sexta-feira, 27 de maio de 2011

Vinicius de Moraes


Ausência
Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinícius de Moraes

sexta-feira, 20 de maio de 2011

O que eu quero de vc


Quero acordar do seu lado num domingo de manhã e saber que não temos hora para sair da cama. E, depois, ir tomar café na padaria e ler o jornal com você. Quero ouvir você me contar sobre o trabalho e falar detalhadamente de pessoas que eu não conheço, e nem vou conhecer, como se fossem meus velhos amigos. Quero ver você me olhar entre um gole de café e outro, sem nada para dizer, e apenas sorrir antes de voltar a folhar o caderno de cultura. Quero a sua mão no meu cabelo, dentro do carro, no caminho do seu apartamento. Quero deitar no sofá e ver você cuidar das plantas, escolher a playlist no ipod e dobrar, daquele seu jeito metódico e perfeccionista, as roupas esquecidas em cima da cama. E que, sem mais nem menos, você desista da arrumação, me jogue sobre a bagunça, me beije e me abrace como nunca fez antes com outra pessoa. E que pergunte se eu quero ver um DVD mais tarde. Quero tomar uma taça de vinho no fim do dia e deitar do seu lado na rede, olhando a lua e ouvindo você me contar histórias do passado. Quero escutar você falar do futuro e sonhar com minha imagem nele, mesmo sabendo que eu provavelmente não estarei lá. Quero que você ignore a improbabilidade da nossa jornada e fale da casa que teremos no campo. Quero que você a descreva em detalhes, que fale do jardim que construiremos, e dos cachorros que compraremos. E que faça tudo isso enquanto passa a mão nas minhas costas e me beija o rosto. Quero que você nunca perca de vista a música da sua existência, e que me prometa ter entendido que a felicidade não é um destino, mas a viagem. E que, por isso, teremos sido felizes pelos vários domingos na cama e pelos sonhos que comparilhamos enquanto olhávamos a lua. Que você acredite que não me deve nada simplesmente porque os amores mais puros não entendem dívida, nem mágoa, nem arrependimento. Então, que não se arrependa. Da gente. Do que fomos. De tudo o que vivemos. Que você me guarde na memória, mais do que nas fotos. Que termine com a sensação de ter me degustado por completo, mas como quem sai da mesa antes da sobremesa: com a impressão que poderia ter se fartado um pouco mais. E que, até o último dia da sua vida, você espalhe delicadamente a nossa história, para poucos ouvintes, como se ela tivesse sido a mais bela história de amor da sua vida. E que uma parte de você acredite que ela foi, de fato, a mais bela história de amor da sua vida. Que você nunca mais deixe de pensar em mim quando for a Londres, escutar Dream' Bout Me ou ler Nick Hornby. E, por fim, que você continue a dançar na sala. Para sempre. Mesmo quando eu não estiver mais olhando.
Milly Lacombe é cronista do Blônicas

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Maria Rita Kehl: o Rio não para de chegar


Armandíssimo,

Engraçado te escrever uma carta dias depois de ter conversado tanto tanto com você e Cri, aí no Rio, do nosso jeito: na copa enquanto o molho apurava no fogão, a portas fechadas, depois passando para a sala de jantar, e a de “visitas” – estranho a permanência desse nome no espaço mais generoso da casa, mas não aceito chamá-lo de living – e ainda na calçada à espera do táxi, perto do cocô do cachorro, até os 47 minutos do segundo tempo.

E agora, por escrito, o que mais? Sua última carta é ótima e me faz suspirar pela promessa da poesia escrita na resignação. Quem sabe, se eu conseguisse escrever assim, ficaria mais zen – bem que meus filhos gostariam.

Filhos: vou de trás pra frente, desenrolando o novelo da conversa do sábado. Ninguém nos confronta mais com o que nós somos do que os filhos. Corrijo: ninguém nos confronta mais com o pior do que somos do que os filhos. Nem o cônjuge, para quem tem um, que palavra horrível para designar o amor da vida das pessoas. Nem os críticos, para aqueles que escrevem, filmam, compõem etc. Nem o público, para quem é da vida pública. Ninguém melhor ou pior do que os filhos para nos colocarem na berlinda, mostrarem a nossa cara num espelho mesquinho, egoísta, brutal, distraído, banal.

Ponto. É só um desabafo mais ou menos atualizado.

Agora, o Rio. Gosto tanto do Rio que tenho medo de abraçar a cidade de vez, virar carioca e me decepcionar. Um namorado que veio do Rio para viver em São Paulo e você sabe quem é, uma vez me disse diante da janela do Novo Mundo aberta para a baía de Guanabara: “É como se eu fosse o ex-marido da Catherine Deneuve. Sei que ela é linda, desejável, amável, uma unanimidade internacional. Mas só eu conheço as histerias, os achaques, as crises e a chatice dela. Não volto, não. Prefiro sentir saudades de longe”. Outro comentário dele que muito me fez pensar foi quando eu disse que deveria ser maravilhoso morar no Rio de Janeiro, e ele me respondeu de pronto: “Até o dia em que você precisar de um encanador”. Poderia ser marceneiro, pedreiro, mecânico, sapateiro. Entendi na hora. Talvez só meus amigos muito ricos, que pagam caro por profissionais de ponta, não assinassem em baixo dessa observação amargurada.

Também vale indagar o que diriam os encanadores, mecânicos, pedreiros, sapateiros e marceneiros a respeito do profissionalismo, na outra ponta da corda, dos doutores “sangue bom” e das madames cariocas.

Então: às vezes penso que o melhor do Rio é, sem tirar nem pôr, idêntico ao pior dele. O pré-capitalismo, por exemplo, em que a cidade ainda se mantém (com exceção da Barra, mas a Barra pra mim é outro município). O pré-capitalismo que conserva dentro do Rio de agora o século XIX, os anos 1930, 1960, ou seja, o tal “caldeirão de mitos”, que é como meu amigo Rubens Machado nomeou o significado do Rio para o cinema do Bressane. O pré-capitalismo que faz dos pequenos bairros cariocas recantos caseiros, provincianos, dominados pelo povo miúdo que ocupa as ruas a seu gosto e vive como pode e como quer. No entanto são pedaços da cidade que certamente valem milhões. Ai que medo do Eike Batista: os melhores sonhos modernizantes dele se parecem com meus pesadelos. O pré-capitalismo que é o pior defeito do Rio das relações de trabalho atrasadas, dos favores políticos, das “500 famílias” como você diz – e que também faz o encanto da cidade. Vai do traçado urbano, muito pedestre perto do centro, que permite a permanência de quarteirões tão inacreditáveis que nem vou mencionar por escrito para não dar ideias a algum empreiteiro; e que atinge também a sociabilidade descompromissada, passante, entre desconhecidos que não fazem cerimônia com os outros, tanto na simpatia quanto no mau humor. O Rio me dá saudades do Brasil. Quando vou a sua casa e passo pelo lindo prédio da UFRJ que traz na fachada “Universidade do Brasil”, eu penso, sim: cheguei no Brasil. Vim de São Paulo e cheguei no Brasil.

Sentia o mesmo ao descer no Santos Dumont, da escadinha do avião para a pista, e sentia o bafo do Rio, o cheiro sexual da maresia: cheguei no Brasil. Há uns cinco anos escrevi um poema, outro da “Suíte do Rio”, prevendo o fim desse jeito de chegar na cidade que me deixava comovida feito o diabo.

1. Santos Dumont


Mas vai chegar o dia em que a nave atracará num finger

e em vez da maresia o vento mastigado

em vez do bafo a assepsia.


Dia de a fibra arrefecer

a pisada do viajante

o abraço do sol


e um intervalo morto

adiar a refrega

entre a cidade

e o corpo.


Chegou o dia, mais depressa do que eu esperava. Desço do avião que pousa na ponta da baía e entro no tubo de borracha e ar condicionado. O impacto da cidade demora uns minutos mais.

Mas como assim? Estamos condenados a amar sempre o que já foi? Amamos o que já foi porque é o que conhecemos. Mas reformulo. Não tenho saudades do Brasil do atraso, da miséria, da desigualdade e tudo o mais que conheço tão bem. Nem do Rio do esgoto a céu aberto, adolescentes de fuzil na mão, elite mal-educada, carros estacionados nas calçadas.

Tenho saudades do sonho de um Rio de Janeiro que a transformação daquele outro prometia. Tenho saudades do Brasil sonhado por muitos de nós antes do golpe militar, por exemplo. Mas a transformação não virá como nos nossos sonhos. Virá com a histeria da Copa, a especulação imobiliária, a multiplicação dos bilionários, dos grandes empreendimentos, e daquilo que você muito bem observou, os carros brutais vestidos de luto com motoristas-fantasma que passam por cima do mundo sem olhar pra trás.

O Rio que eu adoro não é o clichê turístico da festa: parece mais uma doce melancolia. Onde a cidade é mais pobre, ninguém perde uma oportunidade de ser feliz. Chamo essa parte de Rio ruim. São ruas apertadas e sujas, perto do centro, do Catete, do Cosme Velho (adoro esse nome). Ruas cheias de gente ocupada com as atividades mais improváveis, instalada nos cantos mais absurdos para montar pequenas bancas a oferecer servicinhos e produtos modestíssimos, conversando em voz alta como se estivessem em casa, bebendo cerveja na calçada suja, vivendo do mínimo do mínimo. Economia de subsistência com uma vontade de alegria invencível.

Por este Rio ruim eu ando a esmo, dobro uma esquina, sou tomada por um cheiro velho ou pela mudança da luz filtrada pela copa de uma amendoeira e me espanto, com o quê? Vou roubar um verso que você escreveu para a Cri no Cabeça de homem, acho, para expressar esse espanto: “você não para de chegar”. É o que eu sinto, a cada vez: o Rio não para de chegar.

Maria Rita Kehl

sábado, 7 de maio de 2011

"Namoro o Tejo!"


Tejo Lindo Tejo!"

Nas tuas margens passeio sozinho,
Caminho ao longo da beleza,
Da rara doçura, com certeza,
Sempre acolhedor e calminho.

Chego-me de ti muito pertinho,
Meto a mão em ti, sinto a frieza
Dos longos séculos e a firmeza
Do teu leito bem Formosinho.

Tejo lindo Tejo, que escutas
O meu coração ferido de amor,
Sentes compaixão desta minha dor.

Tejo lindo Tejo, que me contas?
Histórias de encantar e cor,
Se, mas vendes estou comprador

Felipe Mendes

OBS: A foto que ilustra esse poema é de Carlos Gomes.