quinta-feira, 11 de setembro de 2014

ROBERTO BOLAÑO

“Se tivesse que assaltar o banco mais vigiado da Europa e pudesse eleger livremente meus companheiros de malfeitorias, sem dúvida escolheria um grupo de cinco poetas. Cinco poetas verdadeiros, apolíneos ou dionisíacos, tanto faz, mas verdadeiros, quer dizer, com um destino de poetas e com uma vida de poetas. Não há ninguém no mundo mais valente que eles. Não há ninguém no mundo que encare o desastre com maior dignidade e lucidez. São, em aparência, débeis, leitores de Guido Cavalcanti e de Arnaut Daniel, leitores do desertor Arquíloco que atravessou um campo de ossos, e trabalham no vazio da palavra, como astronautas perdidos em planetas sem saída possível, num deserto onde não há leitores nem editores, só construções verbais ou canções idiotas cantadas não por homens mas por fantasmas. No grêmio dos escritores são a joia maior e menos cobiçada. Quando um enlouquecido jovem de dezesseis ou dezessete anos decide ser poeta, é desastre familiar com certeza. Judeu homossexual, meio negro, meio bolchevique, a Sibéria do seu desterro só cobre de opróbio também sua família: os leitores de Baudelaire não se dão bem no ensino médio, nem com seus companheiros de classe nem muito menos com seus professores. Sua fragilidade, no entanto, é enganosa. Também seu humor e as manifestações caprichosas do seu amor. Por trás dessas sombras vagas se encontram talvez os tipos mais duros do mundo e seguramente os mais valentes. Não por nada descendem de Orfeu, que marcava a cadência de remo dos Argonautas e que desceu ao inferno e voltou a subir, menos vivo que antes da façanha, mas vivo ao fim e ao cabo. Se tivesse que assaltar o banco mais protegido da América, no meu bando só haveria poetas. O assalto terminaria, provavelmente, de forma desastrosa, mas seria bonito.”

ROBERTO BOLAÑO, 1999

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

PAULO HENRIQUES BRITTO

III
O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.
Um belo dia – por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos –
você abre a janela, ou abre um pote
de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e nítida:
É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega
a latejar na mente o tempo todo?
Então por que?
E neste exato instante
você por fim entende, e refestela-se
a valer nessa poltrona, a mais confortável
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.
(Mesmo que seja por trinta segundos.)
PAULO HENRIQUES BRITTO
[de "Três epifanias triviais", in "MACAU"]

terça-feira, 19 de agosto de 2014

ESPANTALHO DESCARADO

ESPANTALHO DESCARADO
– para Fabio Henriques


ando assim
tipo um erro flácido ambulante
sem êxito, hesitante
disco riscado
fora de catálogo
no pó do instante
ando assim oco, uma crosta
vodu cansado que com a sorte
nem mais dialoga – diamante
ando assim sem linguagem
sem faro, espantalho fora de foco
ando assim
mais opaco que olímpico
esquivo, íntimo, insípido
um mastodonte pensando
desamparado
aspirando a paralelepípedo
ando assim meio buster keaton
um tanto de lágrima hasteando o riso
ando assim raso
indiferente
me divertindo um bocado
eu ando mijando no poste
porque o banheiro
está sempre lotado

Marcelo Montenegro
[in "Orfanato Portátil", AtritoArt, PR, 2003 - Annablume, SP, 2012]

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

RESTOS DE ESTÚDIO

RESTOS DE ESTÚDIO

Cada cigarro fumado na madrugada fria do posto
de uma cidadezinha absurda qualquer
durante a parada do ônibus.
Quantas imagens apodrecidas
na garganta seca das descrições,
canções que não chegaram a tempo.

Quantos dentes pintados de preto
nos retratos sérios dos livros de História,
tanto amor que virou desespero.
Cada silêncio perdido no grito,
tantos cacos de vidro em cima dos muros,
como se eu mesmo os tivesse escrito.

Quantos versos criados a bordo e não anotados,
tanto rancor latejando
na mudez de socos não redigidos,
tanta fita cassete e as gargalhadas
de todos os loucos
espanando o sublime do mundo.
Quantas giletes cuspidas de um pulso,

tanto caderno novo começado,
quantas falas roubadas de amigos,
tantos pântanos não soletrados.
Quanta inocência colhida em varandas de abismos
que eu carrego comigo
como um tesouro afundado.

Marcelo Montenegro
[in "Garagem Lírica", Annablume, SP, 2012]

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ana Paula Oliveira.

Deixou o raio
o quarto
o risco

e se foi com a dança
de apanhar gravetos

Deixou o raio
o quarto
o risco

E esse vício tão sublime
de brincar de abismos.

Ana Paula Oliveira.

terça-feira, 15 de julho de 2014

A Boa Manhã*

Apenas passo os olhos pelos jornais; jogo-os fora, alegremente, porque eles pretendem dar-me notícia de muitos problemas, e eu não tenho nem quero problema nenhum.

Acordei um pouco tarde, abri todas as janelas para o sábado louro e azul, e o mar me deu bom-dia. Passa um pequeno barco branco no mar de safira: como vai ligeiro, como vai contente, com seu bigodinho de espumas brilhantes! Uma ave se detém um instante peneirando, depois mergulha na vertical em grande estilo; quando volta, um pequeno peixe brilha em seu bico.

Chupo uma laranja, e isto me dá prazer. Estou contente. Estou contente da maneira mais simples – porque tomei banho e me sinto limpo, porque meus braços e pernas e pulmões funcionam bem; porque estou começando a ficar com fome e tenho comida quente para comer, água fresca para beber.

Nenhuma tristeza do mundo nem de meu passado me pega neste momento. Tenho prazer em ver que a Ilha Rasa está lá direitinha, em seu lugar, com o farol branco. Vejo ao longe, saindo da praia, dois amigos; estão conversando e rindo. Tomaram seu banho de mar, vão almoçar; estou contente porque os amigos vão bem e suas mulheres esperam crianças. Saúde e prosperidade! Estou contente porque recebi uma boa notícia. Nada de extraordinário, mas uma notícia muito simpática.

Sei que o mundo está cheio de horríveis problemas – e eu mesmo, pensando bem, tenho alguns bem chatos. Mas não estou pensando neles; estou vivendo nesta fresca manhã um momento de bem-estar, de felicidade.

Ora, considerando que a felicidade é uma suave falta de assunto, eu me despeço de todos com um cordial bom-dia e vou almoçar. Não quero contar prosa, mas tenho arroz, feijão, carne, alface, laranja, pão, tudo o que um ser humano necessita para viver bem.

Um velho amigo vem honrar a minha mesa; falaremos com simpatia das mulheres bonitas desta formosa capital. Conversa de brasileiros! Bom dia, passem bem todos com suas mulheres, com seus amigos, com suas amantes também.




(*) In, Rubem Braga. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 118


segunda-feira, 7 de julho de 2014

Marcelo Montenegro

AURÉOLAS EM LATAS DE BISCOITO

Comprar jornal na esquina e na volta
conferir a caixa postal telefônica. Morder o
ponto do dente onde já se sabe que a dor
dói com exatidão. Guardar dinheiro antigo
na carteira. Olhar as lombadas dos livros
numa estante desconhecida à espera de
alguém. Errar as medidas do café fora de
casa. Estar perto de perceber alguma
coisa. Encantar-se com parques de
diversão desativados. Pisar de meia no
quintal molhado pela chuva de ontem.

Marcelo Montenegro
[in "Garagem Lírica", Annablume, SP, 2012]

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Alice SantAnna

eu sabia
que mesmo depois que me
despedisse e fechasse
a porta

e descesse todos
os degraus troteando
a escada em espiral

e entrasse no táxi, boa-noite
siga reto, por favor, à
direita, o troco, obrigada
e acenasse para o porteiro

mesmo depois que eu apertasse
o botão do elevador, procurando
o chaveiro na bolsa

abrisse a porta de casa
tirasse os sapatos, os brincos
escovasse os dentes, os cabelos

mesmo depois que eu
dormisse e sonhasse e até a hora
em que acordasse, você ainda estaria

com os olhos
presos
à porta.

domingo, 15 de junho de 2014

Paulo Mendes Campos

ACORRENTADOS Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
Autor: Paulo Mendes Campos
Texto extraído do livro "
O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Trecho de Carta de Rubem Braga para Clarice Lispector

"Meio desempregado, enfrentei o verão (o maior de que tenho lembrança, e continua ainda) em meu novo e pequeno apartamento, e me entreguei à praia, ao uísque e aos levianos amores com estranha voracidade. Agora estou um tanto cansado - inclusive do Rio e do apartamento - e crivado de dívidas".

(Carta de Rubem Braga para Clarice Lispector, Rio, 23-05-53 do livro: Correspondências Clarice Lispector, organizado por Teresa Montero, p. 153)


http://vemcaluisa.blogspot.com.br/2010/06/praia-ao-uisque-e-aos-levianos-amores.html

sábado, 7 de junho de 2014

Lau Siqueira

DA IMORTALIDADE
POÉTICA


eternas mesmo
são as nuvens

essas dissonâncias
do infinito

eternas
e mutantes

mas a vida
e suas dobras
de estupidez e
coragem...

a vida é aqui
e agora

e é frágil
como uma caipora

é tão frágil a vida
que uma única morte
não basta

por isso sempre
amanheço um pouco
esta memória

o que está posto
poderia ser dito
numa oração

num tratado
numa tese
num conceito
reformado

mas eis aqui
um poema
besta

e hoje nem é sexta

quinta-feira, 29 de maio de 2014

Iracema Macedo

"Se os outros envelhecem
como dizer que não perdi a juventude?
Tardes como essas houve muitas
e um vivo fervor de bicicletas e borboletas
Quem sou eu para ousar essa juventude
através de um tempo que cansa o rosto do meu pai?
Quem sou eu para ousar a flor e usá-la nos cabelos?
Que mulher eu sou?
O tempo só cria devorando
e não posso ousar contra as dores do parto
Entre o tempo e o nada
onde espichar o leite dos meus versos?"


Iracema Macedo


(Foto de Luiz-Cartier Bresson)

segunda-feira, 26 de maio de 2014

Alice Sant'anna

a sandália nova branca com dedos
que se refestelam do lado de fora
como crianças que sabem o verão que vem
de repente a chuva mingua os planos
da calça jeans com sandália de dedos
uma combinação entre-estações
para não se sentir nem tão lá nem tão
cá os dedos curvados corcundas
como crianças tristes que sabem
o toró que se aproxima as unhas recém-cortadas
que planejaram se mostrar sobre a cadeira de rodinhas
que nada a água inundou a sexta
da janela os bambus se movem muito
chegam a parecer desesperados
as folhas penduradas são cabelos colados
que gritam novas rugas onde nada havia

sábado, 17 de maio de 2014

Carta à Virginia Woolf

Querida Virginia
Não sei como começo. Parabenizando-lhe pelos seus 129 anos? Eu acredito que sua idade vai muito além desses números, tão eternos para nós humanos comparados à nossa vida aqui e agora. Sua alma é antiga e sábia e deve estar rodando por aí (no céu?) ou em outro corpo que jamais saberei qual é. O importante é saber que sua alma também continua aqui, em cada livro seu, em cada vez que alguém lê sua obra – sublime e perfeita. A alma deve ser algo infinito.
Eu agradeço pelo dia em que o acaso colocou em meu colo um livro seu e agradeço também a sua paciência quando, no início, eu não entendia muito bem suas frases e pensava “essa mulher escreve difícil”. Mas eu soube ser persistente sem ser chata, acredito eu, pois fui lhe comendo pelas beiradas, saboreando as frases como se fossem feitas para mim, única e exclusivamente.
Agradeço também pelas noites que você me acompanhou e também peço desculpas pelas vezes que peguei no sono. A culpa foi toda minha que num lapso de concentração me peguei em devaneios que não me pertenciam mais e que não mereciam minha atenção. Mas foi justamente esses devaneios absurdos e você, ali do meu lado, que me fizeram compreender o que parecia tão incompreensível ao ponto de eu desistir.
Virginia, obrigada por não me fazer desistir.
Antes de você ter colocado as pedras no casaco você viveu bem, levou uma vida sincera, aproveitou os encontros com os seus amigos, admirou Londres como ninguém, amou e foi amada, trabalhou e produziu obras eternas. Virginia Woolf, você sabe que é eterna? Aí onde você está compreende que, tantos como eu, estão aqui na Terra admirados pelo seu trabalho e também pela pessoa que você foi? Você não foi triste, você não foi infeliz. Virginia Woolf era alegre, era bem humorada, eu sempre digo isso porque me sinto na obrigação de desfazer sua imagem de depressiva. Mas havia realmente uma depressão, sim, eu sei. Mas não era somente isso que fez você ser você. É isso que muitos não entendem, minha cara…
Eu ainda não li toda a sua obra, mas estou quase lá. Minha última leitura foi Orlando. Que belo livro, Virginia! Uma mistura de surrealismo e modernismo. Lindo. Mas não vou me aprofundar em análises sobre a sua obra. Deixo isso para seus amigos que estão aí com você, porque certas observações precisam ser faladas olhando nos olhos. Olhos que piscam, pois os seus são estáticos, mas me fitam através da foto com muito mais vida que meus próprios olhos.
Eu preciso lhe agradecer por muito mais. É um tanto que faz uma bolha de ar sair de meu coração, atravessar meu peito e parar em minha garganta. Quando abro a boca para falar, nada sai. E o agradecimento vira um suspiro mágico que lhe abraça onde quer que você esteja. Obrigada por ser parte de mim, obrigada por me permitir fazer isso.
Essa é minha primeira carta para você. Farei isso mais vezes.
Com carinho,
Francine Ramos



http://livroecafe.com/2011/01/25/carta-a-virginia-woolf/

domingo, 11 de maio de 2014

SAUDADE

Às vezes, sentir falta da pessoa que está na cama com você dói mais do que a saudade de quem está em outro continente.

O Castelo nos Pirineus (Jostein Gaarder)

quarta-feira, 30 de abril de 2014

O que o "Antonico" do Ismael tem a ver com Pinxinga?

Dicionário Amoroso | Alvaro Marechal

A de “Antonico”

Em maio de 1939 Ismael Silva tinha 33 anos, a idade de Cristo, e já fizera alguns milagres. Fundara a primeira escola de samba, a Deixa Falar, e havia sido um destacado compositor da chamada geração do Estácio que, 10 anos antes, fora responsável pela formatação do samba moderno, a qual perdura até hoje. A partir de 1929 tornara- se um sucesso, parceiro de Nílton Bastos e Noel Rosa, com a maioria de suas músicas gravadas por Francisco Alves, o grande cartaz do rádio na época.

Ismael também puxara cadeia — pena de cinco anos de reclusão, dos quais, por bom comportamento, só cumprira dois, no presídio da Rua Frei Caneca — por ter dado um tiro na bunda de um folgado, de nome Edu Motorneiro, que tentara estuprar sua irmã Orestina. O “tresloucado gesto”, como anotaram os jornais, deu-se à porta do Café Pauliceia, esquina das Ruas Gomes Freire e Visconde do Rio Branco, e há quem afirme que o compositor sequer acertou o tal Motorneiro. Como nos bangue-bangues, o teco passou raspando.

De qualquer forma, sua carreira degringolou. Saindo da prisão, na pior, ele procurou ajuda com Pixinguinha, que, segundo testemunhos insuspeitos, era um santo.
 Centro Cultural Banco do Brasil, traz um bilhete datilografado de Pixinguinha ao próprio Mozart escrito num misto de linguagem de repartição com rasgos de sentimentalismo. O que interessa é o trecho final: “(...) razão pela qual lembrei-me de solicitar ao velho amigo para interceder junto ao Luís Simões Lopes, a fim de conseguir uma colocação para o popular sambista, que tem lutado com dificuldade de vida. Sem mais, sendo você músico e o Luís Lopes, cantor, espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim”.

Luís Simões Lopes era um secretário do presidente Getúlio Vargas que gostava de cantar e supostamente tinha influência no meio musical. O jornalista e biógrafo Sérgio Cabral garante que Pixinguinha não escreveu o bilhete, o estilo não era o dele. E o emprego, com ou sem pistolão, jamais saiu.

A primeira gravação de “Antonico”, cuja letra repete quase integralmente um das frases do bilhete (“É necessário uma viração pro Nestor/ Que está vivendo em grande dificuldade/ Ele está mesmo dançando na corda bamba/ Ele é aquele que na escola de samba/ Toca cuíca, toca surdo e tamborim/ Faça por ele como se fosse por mim”), foi realizada em 1950 por Alcides Gerardi. Entre outros, há registros de Elza Soares e Gal Costa, bem melhores que o de Gerardi.

É um marco na linha evolutiva do samba, uma peça intimista feita pelo mesmo compositor que havia começado a grande revolução no gênero no fim dos anos 1920 e início dos 1930. Note-se que toda vez que Caetano Veloso — que sugeriu a Gal que gravasse a música — comete um samba há ecos de “Antonico” nele.

No desvio, mas vaidoso e elegante, fazendo questão de andar de terno, gravata e sapato de bico fino bicolor, morando quase de favor numa pensão “para rapazes” da Rua Gomes Freire, no velho Centro do Rio, Ismael Silva — que antes de morrer, em 1978, gozou de certo reconhecimento, por ter sido praticamente o único da turma do Estácio que sobreviveu para contar sua versão dos fatos — negou sempre a hipótese autobiográfica, afirmando, em diversas entrevistas, que nada que compunha tinha a ver com a vida dele. Nunca existiu Antonico nem Nestor nem viração, garantia.

Mas há coincidências demais entre bilhete e samba. Teria o compositor olhado por cima do ombro de quem de fato escreveu o texto no qual está expresso o desesperado pedido de ajuda?


 http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=618

terça-feira, 22 de abril de 2014

Caio F.

me visite sem telefonar um dia desses
como não se faz na alemanha
como não se deveria fazer nunca na alemanha
sob o risco de de chamado
latinos americano de merda
(também conheço essas barras)
mas só quero que você me visite de repente
não mais que
um dia desses
sem avisos

Caio F.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Marize Castro

quando retornou estava velha
ao meu redor dançava quase cega
quis tudo que me pertencia
o filho que permanece em mim
o corpo que não libertei
o céu que jamais foi meu
pensei: tão louca e tão bela
qual dor lhe habita?
eu a olhava, ela me invadia
renove, renove
— repetia
(eu tão concha, ela tão éter)
invadida esqueci de qual
mais raro artefato
perdi
muito mais tarde
por amor
entre folhagens
li em distante lápíde:
Gôngula sem rota, falsa esfinge sem asas
sempre em vigília, sempre à margem

(Poemas do livro Habitar teu nome. Natal: Uma, 2013)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Antes que o amor seja apenas uma trégua

A ideia de me aposentar não me assalta com regularidade. Talvez porque esse tempo esteja longe; talvez porque eu não me imagine sem trabalhar. Ou não é bem isso. Pode ser que eu saiba que, de fato, não precisarei parar minhas atividades, ao menos não as preferidas. Poderei, isto sim, escolher o que fazer, para quem, com quem, por quanto. Mesmo assim, diante dessa expectativa agradável, a aposentaria não me passa tanto pela cabeça. Talvez porque eu ainda não me sinta muito cansada ou mesmo, talvez, porque eu seja uma pessoa apaixonada pelo trabalho que desempenho. Nada disso tira minha certeza de que os dias que antecedem a aposentaria possam ser doces e ansiosos. É o caso do narrador de A trégua, do uruguaio Mario Benedetti.

O livro chegou-me às mãos por indicação. A confiança que tenho na pessoa que o indicou me fez abrir logo aquelas páginas, inclusive atravessando-as adiante de outras atividades muito mais urgentes. Mas é assim mesmo que a literatura se torna urgente em nossas vidas. Sem ter lido este livro, eu talvez não pudesse repensar o que farei daqui em diante.

Aos 49 anos, viúvo há décadas e pai de três filhos adultos, Santomé escreve uma espécie de diário dos últimos dias antes de sua aposentadoria. O dia a dia no escritório passa como uma alegria mínima, assim como o contato quase mudo com os filhos que ele parece mal conhecer. Escreve Santomé à página 9: "Hoje foi um dia feliz; só rotina". A despeito de a afirmação muito me comover e de a rotina me soar agradável, na maioria das vezes, é nessa levada que o narrador verá sua vida, aos poucos, ser envolvida por uma experiência que o tirará do eixo - embora pouco - ou lhe dará novo eixo: o amor.

A história, contada pelo próprio narrador na forma de seu diário, acontece em alguns meses e vai se configurando lentamente, à medida que Santomé vai percebendo que se apaixona por uma funcionária nova - e muito jovem - da instituição onde trabalha. Aos poucos, ele, que se pensava com o coração ressequido após tantos anos de viuvez e solidão, põe reparo em Laura Avellaneda, que chama sempre pelo sobrenome. O amor entre eles é recíproco e cresce, mas a economia afetiva do narrador o impede de saltar dentro da relação, sentir seu abismo e sua glória. Ao contrário, Santomé é racional, expondo sua ferrugem e sua dúvida em relação ao que lhe cabia ou não fazer, tão próximo dos 50 anos. Entre suas dúvidas e vergonhas estão o fato de se sentir meio ridículo em uma relação com alguém tão mais jovem; e, em decorrência mesmo disso, poder ser traído quando Avellaneda estiver ainda jovem e ele, ainda mais velho.

Na toada da contenção, o narrador só se dá conta de que quer, de fato, se casar com Laura quando sente-lhe falta de forma abrupta. A moça adoece e, rapidamente, morre sem contato com o amado. A crueldade do acontecimento deixa o narrador mudo e desorientado por uns tempos, muito embora isso seja um sofrimento solitário, já que o casal sequer havia se assumido socialmente. Apenas os filhos dele e a mãe dela sabiam da relação, que se desenrolava dentro de um apartamento alugado.

A trégua de que trata é título é uma espécie de interstício entre uma vida sombria e melancólica antes e depois de Laura. Interessou-me, fortemente, a construção de um personagem masculino tão humano e tão ao contrário dos "pegadores" e "matadores" que pipocam na literatura. Santomé trata do sexo, enquanto é viúvo, com uma sisudez e um desinteresse muito mais verossímeis do que me parecem as narrativas cheias de garanhões que se acham "com a bola toda". A tristeza do narrador, assim como sua vida irritantemente pacata, deixa a impressão de que se trata de um colega de trabalho ou de um vizinho qualquer, discreto e apagado.

O amor de Santomé pela esposa morta - há mais de 20 anos - vem à tona, às vezes, no contraste da relação com Laura, muito mais jovem e muito mais viva. O amor e o sexo fazem uma conexão incomum nas narrativas, importante e nada ridícula, mesmo para um narrador masculino.

Peguei-me, centenas de vezes, levantando a cabeça para pensar não apenas nos 50 anos ou na aposentadoria, mas na vida diária, na vida que levo todos os dias, nas economias inúteis que talvez eu me imponha e aos outros. De que serve viver mornamente? De que serve avaliar o risco sem nunca arriscar? De que servem uma relação discreta, um apartamento alugado e uma noiva morta? De que serve o amor, sem a proximidade, o cuidado, a companhia? De que serve viver aos sussurros, mesmo diante da possibilidade do ridículo?

Santomé fracassa, penso, quando só conclui sobre o amor e a necessidade de se casar com Laura depois que ela está doente ou morta. É assim que a vida responde aos que não sabem se assumir - e aos outros. O que impedia aquele homem de amar abertamente? Ele mesmo. Nem os filhos, nem os vizinhos, nem os colegas do trabalho poderiam impedi-lo. Mas somos, talvez junto com ele, capazes de uma avareza inexplicável quando o assunto é "amar as pessoas como se não houvesse amanhã" (com a licença de Renato Russo).

Lendo A trégua, senti-me avara. Mas, tive também a certeza de não ser nem Santomé nem Laura. Eu, penso, seria incapaz de ser cúmplice de um amor trancafiado em um apartamento. A despeito disso, também sei que os momentos de plenitude podem ser tão simples quanto olhar juntos a chuva pela janela - uma das mais belas cenas do livro, no meu entender.

Avellaneda é chamada pelo sobrenome, ao longo de quase todo o diário de Santomé. Isso dá boa noção da avareza afetiva desse narrador. Laura, um belo nome de mulher, só lhe aparece quando a conhece e quando sabe de sua morte, pelo telefone, na repartição. A mesma avareza na vivência do amor ocorre na forma como ele vive a segunda viuvez, agora antes de conseguir saltar para dentro da experiência com a jovem.

Um livro com final triste. Isso é A trégua. Mas um livro que talvez nos ajude a não viver vidas claudicantes e meio medrosas. Quantas vezes, ao longo desta leitura - que durou uma semana - eu me lembrei de que não penso em me aposentar, mas que gostaria muito de saber viver. Solitário, sozinho, viúvo e aposentado... é o cenário de Santomé, ao final da narrativa. Sequer se pode dizer que tivesse voltado à estaca zero.

Tantas vezes ouvi histórias de viúvos que morrem assim que perdem a esposa. De outro lado, ouvi sobre viúvos que se casam muito rapidamente, surpreendendo toda a família e gerando enorme desconforto. Segundo se pode notar, há mais viúvas solitárias do que viúvos, isso além do fato de as mulheres viverem mais, muita vez sozinhas por opção. Viúvas costumam também viver décadas após a morte dos maridos; o que nem sempre ocorre aos homens viúvos, enfim.

Santomé é incomum por várias razões. É um viúvo de décadas que se sacia apenas eventualmente com mulheres quaisquer e tem muita incredulidade - em si - quando se apaixona por uma jovem comum, simples, mediana. Viveu o luto, parcimoniosamente. Foi respeitoso com a família tanto quanto qualquer família quer ser respeitada. A sensação de substituição é insuportável para a maioria de nós. Santomé não sabe mais amar, talvez. Reaprende, se reconfigura. Quando começa a se compreender e a assumir Laura, ele a perde, dando novo início a uma vida sem grande sentido.

Santomé não se casou rapidamente, após ficar viúvo. Também não morreu em seguida. Assumiu a criação dos filhos, o que também fez com distanciamento e avareza. Só se dá conta dos herdeiros quando, adultos, passam a mostrar seus conflitos e suas preferências. No entanto, é tarde para se aproximar dessas pessoas. Talvez, A trégua seja um livro sobre a economia dos afetos e a má comunicação, elementos que penso estarem essencialmente ligados. O amor precisa ser vivido e comunicado.


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 27/12/2013

segunda-feira, 31 de março de 2014

Mário Quintana

A Rua dos Cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

terça-feira, 25 de março de 2014

Fernando Pessoa

Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!

«Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha a pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.»

in Livro do Desassossego (fragmento 92)

quarta-feira, 5 de março de 2014

O ÚLTIMO BRINDE

(Tradução do russo de Lauro Machado Coelho)

Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e à ti também eu bebo –
            aos lábios que me mentiram,
            ao frio mortal nos olhos,
             ao mundo rude e brutal
             e a Deus que não nos salvou.
                                                                                         Anna Akhmátova – 27/3/1934

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ESTABANADOS APRENDIZES DOS FEITICEIROS

– para Batata e Negão

Nem sempre atrás de algum tipo de encrenca.
Distraídos de headphone e falando alto
em gigantescas lojas de discos. Juntando
os cascos vazios e os últimos trocados.
Tramando curtições e pequenos crimes.
Trocando de assunto. Na esquina de baixo
dos fatos. Estabanados aprendizes dos feiticeiros.
Dançando pulando desgovernando o barco.
Caindo fora como velhos David Banners.
Contemporâneos de cada estilhaço.
Furtando taças de vernissages.
Bebendo vinho em copos de plástico.

Marcelo Montenegro

[Lembro do Marcelo Mirisola brincando que essa era a melhor dedicatória da poesia brasileira. Algo assim. Seja como for, fiz para os meus amigos-de-fé-irmãos-camaradas Batata e Negão e está no meu “Orfanato Portátil”, de 2003]

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Biographia literaria


Lembranças pouco nítidas, provável-
mente falsas. Imagens que se ordenam
segundo uma lógica indecifrável,
talvez inexistente. Mãos que acenam,

uma porta entreaberta – não, fechada –
uma criança que não reconheço:
ou seja, muito pouco mais que nada.
É tudo que me resta do começo

disso que agora pensa, fala e sente
que pode ser denominado “eu”.
Claro que houve um instante crucial

em que esses cacos mal e porcamente
colaram-se. E pronto: deu no que deu.
Já é alguma coisa. Menos mal.


 Paulo Henriques Britto

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Herivelto no toca-fitas

Até hoje me lembro do repertório que meu pai guardava em fitas cassete e formava, ao lado dos programas Haroldo de Andrade e A cidade contra o crime, a trilha sonora de nossas viagens Barra/Madureira. Como morávamos longe, ele me levava para o colégio, que ficava em Piedade, antes de rumar para a loja da Avenida Edgar Romero.
As fitas juntavam sambistas, como Roberto Ribeiro, João Nogueira e Beth Carvalho, a cantores do que ele chamava de “seresta”. Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Sílvio Caldas, cujas músicas estavam sempre presentes nos eventos lá de casa. Na minha memória, essas canções e as transmissões em AM se empastelam na imagem do pai dirigindo seu Corcel 2.
Odiava algumas daquelas músicas. Como Fica comigo esta noite, com seus pronomes em segunda pessoa. Ou a que falava de uma normalista e eu achava de uma cafonice sem par — na minha escola, havia o curso Normal e aquelas meninas me pareciam fora de tempo e lugar.
De outras, gostava. Matriz ou filial, cujo tema principal na verdade talvez ainda não entendesse bem. Esses moços, que antecipava a melancolia funda que sempre me acompanhou. Sentimental demais, cuja lembrança se confunde com as matérias de TV sobre a morte de Altemar Dutra.
Nesse grupo, no entanto, havia duas canções que se destacavam particularmente. As duas, eu viria saber muitos anos depois, compostas pela mesma pessoa: Herivelto Martins. Refiro-me a Caminhemos e a Segredo.
Sou capaz de redesenhar perfeitamente a manhã em que o pai mencionou pela primeira vez o nome de Herivelto dentro do carro. O toca-fitas tocava Ave Maria no morro, e ele fez um elogio entusiasmado. Talvez ali eu tenha começado a fazer relações entre aquelas duas músicas que me tocavam de forma tão particular e a assinatura do compositor.
Todas essas recordações vieram à tona há algumas semanas, quando revi o DVD do programa Ensaio, da TV Cultura, no qual Herivelto é o entrevistado. No programa, ele fala muito de suas canções e pouco da atribuladíssima vida ao lado de (e, depois, em confronto com) Dalva de Oliveira.
Um dos pontos altos do DVD é o dueto entre Herivelto e o filho, Pery Ribeiro, que parece bastante emocionado na cena. Eu olhava para aqueles dois homens cantando lado a lado e imaginava como as coisas foram difíceis para Pery. Ser a ponta mais frágil de uma briga pública entre os pais, artistas de sucesso. Viver a queda brusca do glamour à decadência, ainda que como personagem periférico.
Então fui ler o livro que ele escreveu, com a ajuda da mulher, Ana Duarte, tratando dessa história. Minhas duas estrelas mostra que qualquer coisa que se possa imaginar de terrível sobre a situação de Pery é pouco, quase nada. O drama de que ele trata é barra pesada, muito pesada.
Pery narra a trajetória de Dalva e Herivelto desde os primeiros momentos, na Dupla Preto e Branco + Dalva de Oliveira (que, batizado pelo comunicador César Ladeira, da Radio Mayrink Veiga, viria a se transformar no bem sucedido Trio de Ouro), passando pela belicosa separação, cantada em verso (nas canções) e em prosa (no Diário da Noite) por Herivelto, com a ajuda do jornalista David Nasser, e pelos arrependimentos mútuos, até chegar à morte dos dois protagonistas.
O livro traz revelações curiosas, como a recusa de Benedito Lacerda em entrar na parceria de Ave Maria no morro, após ouvir de Herivelto o primeiro esboço de letra. “Não entro nem a pau. Isso é música de igreja”, disse Lacerda. Ou o xixi que Pery, então um garoto, fez na cama de Carmen Miranda, para satisfação da cantora. Carmen cismara que só fecharia contrato com um empresário norte-americano se alguma criança molhasse seus lençóis.
Mas a gênese é mesmo o coração de um filho a se abrir, página a página, com relação a pais que pelas circunstâncias poderia simplesmente odiar.
Não há dicotomias preto/branco, certo/errado. Pery não esconde as dores que sentiu (e que, de certo modo, carregou consigo até a morte), mas é sábio ao reconhecer que o tributo de um filho a quem o concebeu passa por cortes outros que não a perfeita organização da infância. E vislumbra outro espólio, enviesado, fruto da experiência de quem testemunhou a tragédia de não se saber desculpar: a capacidade do perdão.
Ao fim conclui que, se os caminhos dessa vida comprida estrada alongada são tão estranhos, é alvissareiro saber que algo de bom sempre fica. Algo, acrescento, capaz de nos remeter ao de bom que passou. Como as frescas manhãs, ao lado de meu pai, ouvindo Herivelto em seu velho Corcel 2.

Marcelo Moutinho

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Montale visita Hemingway


DUAS PROSAS VENEZIANAS
Eugenio Montale
I
Das janelas se viam as datilógrafas.
Embaixo, o beco, cheiro de camarão frito,
o bafo nauseabundo do canal.
Belo negócio em Veneza
cair numa tal paisagem e ela
vinda de longe. Ela que amava somente
Gesualdo Bach e Mozart e eu o horrível
repertório operístico com uma ligeira preferência
pelo pior. Depois, para complicar as coisas
o relógio que marca as cinco e são quatro,
a saída intempestiva, San Marco, o Florian deserto,
o cais dos Schiavoni, a tratoria Paganelli
recomendada por algum pintor toscano unha-de-fome,
dois quartos nem mesmo comunicantes e o dia
seguinte ver-te sumir sem mesmo
te dignares dar uma olhadela no meu Ranzoni.
Perguntava-me quem andava no mundo da lua,
eu ela ou os dois, cada um nos seus trilhos
não paralelos, mas no sentido inverso. E dizer que havíamos
inventado maravilhosas quimeras sobre as rampas
que levam do Oltrarno à grande praça.
Mas agora lá entre os pombos,
fotógrafos ambulantes sob um calor bestial,
com o peso do catálogo da bienal
nunca consultado e do qual não é fácil livrar-se.
Regressamos no vaporeto transpondo migalhas de pão,
comprando keepsakes cartões-postais e óculos escuros nos camelôs.
Era, parece-me, em 34, demasiado jovens ou demasiado estranhos
para uma cidade que requer turistas e amantes anciãos.
II
O Farfarella gárrulo porteiro fiel cumpridor de ordens
disse que era proibido perturbar
o homem das corridas de touro e dos safáris.
Insisto para que tente, sou um amigo de Pound
(exagerava um pouco) e mereço um tratamento
especial. Quem sabe se… O outro levanta o receptor,
fala escuta murmura e eis que
o urso Hemingway morde a isca.
Está ainda na cama, furam o pelame
apenas os olhos e as eczemas.
Duas ou três garrafas vazias de Merlot,
vanguarda do grosso que virá.
Embaixo no restaurante já estão todos à mesa.
Falamos não dele mas da nossa
querida Adrienne Monnier, da rue de l’Odeon,
de Sylvia Beach, de Larbard, dos rugentes anos trinta
e dos zurrantes cinquenta. Paris Londres uma pocilga
New York stinking, pestífera. Sem caça em charcos,
sem patos selvagens, sem raparigas
e nem sequer a ideia de um tal livro.
Compilamos o elenco de amigos comuns dos quais
ignoro o nome. Tudo é rotten, podre.
Quase chorando me ordena não enviar-lhe nunca gente
da minha laia, sobretudo se inteligentes.
Depois se levanta, enrola-se num roupão
e me põe porta afora com um abraço.
Viveu ainda alguns anos e tendo morrido duas vezes
teve o tempo de ler seus necrológios.

Em Poesias. Record, 1996. Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Uma tarde, em Buenos Aires… – crônica de Rubem Braga

Uma tarde, em Buenos Aires… – crônica de Rubem Braga

 

Uma tarde em Buenos Aires eu estava meio triste – mas não bebi, não telefonei, não procurei nenhuma pessoa amiga. Fechado no meu capote e no meu silêncio pus-me a andar pela rua cheia de gente. As grandes luzes só se acendem às dez da noite e, desde muito cedo, no inverno, é escuro. Há um poder nessa multidão que desfila na penumbra como um rio grosso com seu murmúrio. Deixei-me ir pela Florida, dobrei talvez em Tucumán, subi até Suipacha, desemboquei em Corrientes, e eu era mais um homem de capote no seio da multidão, e a multidão me embalava e me fazia bem. E por ser impessoal e não ter pressa e não ter pressa nem rumo, por ter um capote e sapatos grossos e por andar entre meus desconhecidos irmãos, eu me senti mais livre. E cumpri os ritos da multidão, comprei meu jornal, tomei meu café, li o placar das últimas notícias, fiquei um instante distraído mirando os frangos que giravam se tostando numa rotisseria.
Quando voltava para o meu hotel, por Florida, me lembrei do primeiro verso de um soneto que li há muito tempo, parece que de Alfonsina Storni, ” lo encontré en una esquina de la calle Florida…” Fiquei com esse verso na cabeça, pensando vagamente que esse homem sem nome que alguém encontrou em uma esquina de la calle Florida podia ser eu, como podia ser milhões de outros, e tirei disso não sei que vago e particular consolo.
Não foi em uma esquina, mas foi ainda na Florida que encontrei alguém: era um casal de amigos brasileiros em lua-de-mel. Os dois estavam felizes, alegres deles mesmos e de tudo o mais, falando do prazer das compras de lã e da carne soberba dos restaurantes. Estimei encontrá-los, e a felicidade do casal me fez bem, mas senti, com certa curiosidade, que no fundo de mim não havia a menor inveja. Ide-vos, noivos morenos, por Florida e Corrientes, ide-vos felizes por todos os caminhos da vida. Só vos invejarão os que também procuram ser felizes; minha longa tarefa é outra, é não ser infeliz e me proteger e guardar, ser forte dentro de mim, forte, quieto, sereno. Essa tarefa me distrai; e, vendo em vossos olhos a felicidade, eu descobri que em verdade já não a procuro mais. Já passei por esse caminho; sobre minha cabeça, quando ia por ele, mais de uma árvore deixou cair flores. Não choro esse tempo; simplesmente ele passou. Assim vai passando a multidão, e dentro dela caminho outra vez, lentamente, distraído e tranqüilo como um boi.

 


sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"quem quer casar com o poeta",

            valter hugo mãe

uso o coração para os alfinetes, subo
as beiras das calças, coso botões, alinhavo
camisas a cortar, amariquei também
os braços com tatuagens do teu
nome, vou esquecer-te rapidamente até
que o mundo seja ao contrário, porque
o amor ao contrário é um ódio
grande que cura os meus males, quem
quiser casar comigo, outrora
formoso e prendado, há de encontrar-me
aqui, monstruoso e paciente, a sopa ao
lume, os filhos sonhados como projeções
nas paredes escuras, cabelos pelo chão
gatos vadios

a minha casa é sob o alçapão,
não diz nada, podem encontrar-me pelo odor
a morte crescendo ou pelas linhas caídas,
sobrantes da tarefa árdua de repensar o
que vestir, mas se voltasse a sair à rua, gostava de
ter coragem para sair nu, talvez apenas os
gatos em meu redor, como fogo persa, sujo,
outrora tão formoso e flamejante, agora
atiçado aos pescoços de quem passa

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Augusto dos Anjos

O martírio do artista


Augusto dos Anjos –       

Arte ingrata! E conquanto, em desalento,
A órbita elipsoidal dos olhos lhe arda,
Busca exteriorizar o pensamento
Que em suas fronetais células guarda!
Tarda-lhe a Ideia! A inspiração lhe tarda!
E ei-lo a tremer, rasga o papel, violento,
Como o soldado que rasgou a farda
No desespero do último momento!
Tenta chorar e os olhos sente enxutos!…
É como o paralítico que, à míngua
Da própria voz e na que ardente o lavra
Febre de em vão falar, com os dedos brutos
Para falar, puxa e repuxa a língua,
E não lhe vem à boca uma palavra!
 

sábado, 18 de janeiro de 2014

CAJUEIRO - Rubem Braga

CAJUEIRO - Rubem Braga

O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.

Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente "tala") e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, "beijos", violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.

No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.

A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.

Foi agora, em fins de setembro. Estava carregado de flores.

Setembro, 1954

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

A maior riqueza do homem

"A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.
Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito.

Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas,
que puxa válvulas, que olha o relógio,
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis,
que vê a uva etc. etc.

Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas."

Manoel de Barros

SINOPSE

SINOPSE

Canetas que falham ao lado do telefone.
O baque das havaianas na escadaria.
O labor sigiloso de um poema.
Um gemido de geladeira
nalgum ponto perdido do dia.

Um copo que nosso brusco
e cômico malabarismo
evitou que se quebrasse.

Marcelo Montenegro
[in "ORFANATO PORTÁTIL", AtritoArt, 2003 - Annablume, 2012]

Carta - Carlos Drummond de Andrade

Carta - Carlos Drummond de Andrade



Bem quisera escrevê-la
com palavras sabidas,
as mesmas, triviais,
embora estremecessem
a um toque de paixão.
Perfurando os obscuros
canais de argila e sombra,
ela iria contando
que vou bem, e amo sempre
e amo cada vez mais
a essa minha maneira
torcida e reticente,
e espero uma resposta,
mas que não tarde; e peço
um objeto minúsculo
só para dar prazer
a quem pode ofertá-lo;
diria ela do tempo
que faz do nosso lado;
as chuvas já secaram,
as crianças estudam,
uma última invenção
(inda não é perfeita)
faz ler nos corações,
mas todos esperamos
rever-nos bem depressa.
Muito depressa, não.
Vai-se tornando o tempo
estranhamente longo
à medida que encurta.
O que ontem disparava,
desbordado alazão,
hoje se paralisa
em esfinge de mármore,
e até o sono, o sono
que era grato, e era absurdo
é um dormir acordado
numa planície grave.
Rápido é o sonho, apenas,
que se vai, de mandar
notícias amorosas
quando não há amor
a dar ou receber;
quando só há lembrança,
ainda menos, pó,
menos ainda, nada,
nada de nada em tudo,
em mim mais do que em tudo,
e não vale acordar
que acaso repouse
na colina sem árvores.
Contudo, esta é uma carta.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

MAKING OF

 
MAKING OF

Acabar com toda gentileza
E concluir minha própria temporada de caça
Parar de me arriscar
Dar o fora da minha natureza
Esganar essa ternura metida a besta
Sabotar a causa
Mutilar a festa
Desistir do que penso
Psicografar meu riso
Sancionar meu egoísmo
Panfletar este silêncio
Cultivar uma plantação de morcegos
E no meu alfabeto maluco de medos
Apagar de uma vez por todas
Todos os aposentos da delicadeza
Estuprar essa leveza
Destituir-me desta maldita mania
De sempre esquecer
Uma luz acesa

[Marcelo Montenegro, in "GARAGEM LÍRICA" (Annablume)]