terça-feira, 29 de maio de 2012

Lúcio Cardoso

"Vou com Fregolente à Barra da Tijuca, onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. Só a desgraça alimenta uma tal sede de divertimento. Aliás, é sempre este o aspecto de um aglomerado que se reúne à procura de esquecimento: os limites humanos surgem com avassaladora nitidez e o rebanho festivo adquire um aspecto confrangedor, de coisa abandonada e amaldiçoada. Não é precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade - qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade grosseira e sem profundidade?

Talvez o amanhã pertença a gente dessa espécie - talvez sejam eles os coordenadores do mundo em que começamos a viver. Mas são tão melancólicos e tão estritamente confinados à sua miséria, que possivelmente estão muito longe de perceber o que se passa. O Deus antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir esse sangue bruto ao longo das areias mornas - bem poderia brandir um raio ou soprar uma rajada morna de demência - qualquer coisa finalmente que fizesse sangrar essas almas cativas, tornando-as acordadas e viris. Há uma determinada sonolência da alma, que só o castigo e o medo conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir à tona das faces uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando, sem amor e sem piedade, as velhas carnes mal-tratadas.

(Inútil conter, é muito forte o sopro de impiedade que me atravessa. Ó carnes abastadas e domingueiras! Custa a crer que tenha havido um mistério da Encarnação, e que um Deus autêntico tenha descido a este mundo para redimir tal rebotalho... Sim, as revoluções, que são exteriores, podem lidar com isto - mas a religião, que fará desta vontade assassinada?)"



Trecho do diário de Lúcio Cardoso lançado na década de 70 pela editora Jose Olímpio.

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Chico Buarque hoje as 21h no Teatro Riachuelo



Hoje é o dia em que vou conhecer Chico Buarque no palco ao vivo.Sei lá como me sinto,não tem como não disfarçar a emoção de fã assumida.Chico é um ícone para minha geração,sabe -se lá o que isso representa.
Pedi emprestado ao blog http://duasfridas.wordpress.com/2012/01/23/eu-e-ele/ e transcrevo abaixo um texto que expressa bem o que sinto:

Eu e ele

Quando eu disse lá no play (aka facebook) que ele é o fundador da Mansão Foster para Namorados Imaginários, falava sério. Nossa história é das mais duradouras da minha vida, mesmo sendo uma relação aberta (tinha que ser, quando o conheci ele era casado). Todos os outros homens  da minha vida (cof, cof) aprenderam a respeitar o  espaço dele: sabiam que tinham sorte por ele não estar disponível naquele momento (bad timing sucks). Jamais o confrontaram, sabendo que perderiam a batalha e a guerra. Os espertos tornaram-se adversários amistosos, chegando mesmo a me presentear com seus discos, livros, dvds. Os demais, se houve, não são dignos de nota.  Apesar de tudo isso, eu morro de ciúmes dele. Confesso que em épocas como essa, em que ele está em evidência, incomoda-me que todos falem dele como se dele fossem, do modo como eu sou. Falam com uma intimidade que nem ele deu nem eu concedi, um comportamento altamente inadequado. Mas só me cabe suportar:  faz parte das parcas agruras de amar Chico Buarque.

sábado, 26 de maio de 2012

HILDEBERTO BARBOSA FILHO

Motivos Para Meu Verso

o meu verso fala:
da fábula do perdido
dos que uivam de amor
do vento da nuvem do medo
dos rascunhos da mosca, da caligrafia,
de tudo que apenas se esboçou.

fala da ferrugem
que habita o lixo dos quintais
dos sapatos expostos ao tempo
do lodo que escorre da noite
da carie, da calvície
de tudo que não existe mais

queria por no meu verso:
em lugar da rima a ruga
o funeral das formigas
o pavor dos besouros sob o sol
restos de coisas, restos de nada,réstias,
nonadas

por um pouco:
do carteiro
do garçon
do alfaiate
do livreiro

pedaços de gilete
alfinetes lâmpadas queimadas
livros riscados pregos
pinças o fútil o inútil
o dúctil

e fazê-lo abrigo
para o pote    
o pente a tesoura
o nariz de Adélia
os dentes de Fidélia

o meu verso guarda
um cariri na memória
de tanto que leu Proust
recorda:
o som do leite quente no tacho
o gosto assustado da goteira
o cheiro das tristezas da terra.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Orides Fontela



HERANÇA

Da avó materna:
uma toalha (de batismo).

Do pai:
um martelo
um alicate
uma torquês
duas flautas.

Da mãe:
um pilão
um caldeirão
um lenço.

                    De Rosácea (1986)

Cacaso

EX (3)

A minha ex-namorada
inundou minha vida de coisas belas demais
evitava que eu tivesse qualquer aborrecimento
impedia que eu saísse no sereno
me conduzia pela mão ao atravessar a rua
velava enternecida pelo meu futuro

a minha ex-namorada usurpou o lugar
onde floria, exuberante, a esposa atual
de meu pai onipresente


                    De Beijo na Boca (1975)