terça-feira, 30 de julho de 2013

Perspectiva da sala de jantar

Perspectiva da sala de jantar

  Murilo Mendes

A filha do modesto funcionário público
dá um bruto interesse à natureza-morta
da sala pobre no subúrbio.
O vestido amarelo de organdi
distribui cheiros apetitosos de carne morena
saindo do banho com sabonete barato.
O ambiente parado esperava mesmo aquela vibração:
papel ordinário representando florestas com tigres,
uma Ceia onde os personagens não comem nada
a mesa com a toalha furada
a folhinha que a dona da casa segue o conselho
e o piano que eles não têm sala de visitas.
A menina olha longamente pro corpo dela
como se ele hoje estivesse diferente,
depois senta-se ao piano comprado a prestações
e o cachorro malandro do vizinho
toma nota dos sons com atenção.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Marla de Queiroz

Eu me torno emocionalmente saudável quando consigo desconstruir todas as tolices sobre amores salva-vidas e jogar a ideia surreal do príncipe encantado no lixo. Eu me torno emocionalmente saudável quando acredito que namorar deve ser leve mesmo quando intenso, e divertido mesmo quando há um sério comprometimento. Eu me torno emocionalmente saudável quando o que me ocupa é a minha vida e não a reação que tenho ao comportamento alheio. Eu me torno emocionalmente saudável quando percebo que determinada história não me abrange, me deixa inadequada, fere a minha autoestima e sinto que isto é o suficiente para eu tentar ser feliz e me abrir para outras possibilidades. Eu me torno emocionalmente saudável quando escolho os meus parceiros pelo que me agregam de luz e crescimento, não pelo desafio que me trazem quando se mostram emocionalmente indisponíveis ou abertos para viverem outras relações que não a nossa. Eu me torno emocionalmente saudável quando me permito ficar sozinha até atrair um alguém que esteja disposto a trocar, desbravar paisagens juntos, que esteja inteiro no lugar que escolheu. Eu me torno emocionalmente saudável quando, estar ou não estar com alguém sexo-afetivamente, não se torna a prioridade da minha vida, mas somente um dos meus desejos. Eu me torno emocionalmente saudável quando aprendo a dar nome aos meus sentimentos: e não confundo posse com excitação, dependência com paixão, rejeição com confusão alheia...

Eu me torno emocionalmente saudável quando dou amor, não carência.

Livrai-me do que desbota a minha lucidez e da alienação de achar que a felicidade está no Outro e não em mim. Que seja assim.

Marla de Queiroz

domingo, 28 de julho de 2013

Everton Behenck

PARA ISADORA LER QUANDO TIVER SEU CORAÇÃO PARTIDO A PRIMEIRA VEZ.



A vida
Não é fácil, querida
Mas é possível
E é incrível estar vivo
Mesmo que agora não pareça
As vezes a vida
Se ausenta
Faz parte
Fique forte
No pensamento
De que tudo se move
Sua vida está indo
E não há sofrimento
Definitivo
Colecione suas dores
Com carinho
Um dia
Até elas farão falta
E devemos
Atravessar o tempo
Com todos os nossos
Pertences
E a dor está entre eles
Mas a dor passa
E sem dor
Não se faz nada

Everton Behenck

terça-feira, 23 de julho de 2013

Flávio Machado

torpor



esse desejo absolutamente inexplicável
de apagar da memória o nome dela
fingir que não a conheço
atravessar a rua
mudar de calçada


quem sabe alterar a rota dos planetas
fazer girar ao contrário a Terra
retirar do nada
alguma vontade renovada
e sair pela rua madrugada a dentro
expondo todo o remorso e ressentimento
pelo abandono que herdei.




Flávio Machado

terça-feira, 16 de julho de 2013

Ar de família

(Armando Freitas Filho)

Só sei ser íntimo ou não sei ser.
O que escrevo me ameaça de tão perto.
Amassa mãe, pai, filhos, mulheres
os de sangue símil, os de romance
os de tinta de impressão, de árvore
venosa de folhas variáveis no vento
das estações, no ferido almofariz
com o mesmo pilão de pedra
sem lavar, e entre uma socada e outra
o silêncio do punho fechado.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

leminski

nunca quis ser
freguês distinto
pedindo isso e aquilo
vinho tinto
obrigado
hasta la vista

queria entrar
com os dois pés
no peito dos porteiros
dizendo pro espelho
- cala a boca
e pro relógio
- abaixo os ponteiros

p leminski

terça-feira, 2 de julho de 2013

As outras

Fernanda que não me escute: mas quando saio andando por aí, me apaixono muitas vezes. Pode ser no caminho do trabalho, de casa, da padaria, do banco. Cho...va ou faça sol entre nuvens. Basta que as Melissinhas daquela mulher atravessem a rua em câmera lenta – o céu azula todinho, o queixo cai e ainda arrasta os olhos.
Basta que o gari dê uma sambadinha entre uma lixeira e outra. Que a vó não resista às bochechas indecentemente fofas da neta e leve o pão doce. Que o motorista do ônibus deixe o volante para ajudar o tiozinho a subir com as sacolas do mercado. Que os amigos dos tempos da brilhantina se encontrem na esquina para rir bem alto das atuais carequices.
Que o ambulante cumprimente até o sujeito que jamais compra nem alfinete pirata.

Que aquele sobrado esteja sempre no mesmo lugar, entre os dois fura-céus: a árvore esparramando sua copa sobre o quintal, o senhor de óculos grisalhos bebendo a caneca na janela do segundo andar, a mulher de vestido gordo varrendo as folhas com a mangueira, o molecote de shortinho verde correndo da água com as mãos sujas de terra e biscoito maizena.

Basta que um pingo da cena tinja a calçada, respingue nos meus pés, que o meu coração, em vez de acelerar, cameralenta – no mesmo passo daquelas Melissinhas.

Basta que, de repente, o mp3 replaye a canção que eu já tinha esquecido que um dia existiu. Que ela sirva de trilha para o beijo do casal diante dos jornais expostos na banca. Que os jornais da manhã anterior cubram o sem-teto que insiste em repetir o mesmo poema para quem vai apressado.

Que um verso se solte do asfalto.
Basta isso para que eu tropece de amores mais uma vez, e a vida – incansavelmente generosa – prove que não se contenta com a monogamia.
 
 Postado por Fábio Flora no Pasmatório – http://pasmatorio.blogspot.com.br/