sexta-feira, 30 de março de 2012

Cascudo por Veríssimo de Melo


Veríssimo de Melo

Eu trabalhei muitos anos no jornal A República, ficava quase vizinho à casa de Cascudo. E achava estranho, todo dia, às duas horas da tarde, ele saía de casa, paletó, gravata, chapéu, charutão no bico, sozinho, em direção à Ribeira. O que é que Cascudo vai fazer todos os dias, duas horas da tarde, lá pra Ribeira, bairro comercial nosso? Um dia vou seguir Cascudo, pra saber o que faz.
Certo dia eu o segui. Ele atravessou a rua Doutor Barata, conversando com um com outro, abraçando um e outro, finalmente dobrou a avenida Tavares de Lyra e entrou num barzinho, um barzinho vagabundo. Eu tive até certo acanhamento de entrar. Demorei um pouco, finalmente tomei coragem e entrei: ele estava sentado na cabeceira de uma mesa, ao lado uma garçonete, e do outro lado um motorista da praça, todos os três tomando cerveja. Eu disse:
- Mestre, o que está fazendo aqui?
- Você num está vendo, meu filho, estudando costumes.

Depoimento de Veríssimo de Melo sobre Câmara Cascudo.

domingo, 25 de março de 2012

Rubem Braga


Despedida

Rubem Braga


E no meio dessa confusão alguém partiu sem se despedir; foi triste. Se houvesse uma despedida talvez fosse mais triste, talvez tenha sido melhor assim, uma separação como às vezes acontece em um baile de carnaval — uma pessoa se perda da outra, procura-a por um instante e depois adere a qualquer cordão. É melhor para os amantes pensar que a última vez que se encontraram se amaram muito — depois apenas aconteceu que não se encontraram mais. Eles não se despediram, a vida é que os despediu, cada um para seu lado — sem glória nem humilhação.

Creio que será permitido guardar uma leve tristeza, e também uma lembrança boa; que não será proibido confessar que às vezes se tem saudades; nem será odioso dizer que a separação ao mesmo tempo nos traz um inexplicável sentimento de alívio, e de sossego; e um indefinível remorso; e um recôndito despeito.

E que houve momentos perfeitos que passaram, mas não se perderam, porque ficaram em nossa vida; que a lembrança deles nos faz sentir maior a nossa solidão; mas que essa solidão ficou menos infeliz: que importa que uma estrela já esteja morta se ela ainda brilha no fundo de nossa noite e de nosso confuso sonho?

Talvez não mereçamos imaginar que haverá outros verões; se eles vierem, nós os receberemos obedientes como as cigarras e as paineiras — com flores e cantos. O inverno — te lembras — nos maltratou; não havia flores, não havia mar, e fomos sacudidos de um lado para outro como dois bonecos na mão de um titeriteiro inábil.

Ah, talvez valesse a pena dizer que houve um telefonema que não pôde haver; entretanto, é possível que não adiantasse nada. Para que explicações? Esqueçamos as pequenas coisas mortificantes; o silêncio torna tudo menos penoso; lembremos apenas as coisas douradas e digamos apenas a pequena palavra: adeus.

A pequena palavra que se alonga como um canto de cigarra perdido numa tarde de domingo.

Extraído do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá – Rio de Janeiro, 1967, pág. 83.

sábado, 24 de março de 2012

Crônica de Clarice para Lúcio Cardoso


Considero essa crônica uma das mais bonitas de Clarice,é dedicada ao meu amigo Nonato Gurgel,dentre outras coisas,ele é meu interlocutor para assuntos mineiros.


Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope.
Saudade eu tenho sempre. Mas, saudade tristíssima, duas vezes.
A primeira quando você repentinamente adoeceu, em plena vida, você que era vida. Não morreu da doença. Continuou vivendo, porém era homem que não escrevia mais, ele que até então escrevera por uma compulsão eterna gloriosa. E depois da doença, não falava mais, ele que já me dissera das coisas mais inspiradas que ouvidos humanos poderiam ouvir. E ficara com o lado direito todo paralisado. Mais tarde usou a mão esquerda para pintar: o poder criativo nele não cessara.
Mudo ou grunhindo, só os olhos se estrelavam, eles que sempre haviam faiscado de um brilho intenso, fascinante e um pouco diabólico.
De sua doença restaria também o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço do jogo. Passou a transportar para as telas, com a mão esquerda (que, no entanto, era incapaz de escrever, só de pintar) transparência e luzes e levezas que antes ele não parecia ter conhecido e ter sido iluminado por elas: tenho um quadro, de antes da doença, que é quase totalmente negro. A luz lhe viera depois das trevas da doença.
A segunda saudade já foi perto do fim.
Algumas pessoas amigas dele estavam na ante-sala de seu quarto no hospital e a maioria não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo imóvel, em estado de coma.
Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.
Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescência. Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio que me transformou em “mineira”: ganhei diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros.
Não fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver gente: eu vira a morte.
Estou me lembrando de coisas. Misturo tudo. Ora ouço ele me garantir que eu não tivesse medo do futuro porque eu era um ser com a chama da vida. Ora vejo-nos alegres na rua comendo pipocas. Ora vejo-o encontrando-se comigo na ABBR, onde eu recuperava os movimentos de minha mão queimada e onde Lúcio, Pedro e Míriam Bloch chamavam-no à vida. Na ABBR caímos um nos braços do outro.
Lúcio e eu sempre nos admitimos: ele com sua vida misteriosa e secreta, eu com o que ele chamava de “vida apaixonante”. Em tantas coisas éramos tão fantásticos que, se não houvesse a impossibilidade, quem sabe teríamos nos casado.
Helena Cardoso, você que é uma escritora fina e que sabe pegar numa asa de borboleta sem quebrá-la, você que é irmã de Lúcio para todo o sempre, por que não escreve um livro sobre Lúcio? Você contaria de seus anseios e alegrias, de suas angústias profundas, de sua luta com Deus, de suas fugas para o humano, para os caminhos do Bem e do Mal. Você, Helena, sofreu com Lúcio e por isso mesmo mais o amou.
Enquanto escrevo levanto de vez em quando os olhos e contemplo a caixinha de música antiga que Lúcio me deu de presente: tocava como em cravo a Pour Élise. Tanto ouvi que a mola partiu. A caixinha de música está muda? Não. Assim como Lúcio não está morto dentro de mim.
( In: A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector. Publicado originalmente em 11 de janeiro de 1969, no Jornal do Brasil.)

segunda-feira, 19 de março de 2012

Recado de Primavera - Ruben Braga a Vinicius de Moraes - 1980






Meu caro Vinicius de Moraes,
escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave:
a primavera chegou.
Você partiu antes. É a primeira primavera, de 1913 para cá, sem a sua participação.
Seu nome virou placa de rua e nessa rua que tem seu nome na placa vi ontem 3 garotas de Ipanema que usavam mini-saias. Parece que a moda voltou nessa primavera. Acho que você aprovaria.
O mar anda virado. Houve uma lestada muito forte, depois veio um sudoeste com chuva e frio. E daqui de minha casa vejo uma vaga de espuma galgar o costão sul da Ilha das Palmas. São violencias primaveris.
O tempo vai passando poeta, chega a primavera nesta Ipanema, toda cheia de sua música e de seus versos. Eu ainda vou ficando um pouco por aqui — a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor.

domingo, 18 de março de 2012

Romance em doze linhas




Romance em doze linhas
(Bruna Beber)

quanto tempo falta pra gente se ver hoje
quanto tempo falta pra gente se ver logo
quanto tempo falta pra gente se ver todo dia
quanto tempo falta pra gente se ver pra sempre
quanto tempo falta pra gente se ver dia sim dia não
quanto tempo falta pra gente se ver às vezes
quanto tempo falta pra gente se ver cada vez menos
quanto tempo falta pra gente não querer se ver
quanto tempo falta pra gente não querer se ver nunca mais
quanto tempo falta pra gente se ver e fingir que não se viu
quanto tempo falta pra gente se ver e não se reconhecer
quanto tempo falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu

segunda-feira, 12 de março de 2012

Rita Apoena


— E você, por que desvia o olhar?
(Porque eu tenho medo de altura. Tenho medo de cair para dentro de você. Há nos seus olhos castanhos certos desenhos que me lembram montanhas, cordilheiras vistas do alto, em miniatura. Então, eu desvio os meus olhos para amarra-los em qualquer pedra no chão e me salvar do amor. Mas, hoje, não encontraram pedra. Encontraram flor. E eu me agarrei às pétalas o mais que pude, sem sequer perceber que estava plantada num desses abismos, dentro dos seus olhos.)
— Ah. Porque eu sou tímida.”
Rita Apoena
(http://www.pequenascoisas.org)

terça-feira, 6 de março de 2012

MEDO DE AMAR Nº 2





Medo de amar nº 2
(Sueli Costa e Tite de Lemos)

você me deixa um pouco tonta
assim meio maluca
quando me conta essas tolices e segredos
e me beija na testa, e me morde na boca
e me lambe na nuca
você me deixa surda e cega
você me desgoverna
quando me pega assim
nos flancos e nas pernas
como fosse o meu dono
ou então meu amigo
ou senão meu escravo

e eu sinto o corpo mole
e eu quase que faleço
quando você me bole e bole
e mexe e mexe
e me bate na cara
e me dobra os joelhos
e me vira a cabeça

mas eu não sei se quero ou se não quero
esse insensato amor
que eu desconheço
e que nem sei se é falso ou se é sincero
que me despe e me vira pelo avesso

não eu não sei se gosto ou se não gosto
de sentir o que eu sinto
e que me atormenta
e eu confesso que tremo desse sentimento
que de repente chega
e que me ataca
e assim me faz perder-me
e nem saber se esses carinhos
são suaves ou velozes
se o que escuto é o silêncio
ou se ouço vozes

(No vídeo acima quem canta é Simone)