quinta-feira, 28 de abril de 2011

Caio F. Abreu


“Olha, estou escrevendo só pra dizer que se você tivesse telefonado hoje eu ia dizer tanta, mas tanta coisa. Talvez mesmo conseguisse dizer tudo aquilo que escondo desde o começo, um pouco por timidez, por vergonha, por falta de oportunidade, mas principalmente porque todos me dizem sempre que sou demais precipitado, que coloco em palavras todo meu processo mental (processo mental: é exatamente assim que eles dizem, e eu acho engraçado) e que isso assusta as pessoas, e que é preciso disfarçar, jogar, esconder, mentir. Eu não queria que fosse assim. eu queria que tudo fosse muito mais limpo e muito mais claro, mas eles não me deixam, você não me deixa. Hoje eu achei que ia conseguir, que ia conseguir dizer, quero dizer, dizer tudo aquilo que escondo desde a primeira vez que vi você…" Caio F. Abreu

terça-feira, 19 de abril de 2011

A renúncia de Roberto Carlos


Hoje ele acordou com 70 anos. Não é uma sensação agradável, nem mesmo para quem sabe que será homenageado com uma festa, receberá presentes, será lembrado. Mas Roberto Carlos não tem motivos para comemorar: sua coleção de perdas pessoais é enorme e difícil de suportar. Sua filha mais velha morreu há poucos dias. A mãe foi embora há um ano. O grande amor parece que também se foi há alguns anos. Ele acordou só, com seus 70 anos.

O herói vocal do Brasil não gosta que comentem sua vida privada. Talvez nem mesmo ele queira pensar nela. Mas há momentos inevitáveis, em que as canções e as emoções convergem ao mesmo ponto. E o músico teve de adiar o espetáculo que faria amanhã em Vitória, por ocasião de seu aniversário. A produção do show justifica que naturalmente Roberto está de luto. O que leva os admiradores a imaginar o que ele está passando agora que completa uma data tão importante e, de certo modo, tão grave – sobretudo para um artista que ostentou, nos anos 60, nos tempos da Jovem Guarda, o título de “o Rei da Juventude”. Com o tempo, virou apenas “o Rei”. Quem um dia foi jovem não pode mais ser jovem, eis a tragédia. Restam as emoções vividas, como Roberto diz numa canção, e a arte: a arte do canto, à qual se dedicou ao longo de 52 anos de carreira, e pela qual conquistou a glória. O que tudo isso significa? Nesta data querida, o músico brasileiro mais celebrado parece mostrar que sua vida foi dedicada à arte, a ponto de ter renunciado muitas vezes às suas alegrias, em nome da missão maior de cantar diante das multidões, compartilhando seu coração com elas. Não, como diz Paulo Coelho em um tuíte recente, alegria não é pecado, sacrifício não é virtude. Na arte de Roberto Carlos, porém, a oposição arte-vida faz todo o sentido. E é talvez a senha para compreender suas cerca de 450 composições próprias, para não mencionar aquelas que interpretou, infundindo nelas um sopro genial.

Sonhei esta noite com as canções do Roberto, certamente porque desde menino eu as tenha introjetado. Na semana passada, ao elaborar para a revista ÉPOCA uma lista de 20 delas, metade conhecida e metade não, percebi espantado que as sabia de cor. Logo eu, que esqueço tudo que é letra de música. Foi assim que sonhei com as canções, entoando-as inteirinhas, umas cinco ou seis, como se fossem minhas. Elas se gravaram no meu subconsciente. Imagino que muita gente também cante essas músicas sem nem pensar. Esse fenômeno pode indicar, entre outros, o papel fundamental de Roberto na cultura brasileira. Sua voz vibra nos ouvintes em um plano aquém da razão.

O que quero dizer é um truísmo, uma aparente obviedade: a trajetória de Roberto Carlos está registrada em suas canções. As emoções experimentadas tão intensamente pelo homem se impregnaram na sua arte. É o que acontece com todos os artistas. No entanto, examinadas em conjunto e em perspectiva, as músicas de Roberto contêm uma peculiaridade. Elas contam uma história de fragilidade, abandono, paixão, fé e resignação. Seu percurso é pedagógico, iniciático. Vida e obra parecem se confundir no início, para depois seguirem caminhos divergentes. O acidente que lhe tirou uma perna quando tinha 5 anos na cidade natal de Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo (onde nasceu em 19 de abril de 1941), deixou evidentemente marcas profundas em sua personalidade – e em sua atividade artística. Ao iniciar a carreira, em 1959, incentivado pelo produtor Carlos Imperial, imitava o estilo do inovador vocal do momento: João Gilberto e sua bossa-nova. Cantava sambas líricos e melancólicos, como “João e Maria”, lançado em compacto simples em 1959.

A guinada alegre veio em seguida, quando adotou o rock’n’roll no estilo bubble gum de Tony e Celly Campello. Daí resultaram músicas como “Splish splash” (1962) e “É proibido fumar” (1964). Da alegria, Roberto saltou para a atitude rebelde. Isso aconteceu por volta de 1965, quando começou a lançar rocks atrevidos misturados ao rhythm’n’blues do parceiro Erasmo carlos. O exemplar mais interessante dessa fase é “Quero que vá tudo pro inferno”, um rock que preconiza a transgressão amorosa como solução para a felicidade. Líder da Jovem Guarda, Roberto consagrou o iê-iê-iê, como passou a denominar o rock que sua turma lançava no programas de televisão de domingo. Roberto e a Jovem Guarda exaltavam alegremente o consumismo e a realização de todas as pulsões.

Na segunda metade da década de 60, Roberto fez a apologia do sexo e da velocidade, em canções que podiam lembrar as dos Beatles, mas já continham o gérmen da originalidade. Em baladas como “As curas da estrada de Santos”, e “120... 150... 200 km por hora”, o poeta se atira à alta velocidade para assim não ter de encarar a vida. A velocidade dissipa as formas, mistura as cores e apaga o vínculo do sujeito com o mundo concreto.

No finalzinho dos anos 60, o lirismo e as canções românticas assomaram na obra do músico. Foi em 1971 que Roberto lançou, no seu terceiro disco com o título Roberto Carlos (quase todos levariam este nome doravante), sua canção mais famosa e bonita: “Detalhes”. Reparando bem, a melodia soa como uma seresta e seus versos, povoados de reticências, propõem a abnegação e mesmo a negação do amor. O poeta se dirige ao objeto amado, tomado pela saudade, o fatalismo e a incapacidade de obter prazer novamente. Os seguintes versos são o cerne da canção: “Se alguém tocar/ Seu corpo como eu/ Não diga nada/ Não vá dizer meu nome/ À pessoa errada... Pensando ter amor/ Nesse momento/ Desesperada você/ Tenta até o fim/ E até nesse momento/ Você vai/ lembrar de mim...” A projeção do poeta sobre o desejo da amada é dramática na junção do amor ideal com o carnal: nem ela, a musa, será capaz de chegar ao orgasmo sem seu velho amor. O cantor soa como um fantasma a rondar a vida de sua antiga amante, como num conto gótico. No fundo, todo amor resulta impossível, pois não é lícito viver a um só tempo o prazer físico e a transcendência espiritual. Não existe canção de Roberto mais romântica e emblemática que “Detalhes”.

Sobrevém um travo amargo nessa música, como em quase todas que advirão na vida do cantor. Ali se encontra a irreconciliável dualidade entre vida e arte, entre espírito e corpo, entre mundo e artista. Sua fuga posterior será rumo à religião, aos hinos católicos que veem na elevação do espírito a redenção dos pecados. Porque amar, no fim das contas, na obra do músico, não deixa de ser o mais sonhado dos pecados terrenos. O artista começou imitando os modelos que admirava, seguiu assumindo a atitude irresponsável da juventude transviada, mergulhou no desejo e finalmente viu Jesus Cristo.

Roberto é, assim, o exemplo do artista que se sacrifica à arte, que encara a vida como um campo de experiências que resultam em canções puras e simples. Para esculpir sua obra, como o escultor francês François-Auguste René Rodin, o músico se dedicou ao apostolado da grande arte, do trabalho interminável da canção perfeita. Um segredo que, infelizmente, ele próprio foi perdendo, à medida que quis subir aos céus da transcendência devocional. Curiosamente, ao abdicar da carne, o artista extraviou o que tinha de mais denso e lírico. Nesse sentido, nessa monumental e comovente derrocada que é sua arte, Roberto Carlos se revela profundamente romântico, não no sentido banal do termo, mas no da estética do movimento romântico do século XIX. A exemplo dos poetas românticos, ele se retirou do mundo dos homens comuns, isolou-se nos palcos dos estádios lotados e sacrificou sua arte a Deus. Mas talvez não tenha havido outra saída para o indivíduo e sua coleção de sofrimentos. Hoje ele acordou com 70 anos. E todos nós, seus admiradores, também despertamos com o fardo de tanta beleza.

(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras na revista época).

domingo, 17 de abril de 2011

FRASQUEIRA


bruna beber

não me emocionam mais os surtos heróicos

de marina para segurar o que já vai

arranhando as unhas nas paredes do precipício



e deixo cair



os espasmos de saudade que marina sente

do que perdeu porque não cuidou

não me emocionam mais



ah, a juventude, a de marina segue relapsa

fazendo de conta como nos livros infantis

e aquela fantasia não me emociona mais



uma pena



meu coração parou de bater

na tecla que marina chama de destino

e agora o que marina chama de amor

eu não atendo mais.

domingo, 10 de abril de 2011

Garras


Fica tua imagem e tua lembrança,
a ruminar nas telhas,
feito gato em crise.
Fica o teu cheiro e o teu silêncio,
a me apontar no escuro,
com o dedo em riste.
Fica tudo o que ficou,
por esquecimento.
O que não levastes,
por estranhamento.
Fica a tua ausência e o teu desgosto,
tuas garras em meu braço,
nervo exposto.

Luís Pimentel, em O Calcanhar da Memória, Bertrand Brasil.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O Conde e o Passarinho




Acontece que o Conde Matarazzo estava passeando pelo parque. O Conde Matarazzo é um Conde muito velho, que tem muitas fábricas. Tem também muitas honras. Uma delas consiste em uma preciosa medalhinha de ouro que o Conde exibia à lapela, amarrada a uma fitinha. Era uma condecoração (sem trocadilho).

Ora, aconteceu também um passarinho. No parque havia um passarinho. E esses dois personagens - o Conde e o passarinho - foram os únicos da singular história narrada pelo Diário de São Paulo.

Devo confessar preliminarmente que, entre um Conde e um passarinho, prefiro um passarinho. Torço pelo passarinho. Não é por nada. Nem sei mesmo explicar essa preferência. Afinal de contas, um passarinho canta e voa. O Conde não sabe gorjear nem voar. O Conde gorjeia com apitos de usinas, barulheiras enormes, de fábricas espalhadas pelo Brasil, vozes dos operários, dos teares, das máquinas de aço e de carne que trabalham para o Conde. O Conde gorjeia com o dinheiro que entra e sai de seus cofres, o Conde é um industrial, e o Conde é Conde porque é industrial. O passarinho não é industrial, não é Conde, não tem fábricas. Tem um ninho, sabe cantar, sabe voar, é apenas um passarinho e isso é gentil, ser um passarinho.

Eu quisera ser um passarinho. Não, um passarinho, não. Uma ave maior, mais triste. Eu quisera ser um urubu.

Entretanto, eu não quisera ser Conde. A minha vida sempre foi orientada pelo fato de eu não pretender ser Conde. Não amo os Condes. Também não amo os industriais. Que eu amo? Pierina e pouco mais. Pierina e a vida, duas coisas que se confundem hoje, e amanhã mais se confundirão na morte.

Entendo por vida o fato de um homem viver fumando nos três primeiros bancos e falando ao motorneiro. Ainda ontem ou anteontem assim escrevi. O essencial é falar ao motorneiro. O povo deve falar ao motorneiro. Se o motorneiro se fizer de surdo, o povo deve puxar a aba do paletó do motorneiro. Em geral, nessas circunstâncias, o motorneiro dá um coice. Então o povo deve agarrar o motorneiro, apoderar-se da manivela, colocar o bonde a nove pontos, cortar o motorneiro em pedacinhos e comê-lo com farofa.

Quando eu era calouro de Direito, aconteceu que uma turma de calouros assaltou um bonde. Foi um assalto imortal. Marcamos no relógio quanto nos deu na cabeça, e declaramos que a passagem era grátis. O motorneiro e o condutor perderam, rápida e violentamente, o exercício de suas funções. Perderam também os bonés. Os bonés eram os símbolos do poder.

Desde aquele momento perdi o respeito por todos os motorneiros e condutores. Aquilo foi apenas uma boa molecagem. Paciência. A vida também é uma imensa molecagem. Molecagem podre. Quando poderás ser um urubu, meu velho Rubem?

Mas voltemos ao Conde e ao passarinho. Ora, o Conde estava passeando e veio o passarinho. O Conde desejou ser que nem o seu patrício, o outro Francisco, o Francisco da Umbria, para conversar com o passarinho. Mas não era aquele, o São Francisco de Assis, era apenas o Conde Francisco Matarazzo. Porém, ficou encantado ao reparar que o passarinho voava para ele. O Conde ergueu as mãos, feito uma criança, feito um santo. Mas não eram mãos de criança nem de santo, eram mãos de Conde industrial. O passarinho desviou e se dirigiu firme para o peito do Conde. Ia bicar seu coração? Não, ele não era um bicho grande de bico forte, não era, por exemplo, um urubu, era apenas um passarinho. Bicou a fitinha, puxou, saiu voando com a fitinha e com a medalha.

O Conde ficou muito aborrecido, achou muita graça. Ora essa! Que passarinho mais esquisito!

Isso foi o que o Diário de São Paulo contou. O passarinho, a esta hora assim, está voando, com a medalhinha no bico. Em que peito a colocareis, irmão passarinho? Voai, voai, voai por entre as chaminés do Conde, varando as fábricas do Conde, sobre as máquinas de carne que trabalham para o Conde, voai, voai, voai, voai, passarinho, voai.



Rubem Braga

sábado, 2 de abril de 2011

A INVENÇÃO DE UM MODO


Entre paciência e fama quero as duas,
pra envelhecer vergada de motivos.
Imito o andar das velhas de cadeiras duras
e se me surpreendem, explico cheia de verdade:
tô ensaiando. Ninguém acredita
e eu ganho uma hora de juventude.
Quis fazer uma saia longa pra ficar em casa,
a menina disse: "Ora, isso é pras mulheres de São Paulo"
Fico entre montanhas,
entre guarda e vã,
entre branco e branco,
lentes pra proteger de reverberações.
Explicação é para o corpo do morto,
de sua alma eu sei.
Estátua na Igreja e Praça
quero extremada as duas.
Por isso é que eu prevarico e me apanham chorando,
vendo televisão,
ou tirando sorte com quem vou casar.
Porque que tudo que invento já foi dito
nos dois livros que eu li:
as escrituras de Deus,
as escrituras de João.
Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão.

Adélia Prado