domingo, 31 de janeiro de 2010

aos predadores da utopia




dentro de mim
morreram muitos tigres

os que ficaram
no entanto
são livres

LAU SIQUEIRA

(do meu segundo livro, O Guardador de Sorrisos, lançado pelo selo Trema Editorial, em 1998)

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O HAVER


Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Vinicius de Moraes

sábado, 23 de janeiro de 2010

Não tem volta


Zélia Duncan

Se você vai por muito tempo
você nunca volta.
Você retorna,
Você contorna
mas não tem volta
a estrada te sopra pro alto
pra outro lado
enquanto
aquele tempo
vai mudando.
Aí, de quando
em quando você lembra
aquele beijo,
aquele medo
mas você sabe
que tudo ficou antigo
e você não volta
nem com escolta
nem amarrado
porque o passado
já te perdeu
e o perigo
muda mesmo de endereço
Não existe pretexto.
O dia mudou
o carteiro não veio
o principio é o meio
e você retorna
mas não tem volta.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Canção


O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano —

sai para fora do coração
ardendo de pureza —
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor —
esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
— não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

— deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro da carne,
a pele treme na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho —

sim, sim,
é isso o que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar ao corpo
em que nasci.

Allen Ginsberg

domingo, 17 de janeiro de 2010

Poeminha cínico


mesmo o mais cinzento dos domingos
diz-se azul quando amanhece

ainda que em meio a terremotos
maremotos tempestades

mesmo o amor mais corrosivo sabe
a mel quando engatinha

ainda que respingue sangue e fel
a cada passo

mais importa o prometido que o
que encerra

à luz dos dias a crua e cínica
e vã realidade

sendo assim seguem sempre azuis
e doces os amores e os domingos -

a propaganda é a alma do negócio
bem se sabe
Márcia Maia

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

saudade de casa


da lapa ao leblon
tudo me faz falta
nas madrugadas
de itacoatiara a grumari
todas as praias
não tem genipabu nem canoa quebrada
que se compare ao pôr do sol do arpoador
nada, simplesmente nada se compara
ando cansada da estrada e da solidão
aqui não se fala a minha língua
me sinto gringa, estrangeira em meu próprio país
no rio, está a minha poesia
no rio, estão meus amigos
meu teatro está no rio
meus cinemas, avenidas, minhas praças
o rio é a minha praia
aceito seu calor abafado
seus engarrafamentos
minha falta de tempo
aceito estar na linha de tiro do fogo cruzado
conheço seus becos, seus pontos de fuga
na loucura toda, eu me sinto segura
falo o mesmo dialeto
tenho jogo de cintura
lá eu não me meto em furada
a não ser que eu queira
às vezes eu quero
lá eu sempre faço o que eu quero na hora que eu quero
eu sei os caminhos, conheço as ruas por nome e sobrenome
meu carro está parado na garagem esperando eu girar a chave e zunir pra algum lugar
meus amigos estão me esperando em algum bar
meus amigos sempre estão em algum bar
meus amigos sempre sabem que mesmo atrasada eu vou chegar
sinto falta das suas risadas
sinto falta das minhas risadas
ecoando juntas nas madrugadas
sinto falta de andar na rua esbarrando em gente com pressa
sabe? esse tanto de gente, essa urgência...
isso que faz da cidade grande uma enorme galinha apavorada
me sinto um pintinho desgarrado
tenho muita pressa e nenhum lugar pra ir
muita ânsia e nada pra fazer
perdi o hábito de ter férias
é muito estranho não estar atrasada
sinto que estou perdendo tempo quando ele sobra
que vício louco, andar apressada
com mais coisas marcadas do que cabem num dia
esbarrar em pessoas nas ruas me faz sentir acolhida
aqui as pessoas papeiam nas portas das casas
e eu não tenho nada a dizer pra elas (não falo sua língua)
e elas estão distantes, não esbarram em mim, e eu me sinto um peixe fora d'água
sinto falta até mesmo de xingar o despertador impertinente e as buzinas inúteis
sinto falta do uivo dos bêbados na esquina da minha casa
de uivar bêbada nas esquinas dos outros
sinto falta de todos os loucos grunhindo desaforos, batucando canções e se escorando nos postes pra dizer eu te amo para o meio-fio
sinto falta dessa coisa toda, meio dor meio alegria
de tudo, absolutamente tudo
de toda a matéria de que é feito o rio

Beatriz Provasi

sábado, 9 de janeiro de 2010

Charles Bukowski


um bom poema é como uma cerveja gelada
quando você está mais a fim,
um bom poema é um sanduíche de presunto, quando você está
faminto,
um bom poema é uma arma quando
os bandidos te cercam,
um bom poema é algo que
te permite andar pelas ruas
da morte,
um bom poema pode fazer a morte
derreter feito manteiga,
um bom poema pode enquadrar a agonia e
pendurá-la na parede,
um bom poema pode fazer seu pé tocar
a China,
um bom poema pode fazer você cumprimentar
Mozart,
um bom poema permite você competir
com o diabo
e ganhar,
um bom poema pode quase tudo,
isso sem dizer que
um bom poema sabe quando
parar.




CHARLES BUKOWSKI
Tradução: Rodrigo Garcia Lopes

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Mensagem de ano novo


que o novo ano traga mais sonhos
saborosos,
como aqueles que comíamos nas bodegas de cajazeiras
ou nas quitandas de codó

sonhos que derretiam a gula
com açúcares redondos
como se a vida não saísse do lugar
numa inércia que não incomodava nenhuma criança das redondezas

que o novo ano venha devagar
stop, no trânsito e na vida
sem pressa para costurar lidas
sem a ânsia de atropelar a vida

: tudo em compasso lento
para que os sonhos possam ser desgustados
l e n t a m e n t e
- só assim o real não é tão abstrato

que o novo ano saia do forno
quentinho, quentinho
e continue assim por longos 365 dias
- calendário descontruído em 12 meses de sonhos e quimeras

que o novo ano traga o algodão doce
da infância
colorido, leve e doce
receita de alegria e simplicidade no raiar dos 40.

(Linaldo Guedes)

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Trechos de cartas escritas por Caio F. Abreu


“Nuvens negras. Insistimos. Sobrevivemos. A casa tá limpinha, o incenso queima, a roseira tá — medo — sem nenhuma rosa no momento, quarta vou jantar com Maria Adelaide Amaral e quinta ver Bailei na Curva (o Julio Conte ligou hoje). Fica feliz. (...) Você é maravilhoso demais, menino. Se convence, tchê. Me queira bem sempre. Sinto saudades fortes. Faz pensamento bom pra minha cabeça e meu corpo resistirem impávidos & legais, preu achar um moço que diga que sou bonito e não vive sem mim. Te beijo. Te cuida bem. Axé, vários axés.”
- Carta para Luciano Alabarse, de São Paulo, 9/7/1994

“A minha vida sexual tá parecendo uma versão latino-americana & gay do Mulheres, do Bukowski, ando até pensando num texto chamado Os homens que eu tive. Mas de ontem prá cá me deu um enjôo total e só cometi um pequeno felácio. As côsas mudaram muito e muito rápido: eis que Ivan, o belo, não me quis mais — quis morrer de dor, mas decidi que sou ótimo.”
- Carta para Luiz Arthur Nunes, datada "Sampa, acho que 25 ou + ou - isso/junho-84"

“Impossível não pensar em você bebendo literalmente litros de água Perrier todo o dia - o aquecimento seca horrores a pele! -, mas não só por isso. Também procuro as cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo (vi uma autêntica na Fiac, em Paris!), que aqui, neste porto de mar na Bretagne, entre Nantes e Brest, a cidade de Querelle, são bastante raras. São mais cores.”
- Carta para Adriana Calcanhotto, de Saint-Nazaire, França,16/12/92

“Quanto à mim, aconteceram — ah! — algumas tragédias do coração. Diálogos ridículos, tipo, és-um-mito-para-mim e eu dizendo que os mitos também trepam. Tudo isso em pleno Rádio-Clube, no meio de um show de Ângela Ro-Ro. Nada mais perfeito. Tomei um porre de vinho, tiveram que me trazer em casa. Chorei a noite toda, dei vários telefonemas desesperados. Só me puteio por ter me enganado outra vez. Mas gosto de perceber que as dores são cada vez mais rapidamente superadas.”
- Carta para Luciano Alabarse, de São Paulo, 1o/6/1984

“Estava com a carta pronta ontem, quando aconteceu uma coisa e não deu para colocar no Correio. Reinaldo Moraes, aquele meu grande amigo, foi visitar a mãe dele, por volta do meio-dia, e encontrou-a morta, caída no chão da cozinha (...) Resultado: alguns amigos tiveram que segurar junto. Quando vi, estava no meio da coisa. Tipo, vestir a morta, agitar caixão. Essas coisas. Eu nunca tinha visto ninguém morto, exceto Elis, no caixão. Fiquei muito impressionado, mas fui mais forte do que imaginava. O enterro era hoje de manhã, mas não tive coragem de ir, depois de ter ficado no velório ontem, até tarde. Tenho a impressão que alguma coisa muda E muda forte. Não sei bem o quê. É como se estivesse muito mais velho. Assim como se um contato frontal com a morte fosse a única coisa que faltava para ficar definitivamente adulto. Pois é. Era terrivelmente real. E feio. E vazio — alguma coisa já não estava mais lá. A alma? Pode ser.”
- Idem

“São 7h:30 da manhã, acordei às 7h (se você soubesse como ando comportado). Fiz café e acendi um papier d'Arminie, um incenso vegetal que se compra nas farmácias. Parece que vai dar sol hoje. Peter, o amigo alemão de Alexandre, já bate panelas na cozinha. Ele é da Rostok , Alemanha do Leste, e tem o hábito de comer salsichas ao despertar.”
- Carta para Cida Moreira, de Paris, 22/3/1994

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Galos coroados


A crista que amanhece
carrega o sol (re)encarnado:
estrela coroando trovador.

Quando o galo morre

os raios de sol desfalecem
sobre os olhos de bolandeira.
Ouve-se a ruptura do universo,

onde explosão de sangue
coagula-se na galáxia da carne.

Francisnaldo Borges

sábado, 2 de janeiro de 2010

Memórias da emoção


Caio Fernando Abreu definia-se como um autor que corria por fora, distante do pequeno mundo onde os intelectuais das letras brasileiras habitam. Chegou mesmo a afirmar que a literatura brasileira era feita de telefonemas oportunos, de cartão e tal, e que, excetuando-se Heloísa Buarque de Hollanda e Flora Sussekind, a crítica brasileira sofria da incapacidade de absorção de sua literatura. O interessante é que, para fazer todas estas acusações, Caio vivenciou o ambiente literário por dentro. Enquanto viveu, trabalhou como jornalista nas principais revistas do País, colaborou em inúmeros jornais, conheceu autores importantes, ganhou prêmios, ingressou em diversos círculos, teve portas de editoras abertas e fechadas, viajou, voltou, foi traduzido e publicado no exterior.

Foi um grande realizador, transitando da crônica jornalística ao drama com fluidez, apesar da compreensão de que o escritor brasileiro fosse “um escritor de fim de semana, feriados e horas vagas”. Reclamou da falta de profissionalismo para a profissão, de ter de ocupar-se com o jornalismo para sobreviver; ainda mais um jornalismo tão subserviente, “canalha, vendendo comportamentos, manipulando a cabeça das pessoas”, quando sentia que sua vocação era a criação, a tentativa de escrever, aproximar-se de alguma coisa que, imaginava, seria a literatura.

Quem nunca leu nada de Caio Fernando Abreu não sabe o que está perdendo. Mas, se não leu, certamente já ouviu falar dele. Eu ouvi pela primeira vez em 1982, quando li sua obra mais emblemática, Morangos Mofados.

Agora, pegando a edição do livro lançada pela Agir e lendo o segundo conto Os Sobreviventes fiquei presa numa frase que é a cara da chamada geração perdida: “(...) ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80, a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora nem esquecer esse gosto azedo na boca”.

Relendo Morangos Mofados me descobri sublinhando frases, trechos, anotando idéias recorrentes a partir da releitura. E, com o antigo exemplar na mão, fiz um contraponto dos meus momentos atuais com os dos anos 80. Minhas anotações de então funcionam atualmente como sentinelas da memória e das emoções que a releitura do livro me provoca. E descobri que, assim como nos anos 80, Caio e seus livros ainda constituem meu repertório de referências para pensar em minha identidade. Assim como nos anos 80, o estilo de Caio Fernando Abreu ainda vai direto à medula, ao centro nervoso. O Mofo, em nove contos, ainda me deprime... E Os Morangos, em oito contos, dão um fiapo de esperança.

O primeiro conto, Diálogo, é uma conversa entre duas personagens, A e B, na qual uma pergunta insinua um comprometimento que tanto pode ser ideológico quanto afetivo, ficando pautados o medo e a insegurança de ser denunciado ou ser amado, sem abdicar do desejo de ver-se como um igual e sem a coragem de assumir-se como tal. Estes vazios prenunciados no conto de abertura, o dito e o não-dito, marcarão as personagens dos contos seguintes.

Um dos melhores contos do livro é Além do Ponto. Nele é narrada a incursão de um homem rumo ao seu amor ou ao encontro de alguém que ele julga ser o seu amor, expondo toda a sua fragilidade e o desejo de proteção primordial de todos nós, desde que deixamos o ventre materno. A beleza deste conto é comovedora. A linguagem toma forma do fluxo de pensamento e não sabemos se a personagem é louca ou incrivelmente sincera na sua consciência do ser.

E, finalmente no conto que dá título ao livro, Caio sinaliza uma esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam o frescor de sua essência. É como diz o próprio Caio no livro, é como se o personagem se rebelasse, libertando-se do autor e decidindo o final da obra à revelia dele.

Morangos Mofados atravessou o tempo contingente de sua criação para perpetuar-se nas dobras da memória, fertilizando o pensamento, estimulando sucessivas releituras, ato criativo de resignação da obra original. E desta forma tornou-se um ícone, um objeto da história e da reflexão do autor. O discurso de Morangos Mofados ainda me agrada e descubro, relendo a obra, mais um motivo para reler Nietzsche sem perder a esperança nos outros.

Tacilda Aquino - Goiânia.

http://www.overmundo.com.br/overblog/memorias-da-emocao

Há uma gota de sangue no cartão postal


eu sou manhoso eu sou brasileiro
finjo que vou mas não vou minha janela é
a moldura do luar do sertão
a verde mata nos olhos verdes da mulata

sou brasileiro e manhoso por isso dentro
da noite e de meu quarto fico cismando na beira
de um rio
na imensa solidão de latidos e araras
lívido
de medo e de amor

CACASO