sábado, 27 de março de 2010

Elias Canetti


"Dentre as coisas mais importantes que urdem dentro de nós estão os encontros adiados – trate-se de lugares ou de pessoas, de quadros ou de livros. Existem cidades pelas quais anseio tanto, que é como se estivesse, desde o início, predestinado a passar nelas toda uma vida. Usando uma centena de subterfúgios, evito ir até elas, e cada nova oportunidade de uma visita que se me apresenta intensifica em mim de tal maneira a sua importância, que se poderia pensar que só por elas ainda estou neste mundo, que, se não fosse por elas sempre a me esperar, eu teria já de há muito perecido. Existem pessoas sobre as quais gosto que me falem, tanto e com tanta avidez que se poderia pensar que, afinal, sei mais delas que elas próprias. Contudo, evito ver-lhes um retrato, esquivo-me de qualquer imagem visual, como se pesasse uma pesada e justa interdição sobre o conhecer-lhes o rosto.
Há, também, pessoas que durante anos encontro ao passar por um mesmo caminho, sobre as quais reflito – pessoas que se me apresentam como enigmas que me são dados a desvendar – e às quais não dirijo palavra: passo mudo por elas, como elas por mim; olhamo-nos com um ar inquiridor, mantendo os lábios solidamente selados. Fico imaginando uma primeira conversa e excita-me a idéia de todas as coisas inesperadas que ela reserva para mim.
Por fim, existem pessoas que amo há anos, sem que elas possam suspeitar disso. Envelheço, torno-me cada vez mais velho, e deve certamente parecer uma ilusão absurda a idéia de que algum dia eu venha falar-lhes de meu amor, ainda que, na imaginação, viva continuamente da expectativa desse momento divino. Sem esses meticulosos preparativos para o futuro, eu não poderia existir: eles são para mim, se perscruto a mim mesmo com rigor, não menos importantes do que as surpresas repentinas que surgem como que do nada e nos subjugam de imediato." (Elias Canetti, O Jogo dos Olhos (História de uma vida/ 1931-1937)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Cristiane Lisboa


"Il y a toujours quelque chose d'absent que mi tourment"

frase de uma carta escrita por Camille Claudel a Rodin em 1886.

Daqui deste lado do mundo, do mapa, da tela, repito a frase e tento não errar a pronúncia, tão difícil acertar como se diz por culpa de um "e" forte que não perco por graça e, confesso, um certo orgulho. E lembro de Caio, o F (como Christiane, ele diria) falando que sede faz parte. Porque os pedacinhos desconexos que chamamos de dia a dia, vida, horas, histórias particulares, não sei, são sempre tão embaralhados que algo sempre não está ali, algo é presente na ausência, algo se esconde atrás de coisas que não ousamos ou não podemos ou nem tentamos mover. Buenas, C’este la vie. O local onde tento me enganar é amarelo. Daqui vejo fogos de artifício e faço pedidos. Porque cada um tem a estrela cadente que merece.



Escrito por Cristiane Lisboa

terça-feira, 23 de março de 2010

De Amor


Para Maria Nilza Dantas


A despeito do que poderiam os desavisados pensarem, amor e cansaço não são incompatíveis. As pessoas cansam de amar, cansam mesmo. Cansam de amar no vácuo, no vazio, a contra-gosto, na marra, na mão única, com esforço, no amor à camiseta, cansam de amar quando amar é uma luta inglória, é uma sede saciada a conta-gotas. As pessoas cansam de nos amar apesar de nos amarem muito, as pessoas cansam de nos amar quando o amor é à custa de teimosias, defeitos, desaforos, desatenções, estupidezes, falhas de caráter, falta de tempo, descuidos, TPM, stress, chatice, drama, descaso, reclamações, egoísmo, omissões, negligências, filhadaputices, prioridades outras, grosserias, inaptidões, incapacidades, má administração, indiferença, cronograma insano, sacanagens, ingratidões, desídia, pouco caso, desconsideração, intolerância. O amor suporta muito e não espera um escambo de atenção e sentimento, mas o amor tem ida e vinda, tem mão dupla, tem uma razão outra que não é puro altruísmo e desapego. Não pense que quanto mais o outro suporta, quanto mais o outro luta, maior é o seu amor. Isso é uma sabotagem imbecil de quem não se sente merecedor ou capaz de retribuir. Pai dedicado cansa. Filho devoto cansa. Irmão parceiro cansa. Amigo de fé cansa. Até o grande amor cansa. As pessoas cansam e desamam e se perdem e vão embora e não voltam mais. Amor não é para sempre, não, não se engane. O que é para sempre é saudade. E a gente fica triste e fica infeliz e fica miserável e fica com a vida besta e vazia depois que quem nos ama desiste, a gente fica com a vida oca, fica tudo preto e branco e a gente acha que tudo bem, que vai ficar tudo bem e a gente se engana que supera, paciência, não era pra ser, não era forte o suficiente, não era verdadeiro o suficiente, mas não fica tudo bem, não supera coisa nenhuma, não era pra ser uma ova. Nananinanão, senhor. Porque a gente também cansa da tristeza e do vazio, a gente também cansa da solidão e da miséria, a gente também cansa da infelicidade, mais cedo ou mais tarde, e aí ó, babaus, já cansaram de nós. Portanto, não ponha o amor à prova. Não se proponha a testar até onde ele suporta. Amor não é gincana, não é rali, não é prova de resistência. Amor é pra amar e cuidar muito bem. Já chega o fato de que tem todo o resto do mundo para criar problema, para dar trabalho, para dificultar as coisas. Lute por e não contra. Lute muito, lute bastante. Mereça o seu amor enquanto ele ainda é seu e ainda está aqui. E que 2008 nos encontre de frente e braços abertos, cheios de coragem para amar e deixar-se ser amado.
www.ticcia.com

sábado, 20 de março de 2010

IRACEMA MACEDO




POEMA DO LOBO-DO-MAR


Como proteger-me desse lobo que vem vindo
Em que ilhas poderei me ocultar
em que barcos ousarei fugir
desse lobo que domina os barcos e as ilhas?

Reúno roupas negras faca escudo
De que adianta enfrentá-lo do meu jeito
se ele me despe do jeito que ele quer?

Como proteger-me dessas ondas
de prazer que ele traz em suas brisas
De que vale feri-lo com meus versos
De que vale me lançar ao mar

Se não há como esconder-me de mim mesma
do exílio que sinto quando fujo
da vontade que tenho de ficar?

A foto que ilustra esse poema é de Henri Cartier Bresson

quarta-feira, 17 de março de 2010

RELENDO GARY SNYDER


FORA DA TRILHA


Somos livres pra encontrar nosso próprio caminho
Sobre pedras – por entre as árvores –
Onde não há nenhuma trilha. O cume e a floresta
Se apresentam aos nossos olhos e pés
Que decidem por si mesmos
Em sua sabedoria ancestral de ir
Aonde a vida selvagem nos levará. Nós já
Estivemos aqui antes. É de algum modo mais profundo
Do que seguir por sendas que dispõem algumas rotas
Às quais você se apega,
Todos os cursos são possíveis, muitos darão resultado,
Serem bloqueados é seu tipo de prazer próprio,
Atravessar é uma alegria, as rotas secundárias
E os desvios revelam troncos caídos e flores,
Rastros de cervo direto pra cima, rastros de esquilo
Transversais, os afloramentos nos arrastam além.
Descansar em troncos de árvores,
Mudar o passo no leito de rocha, inclinados e olhando tudo
Ambos fazendo escolhas – segurando os rumos agora –
E depois reunindo; eu estou certo, você está certa,
Terminamos juntos. Mattake, “Cogumelos Matsutake”
Elevações na base dum toco. Isto é vida selvagem!
Nós rimos, selvagem com certeza,
Porque nenhum lugar é mais belo do que outro,
Todos os lugares são totais,
E nossos tornozelos, joelhos, ombros &
Quadris sabem bem onde eles estão.
Relembro agora como o Tao Te
Ching expõe isto: a trilha não é o caminho.
Nenhuma senda levará você até lá, estamos fora da trilha,
Você e eu, e nós escolhemos isto! Nossas viagens ao ar livre
Através dos anos têm sido prática
Desta perambulação juntos,
Nas montanhas recônditas
Lado a lado,
Sobre pedras, por entre as árvores.

Tradução: Luci Collin

sábado, 13 de março de 2010

Rubem Braga


O padeiro

Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.

Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:

- Não é ninguém, é o padeiro!

Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?

"Então você não é ninguém?"

Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...

Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal, quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.

Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.



Texto extraído do livro:
Para gostar de ler, Vol I -Crônicas . Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga. 12ª Edição. Editora Ática . São Paulo.1989. p.63 - 64.

segunda-feira, 8 de março de 2010

Clarice Lispector


Através dessa belíssima carta de Clarice minha homenagem a todas as mulheres no nosso dia.

Em 95, o escritor Caio Fernando Abreu, então colunista do jornal O Estado de São Paulo, publicou uma carta que teria sido escrita por Clarice Lispector a uma amiga brasileira. Ele comenta, no artigo, que não há nada que comprove sua autenticidade, a não ser o estilo-não estilo de escrita de Clarice Lispector. Ele dizia: "A beleza e o conteúdo de humanidade que a carta contém valem a pena a publicação..."

Berna, 2 de janeiro de 1947
Querida, Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perde o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.
Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e dos outros. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, um mês antes de irmos para o Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar. Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a dura comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.
Uma amiga, um dia, encheu-se de coragem, como ela disse e me perguntou: "Você era muito diferente, não era?". Ela disse que me achava ardente e vibrante, e que quando me encontrou agora se disse: ou esta calma excessiva é uma atitude ou então ela mudou tanto que parece quase irreconhecível. Uma outra pessoa disse que eu me movo com lassidão de mulher de cinqüenta anos. Tudo isso você não vai ver nem sentir, queira Deus. Não haveria necessidade de lhe dizer, então. Mas não pude deixar de querer lhe mostrar o que pode acontecer com uma pessoa que fez pacto com todos, e que se esqueceu de que o nó vital de uma pessoa deve ser respeitado. Ouça: respeite mesmo o que é ruim em você - respeite sobretudo o que você imagina que é ruim em você - pelo amor de Deus, não queira fazer de você mesma uma pessoa perfeita - não copie uma pessoa ideal, copie você mesma - é esse o único meio de viver.
Juro por Deus que se houvesse um céu, uma pessoa que se sacrificou por covardia - será punida e irá para um inferno qualquer. Se é que uma vida morna não será punida por essa mesma mornidão. Pegue para você o que lhe pertence, e o que lhe pertence é tudo aquilo que sua vida exige. Parece uma vida amoral. Mas o que é verdadeiramente imoral é ter desistido de si mesma. Espero em Deus que você acredite em mim. Gostaria mesmo que você me visse e assistisse minha vida sem eu saber. Isso seria uma lição para mim. Ver o que pode suceder quando se pactua com a comodidade de alma. Tua Clarice

domingo, 7 de março de 2010

Estrangeira


Abriga-me em suas coxas
pois perdi a rota.
Por erro, talvez.
Raro destino, quem sabe.

Fui além de mim.

Afastei-me de casa.
Confundi-me com outras.
Surpreendi-me.

Os fios que teci na sua escuridão
tornaram-me seta e luz.

Masi estrangeira do que sempre fui.

Marize Castro

quinta-feira, 4 de março de 2010

A MÚSICA DO DIA


Esse blog não tem nenhuma pretensão intelectual,uso essa espaço para registrar os textos que curto e na maioria das vezes gostaria de tê-los escritos.Então aqui vai desde Jack Kerouac a Ana cristina Cesar.Hoje posto uma letra de Fred Jorge, gravado pelo rei Roberto Carlos no ínicio da sua carreira,uma das mais bonitas e até hoje não entendo porque é pouca conhecida.Não poderia deixar de mencionar o nome de Vicente Januário,foi ele quem me primeiro me apresentou a essa música.Vicente, especialmente pra vc:


A PALAVRA ADEUS



Roberto Carlos
Composição: Fred Jorge
Eu não posso compreender
Porque tudo mudou pra mim
Foi uma palavra só
Que tudo destruiu em mim
Porque o mar tão calmo
Não se transformou em fúria
E não calou a voz que sem tremer
Me disse aquele adeus

Vi a luz do entardecer
Aos poucos se apagar pra mim
Não, não sabia se você
Ainda estava junto a mim

Chorei e o pranto a deslizar
Nem mesmo me deixava ver
O rosto que disse sem tremer
Aquele triste adeus

Porque o mar tão calmo
Não se transformou em fúria
E não calou a voz que sem tremer
Me disse aquele adeus

Vi a luz do entardecer
Aos poucos se apagar pra mim
Não, não sabia se você
Ainda estava junto a mim

Chorei e o pranto a deslizar
Nem mesmo me deixava ver
O rosto que disse sem tremer
Aquele triste adeus

Aquele triste adeus

Aquele triste adeus