até
se despertarem meninos, essa lenda que inventei
baseada nas minhas próprias amigas
e nos meus mais profundos desejos antropofágicos
tua pele riscada em desejos por rosa-choque
e lembro que outro dia desenhei
a planta carnívora que come mulheres virgens
no seio da floresta escura e tão barulhenta
creeeek! - e lá está a menina a espernear dentro
das mandíbulas da planta
e desenhei em pink os olhos do boitatá
e em pink delineei os peitos da iara
essas lendas de mentira que a gente aprende
na escola, é tudo que sei, o resto invento
em pink, a cor mais improvável
da floresta, que se encontra nas gengivas
das amazonas canibais, na boca da
planta carnívora, nos lábios das putas
da zona virgem e na embalagem do teu carregador
made in manaus.
e fico tão feliz em te ouvir
dessa selva, dessa maquete imaginária
nas folhas imensas de meus cadernos de criança
mal-criada, o desejo é uma grande flor tropical
que nos devora quente adentro, que sinto,
ah, como eu sinto
(é bom te ouvir e te desenhar em choque em mim
ei, estou rindo, viu?)

ANA RUSCHE

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Nada é óbvio ou inevitável


Tem dias que a vida leva um susto, soluça e pára no ar, meio anestesiada, meio ébria, meio incrédula de si. Suspendem-se as convenções e protocolos, interrompe-se seu curso e por alguns instante nada "tem que ser", nada é óbvio ou inevitável, nada está decidido ou é certo. As escolhas sobressaem, existem alternativas, dúvidas se evidenciam e no meio do mundo em câmera lenta nos permitimos sentir, querer, desejar, admitir o que em nós não se encaixa perfeitamente, não atende as expectativas, não passa pela cabeça de ninguém que possa existir. Naquele instante somos nós e todas as possibilidades descartadas, embotadas, abortadas, sabotadas, renunciadas. Principalmente aquelas escolhas que fazemos questão de esquecer, que fazemos de conta que não existem e que naquele instante - só naquele instante - nos dão a certeza de que nos fariam parar de sentir fome.(TICCIA)

daqui ô: http://www.ticcia.com/



A foto que ilustra o texto é das ladeiras de Santa Tereza/RJ.

domingo, 1 de agosto de 2010

Antonio Maria


Oração
"Rosinha Desossée, me tire desse quarto de hotel e de todas as coisas que entram pela janela; me leve para longe das palmeiras, mais longe e perto das coisas mais macias; me faça esquecer (depressa) os homens ruins — isto é: os que gostam de cebola crua; me ensine, Rosinha Desossée, tudo o que eu não aprendi: a cortar com a mão direita, a usar anel, a tocar piano, a desenhar uma árvore e valsar; e me lembre do que eu esqueci — raiz quadrada, (as mais ordinárias), frações, latim, geofísica e "Navio Negreiro", de Castro Alves; depois, me dê, pelo bem dos seus filhinhos, aquilo que eu não tenho há quase um ano, carinho — de um jeito que eu não sei dizer como é, mas que há, por aí ou, pelo menos, já houve; destelhe a casa, deixe a noite entrar e, juntos, vamos nos resfriar; espirre de lá, que eu espirro de cá... agora, cada um com a sua bombinha, inalação, inalação; lado a lado, sentemos, os dois de perfil para o ventilador; minhas mãos e as suas não são de ninguém, entendido?; se interesse por mim e pergunte o que eu sei, que eu quero exclamar, no mais puro francês: "oh!"..."comment allez vous"? (...) de um jeito ou de outro, me tire daqui, pra Pérsia, Sibéria, pro Clube da Chave, pra Marte, Inglaterra, sem couvert, sem couvert; está vendo o retrato dos meus 20 anos? de lá para cá, cansaço, pé chato, gordura, calvície fizeram de mim essa coisa ansiosa, insegura e com sono, que pede a você, no auge do manso: você, Desossée, não saia esta noite e fique, ao meu lado, esperando que o sono me tome e me mate, me salve e me leve, por amor ao teu andar, assim seja..."

Do genial Antônio Maria, março de 1954

terça-feira, 27 de julho de 2010

Miriam Fraga


INOCÊNCIA

Sai de casa anteontem mesmo,
Com minha camisa de manga comrida branca de cassa
Engomada meigamente por minha mãe.
É difícil acreditar.
Mas esses olhos que hoje enxergam
Um dia brilharam feito esmeraldas
Este dia me trouxe de volta
Com este terno
Sólido
Interno.
Por onde anda aquele menino
De olhar ingênuo
Que nascera na Rua da Matriz
Itaquara?
O menino do olhar
Envelheceu-se.
E,
Das esmeraldas
Resta-me hoje,
Calada,
Esta fotografia infante
Distante
Mais nada.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A MERCÊ DAS MANHÃS


Eu, pecado

me confesso

nessa manhã de domingo

voltando do banheiro

e pedindo um croque monsieur

Eu voltei pro alcoolismo

se tenho que ver essa garota linda

quase etérea no balcão

intimidando meus passos

a carinha de Juliete Binoche

perguntando: “o que cê tá fazendo?”

“você não tá gostando?”

“continua”.

meus dedos roçando suavemente

o lóbulo de sua orelha

atravessando a cidade

morrendo no balcão de uma padaria

Tenho a bandeira brasileira na porta do meu quarto

e um 38 na gaveta do criado

Tenho os olhos injetados

quando leio um poema do Del na frente do hotel

não preciso beber vodka

ninguém vai cheirar meu hálito quando eu chegar em casa

não tem ninguém esperando por mim nessa manhã

peço um corn flakes e misturo com cerveja

Se esse poema parece um epitáfio

é porque descobri que só é possível morrer

quando os deuses se distraem

Vou entrar num restaurante coreano

e pedir um karaokê

Me parece um bom lugar pra morrer



Mário Bortolotto

quinta-feira, 15 de julho de 2010

velhas variações sobre a produção contemporânea


Agora mesmo algum maluco
deve estar postando qualquer treco
genial na internet,
alguém deve estar pensando
em como melhorar aquele
texto enquanto lota o especial
de vinagrete, perseguindo
obstinadamente um acorde
voltando da padaria.

Agora mesmo alguém
pode estar pensando
que guardamos só pra gente
o lado ruim das coisas lindas –
assim, trancafiado a sete chaves
de carinho – alguém
pode estar sentindo tudo ao mesmo tempo
sozinho, assim brutalmente
sentimental, feito coubesse
toda a dignidade humana
num abraço tímido.

Agora mesmo alguém deve estar limpando
cuidadosamente o CD com a camisa,
pulando a ponta do pão pullman,
sentindo o baque da privada gelada,
perguntando quanto está o metro
daquela corda de nylon, trepando
no carro, empurrando o filho
no balanço com uma mão
e na outra equilibrando
a lata e o cigarro, agora mesmo
alguém deve estar voltando,
alguém deve estar indo,
alguém deve estar gritando feito um louco
para um outro alguém
que não deve estar ouvindo.

Agora mesmo alguém
pode estar encontrando sem querer
o que há muito já nem era procurado,
alguém no quinto sono
deve estar virando para o outro lado,
alguém, agora mesmo, no café da manhã
deve estar pensando em outras coisas
enquanto a vista displicentemente lê
os ingredientes do Toddy.

Marcelo Montenegro

sábado, 10 de julho de 2010

Hélio Pellegrino em carta a Fernando Sabino


"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O comêço da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Êste é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."

Hélio Pellegrino em carta a Fernando Sabino, à guisa de prefácio de "O Encontro Marcado"

terça-feira, 6 de julho de 2010

REGIS BONVICINO


Este Poema

Este poema
não chama a atenção
é igual a milhares –
sequer por um momento

ilustra, apático, o passado
caça moscas
paga juros
não tem saco aéreo

víboras, ratos,
ladrões desprezam seu túmulo
uivam lobos de pelúcia
não tem futuro

é abelha cega com sua parelha de óculos
sua língua não é uma esponja
suas antenas farejam Drummond
não enxerga no escuro

não cria inimigos
não morre depois do ataque
não tem farpas
tolera o mundo

domingo, 4 de julho de 2010

SEPARAÇÃO


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.

(Affonso Romano de Sant’Anna, grande poeta e intelectual mineiro, casado com Marina Colsassanti)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Chico Buarque



Desci à Avenida Atlântica, chuviscava, a praia estava deserta, as águas escuras e crespas. Busquei abrigo num quiosque, e me perguntei se algum dia saberia viver longe do mar, em cidade que não terminasse assim num acidente, mas agonizando para todos os lados.

(Trecho extraído do livro Budapeste do genial Chico Buarque)

sábado, 26 de junho de 2010

PARA ELA QUE EU INVENTO ESCREVENDO


Amo
Por princípio
Tudo o que te diz respeito

Amo a fila do banco
Se você esteve
No caixa

Recentemente

Amo o nome
De uma rua

Por que você
Tem passado por ali

Diariamente

E gosto mais
De mim

Por você ter me tocado

E escrevo
Sem medo

Um poema romântico
E anacrônico

Porque a literatura
Só é boa

Quando você
Folheia um livro

Amo seu pai
Porque ele está em você

Amo o guarda
Que fez aquela multa

Porque era seu carro

E amo o cadastro
De sua última consulta
Ao médico

Um papel com sua assinatura

É digno
De todo amor que eu sinto

Amo o fato
De ver que cada uma dessas
Palavras que escrevo

Contradizem tudo o que eu penso

Te amo
Porque te invento

Everton Behenck

quarta-feira, 23 de junho de 2010

LEMINSKI


um bom poema

leva anos

cinco jogando bola,

mais cinco estudando sânscrito,

seis carregando pedra,

nove namorando a vizinha,

sete levando porrada,

quatro andando sozinho,

três mudando de cidade,

dez trocando de assunto,

uma eternidade, eu e você,

caminhando junto

quarta-feira, 16 de junho de 2010

Mário Bortolotto


Assisti o jogo do Brasil com o devido distanciamento. Sozinho em casa pra evitar qualquer explosão de ufanismo do meu lado. Já recebi vários comentários de gente muito puta comigo. Os mais ofensivos, eu simplesmente deleto, como sempre faço. Se quiserem discordar de mim, tá tudo certo, mas sem ofensa, que eu não tô precisando disso e eu não tô ofendendo ninguém no meu blog. Gostei de algumas jogadas do Robinho e do belo gol do Maicon. E da segurança do Juan na zaga. E acho que o Nilmar pode ser melhor aproveitado no time principal. Mas é só. O resto foi um futebol chato do tipo que o Dunga adora. Tem gente que já tá me acusando de torcer pela Argentina. Na verdade não tô torcendo por ninguém. Estou só assistindo os jogos e até agora só gostei do futebol da Alemanha e da Argentina. Isso não quer dizer que esteja torcendo pela Argentina. Só não vou torcer pela seleção evangélica do Dunga, é só isso. Podem inclusive ganhar a Copa, o que é bem possível, mas não me sinto representado por essa seleção. Porra, eu vi a Copa de 70, caralho. Tinha oito anos de idade, mas vi. Então só quero o direito de assistir com o devido distanciamento. Só quero apreciar o bom futebol, independente do país que está jogando. Se o Brasil jogar bem (o que ainda não foi o caso), também quero curtir e ficar entusiasmado. A arte é um troço que me entusiasma e pra mim futebol sempre foi sinônimo de arte.

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Tava conversando dia desses sobre relacionamentos. Alguém me perguntou quando é que eu percebo que um relacionamento acabou. Eu respondi que é quando você vai assistir um filme por exemplo e não sente falta da pessoa que você ama do seu lado na cadeira do cinema. Quando você ama, sente uma necessidade estranha de dividir os bons momentos com a outra pessoa. Quantas vezes assisti um filme sozinho e gostei tanto que precisei convidar a mulher que eu amava pra assistir comigo de novo? E gostava de ver como ela reagia àquela cena que tinha me emocionado e tal, sabem como é? Queria ver se ela também se emocionava ou se achava determinada cena engraçada. É você estar num show de rock e pensar: "Eu queria que ela estivesse aqui ouvindo essa música comigo". Quando isso não é mais importante, acho que acabou. Simples, né?

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sábado, 12 de junho de 2010

Henry Thoreau


"Fui para os bosques porque pretendia viver deliberadamente, defrontar-me apenas com os factos essenciais da vida, e ver se podia aprender o que ela tinha a ensinar-me, em vez de descobrir a hora da morte que não tinha vivido. Não queria viver o que não fosse vida, viver é tão precioso; nem queria praticar resignacão, a não ser que fosse absolutamente necessário. Queria viver profundamente e sorver toda a essência da vida, viver violenta e espartanamente de forma a derrotar tudo que não fosse vida..."

sábado, 5 de junho de 2010

louva-deus


entre as hastes da persiana cor-de-gelo
se alojou um louva-deus de um verde
tão tenro de esperança
que comove

sobrevoa vez em quando a cama e o micro
e pousa displicente na colcha do beliche
por sobre e dentre os livros
de poesia

está aqui há quatro dias

e eu me pergunto o que quer o que pretende
um louva-deus no seu verde tão tenro de
esperança que comove
neste quarto

cor-de-gelo como a cor da persiana onde já
ninguém habitualmente habita além do
micro e da tevê e
do beliche

onde a sono solto hibernam as lembranças
meio a versos dentre os livros esquecidos
e outros mais a
escrever

estão aqui há quatro anos

e agora enquanto a madrugada se desfia
em guns n' roses cantando bob dylan
se revestem de esperança
e enverdecem

como fosse possível transmutar-se o gelo
da persiana e das paredes mais o velho
vermelho do beliche
pelo vôo

entontecido de algum simples louva-deus



Márcia Maia

terça-feira, 1 de junho de 2010

Valéria Tarelho


FECHADO PARA BALANÇO


não conto tudo
às paredes do meu quarto
que me dão tanto crédito
nem dou desconto
ao criado-mudo
que compra meus segredos
(os mais absurdos)

acho um preço justo:
o que peço
e que pago
por um silêncio
trocado

há portas
que por importância alguma
abro




(Valéria Tarelho, natural de Santos/SP (1962), residente em São José dos Campos/SP, separou-se da advocacia devido a um caso com a poesia. Seus primeiros escritos datam de abril de 2002. Está também no Proseares com Sidnei Olívio)

sábado, 29 de maio de 2010

Matinal - Paulo Henriques Britto



Nesta manhã de sábado e de sol
em que o real das coisas se revela
na forma nada transcendente
de uma paisagem na janela
num momento captado em pleno vôo
pela discreta plenitude
de não ser mais que um par de olhos
parado no meio do mundo
tantas coisas se fazem conceber
fora do tempo e do espaço
até que o instante se dissolva
enfim em mil e um pedaços
feito esses furos de pregos
numa parede vazia
a insinuar uma constelação
isenta de qualquer mitologia.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

ana rusche


CALMARIAS

Antes minha tristeza era afluente dos teus olhos.
Mas ela foi se esvaindo em lençóis,
escorreu pelo pé da cama,
inundou o corredor, molhou as portas,
serpenteou pelas ruas, infiltrou-se pela terra,
pela areia, contaminou as brumas,
diluindo-se em todos os oceanos.
Até que me dei conta que
o triste represado nas águas de meus olhos acabou tingindo todo o mar e todo o céu
de blue.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Restos Inúteis


uma flor de plástico murcha
palitos de fósforo queimados
velas que não se sustentam acesas
por mais de quatro horas
livros que não suportam uma terceira leitura
um verso parnaso de pé-quebrado
(pau que nasce torto morre torto)
o quinto replay de um gol impedido
de um jogo da terceira divisão
cabides puídos por golas mal passadas
relógios parados há seis anos
pilhas fracas guardadas no criado-mudo
tempo feio num quadro encardido na parede
moinhos de ventos extintos
órfãos do fantasma de Dom Quixote
velhas lambretas estacionadas
no cemitério da infância
ratoeiras inativas
pregos enferrujados
pedaços de cera de carnaúba esquecidos
curiós empalhados
gaiolas de buriti podres
baganas abandonadas num cinzeiro quebrado qualquer
a última faixa do lado B de um vinil arranhado
que repete há 32 minutos
cacos de cotovelo apoiados em janela inútil
quem olha dali vê passar a grande marcha do nada



Celso Borges
para Marcelo Montenegro, que abriu este baú
(in Belle Epoque)


Foto: Bresson

terça-feira, 11 de maio de 2010

Rubem Braga


O Desaparecido

Rubem Braga



Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.


Do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 112, extraímos o texto acima.

sábado, 8 de maio de 2010

Manuel Bandeira


Auto-Retrato

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

domingo, 2 de maio de 2010

Iracema Macedo


PRISÕES


Iracema Macedo



Antes eu era o incêndio

Agora faço seguro contra fogo

Contra roubos


Eu mesma era furacão

Eu mesma roubava

Agora apaziguo tudo e tranco


Antes eu era as perdas

Agora sou vista pelo bairro, precavida,

Comprando cadeados sob medida


(A poeta potiguar Iracema Macedo é professora de Filosofia do Instituto Federal Fluminense (IFF), Cabo Frio/RJ. Em 2006, lançou sua tese de doutorado em Filosofia “Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos” (Annablume, São Paulo). Publicou dois livros de poemas: Lance de dardos, Edições Estúdio 53, Rio de Janeiro (2000) e Invenção de Eurídice, Editora da palavra, Rio de Janeiro (2004))

sábado, 1 de maio de 2010

Balada do Esplanada


Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.
É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.

Eu queria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel
No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
É o hotel
Do menestrel

Pra me inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel

Mas não há, poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel

Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador

Oswald de Andrade

terça-feira, 27 de abril de 2010

"ELEGIAZINHA"


Ela também,Nivaldete,é da confraria dos felinos.Obrigada Deta pelo poema postado nos comentários.VEJAM QUE BELEZA:

"ELEGIAZINHA"

[i. m. nikita (gata da Inês)]


Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos."

Nelson Ascher

FONTE:
http://poesiailimitada.blogspot.com/search/label/-%20Poesia%20brasileira