sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

ESTABANADOS APRENDIZES DOS FEITICEIROS

– para Batata e Negão

Nem sempre atrás de algum tipo de encrenca.
Distraídos de headphone e falando alto
em gigantescas lojas de discos. Juntando
os cascos vazios e os últimos trocados.
Tramando curtições e pequenos crimes.
Trocando de assunto. Na esquina de baixo
dos fatos. Estabanados aprendizes dos feiticeiros.
Dançando pulando desgovernando o barco.
Caindo fora como velhos David Banners.
Contemporâneos de cada estilhaço.
Furtando taças de vernissages.
Bebendo vinho em copos de plástico.

Marcelo Montenegro

[Lembro do Marcelo Mirisola brincando que essa era a melhor dedicatória da poesia brasileira. Algo assim. Seja como for, fiz para os meus amigos-de-fé-irmãos-camaradas Batata e Negão e está no meu “Orfanato Portátil”, de 2003]

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Biographia literaria


Lembranças pouco nítidas, provável-
mente falsas. Imagens que se ordenam
segundo uma lógica indecifrável,
talvez inexistente. Mãos que acenam,

uma porta entreaberta – não, fechada –
uma criança que não reconheço:
ou seja, muito pouco mais que nada.
É tudo que me resta do começo

disso que agora pensa, fala e sente
que pode ser denominado “eu”.
Claro que houve um instante crucial

em que esses cacos mal e porcamente
colaram-se. E pronto: deu no que deu.
Já é alguma coisa. Menos mal.


 Paulo Henriques Britto

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Herivelto no toca-fitas

Até hoje me lembro do repertório que meu pai guardava em fitas cassete e formava, ao lado dos programas Haroldo de Andrade e A cidade contra o crime, a trilha sonora de nossas viagens Barra/Madureira. Como morávamos longe, ele me levava para o colégio, que ficava em Piedade, antes de rumar para a loja da Avenida Edgar Romero.
As fitas juntavam sambistas, como Roberto Ribeiro, João Nogueira e Beth Carvalho, a cantores do que ele chamava de “seresta”. Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Sílvio Caldas, cujas músicas estavam sempre presentes nos eventos lá de casa. Na minha memória, essas canções e as transmissões em AM se empastelam na imagem do pai dirigindo seu Corcel 2.
Odiava algumas daquelas músicas. Como Fica comigo esta noite, com seus pronomes em segunda pessoa. Ou a que falava de uma normalista e eu achava de uma cafonice sem par — na minha escola, havia o curso Normal e aquelas meninas me pareciam fora de tempo e lugar.
De outras, gostava. Matriz ou filial, cujo tema principal na verdade talvez ainda não entendesse bem. Esses moços, que antecipava a melancolia funda que sempre me acompanhou. Sentimental demais, cuja lembrança se confunde com as matérias de TV sobre a morte de Altemar Dutra.
Nesse grupo, no entanto, havia duas canções que se destacavam particularmente. As duas, eu viria saber muitos anos depois, compostas pela mesma pessoa: Herivelto Martins. Refiro-me a Caminhemos e a Segredo.
Sou capaz de redesenhar perfeitamente a manhã em que o pai mencionou pela primeira vez o nome de Herivelto dentro do carro. O toca-fitas tocava Ave Maria no morro, e ele fez um elogio entusiasmado. Talvez ali eu tenha começado a fazer relações entre aquelas duas músicas que me tocavam de forma tão particular e a assinatura do compositor.
Todas essas recordações vieram à tona há algumas semanas, quando revi o DVD do programa Ensaio, da TV Cultura, no qual Herivelto é o entrevistado. No programa, ele fala muito de suas canções e pouco da atribuladíssima vida ao lado de (e, depois, em confronto com) Dalva de Oliveira.
Um dos pontos altos do DVD é o dueto entre Herivelto e o filho, Pery Ribeiro, que parece bastante emocionado na cena. Eu olhava para aqueles dois homens cantando lado a lado e imaginava como as coisas foram difíceis para Pery. Ser a ponta mais frágil de uma briga pública entre os pais, artistas de sucesso. Viver a queda brusca do glamour à decadência, ainda que como personagem periférico.
Então fui ler o livro que ele escreveu, com a ajuda da mulher, Ana Duarte, tratando dessa história. Minhas duas estrelas mostra que qualquer coisa que se possa imaginar de terrível sobre a situação de Pery é pouco, quase nada. O drama de que ele trata é barra pesada, muito pesada.
Pery narra a trajetória de Dalva e Herivelto desde os primeiros momentos, na Dupla Preto e Branco + Dalva de Oliveira (que, batizado pelo comunicador César Ladeira, da Radio Mayrink Veiga, viria a se transformar no bem sucedido Trio de Ouro), passando pela belicosa separação, cantada em verso (nas canções) e em prosa (no Diário da Noite) por Herivelto, com a ajuda do jornalista David Nasser, e pelos arrependimentos mútuos, até chegar à morte dos dois protagonistas.
O livro traz revelações curiosas, como a recusa de Benedito Lacerda em entrar na parceria de Ave Maria no morro, após ouvir de Herivelto o primeiro esboço de letra. “Não entro nem a pau. Isso é música de igreja”, disse Lacerda. Ou o xixi que Pery, então um garoto, fez na cama de Carmen Miranda, para satisfação da cantora. Carmen cismara que só fecharia contrato com um empresário norte-americano se alguma criança molhasse seus lençóis.
Mas a gênese é mesmo o coração de um filho a se abrir, página a página, com relação a pais que pelas circunstâncias poderia simplesmente odiar.
Não há dicotomias preto/branco, certo/errado. Pery não esconde as dores que sentiu (e que, de certo modo, carregou consigo até a morte), mas é sábio ao reconhecer que o tributo de um filho a quem o concebeu passa por cortes outros que não a perfeita organização da infância. E vislumbra outro espólio, enviesado, fruto da experiência de quem testemunhou a tragédia de não se saber desculpar: a capacidade do perdão.
Ao fim conclui que, se os caminhos dessa vida comprida estrada alongada são tão estranhos, é alvissareiro saber que algo de bom sempre fica. Algo, acrescento, capaz de nos remeter ao de bom que passou. Como as frescas manhãs, ao lado de meu pai, ouvindo Herivelto em seu velho Corcel 2.

Marcelo Moutinho

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Montale visita Hemingway


DUAS PROSAS VENEZIANAS
Eugenio Montale
I
Das janelas se viam as datilógrafas.
Embaixo, o beco, cheiro de camarão frito,
o bafo nauseabundo do canal.
Belo negócio em Veneza
cair numa tal paisagem e ela
vinda de longe. Ela que amava somente
Gesualdo Bach e Mozart e eu o horrível
repertório operístico com uma ligeira preferência
pelo pior. Depois, para complicar as coisas
o relógio que marca as cinco e são quatro,
a saída intempestiva, San Marco, o Florian deserto,
o cais dos Schiavoni, a tratoria Paganelli
recomendada por algum pintor toscano unha-de-fome,
dois quartos nem mesmo comunicantes e o dia
seguinte ver-te sumir sem mesmo
te dignares dar uma olhadela no meu Ranzoni.
Perguntava-me quem andava no mundo da lua,
eu ela ou os dois, cada um nos seus trilhos
não paralelos, mas no sentido inverso. E dizer que havíamos
inventado maravilhosas quimeras sobre as rampas
que levam do Oltrarno à grande praça.
Mas agora lá entre os pombos,
fotógrafos ambulantes sob um calor bestial,
com o peso do catálogo da bienal
nunca consultado e do qual não é fácil livrar-se.
Regressamos no vaporeto transpondo migalhas de pão,
comprando keepsakes cartões-postais e óculos escuros nos camelôs.
Era, parece-me, em 34, demasiado jovens ou demasiado estranhos
para uma cidade que requer turistas e amantes anciãos.
II
O Farfarella gárrulo porteiro fiel cumpridor de ordens
disse que era proibido perturbar
o homem das corridas de touro e dos safáris.
Insisto para que tente, sou um amigo de Pound
(exagerava um pouco) e mereço um tratamento
especial. Quem sabe se… O outro levanta o receptor,
fala escuta murmura e eis que
o urso Hemingway morde a isca.
Está ainda na cama, furam o pelame
apenas os olhos e as eczemas.
Duas ou três garrafas vazias de Merlot,
vanguarda do grosso que virá.
Embaixo no restaurante já estão todos à mesa.
Falamos não dele mas da nossa
querida Adrienne Monnier, da rue de l’Odeon,
de Sylvia Beach, de Larbard, dos rugentes anos trinta
e dos zurrantes cinquenta. Paris Londres uma pocilga
New York stinking, pestífera. Sem caça em charcos,
sem patos selvagens, sem raparigas
e nem sequer a ideia de um tal livro.
Compilamos o elenco de amigos comuns dos quais
ignoro o nome. Tudo é rotten, podre.
Quase chorando me ordena não enviar-lhe nunca gente
da minha laia, sobretudo se inteligentes.
Depois se levanta, enrola-se num roupão
e me põe porta afora com um abraço.
Viveu ainda alguns anos e tendo morrido duas vezes
teve o tempo de ler seus necrológios.

Em Poesias. Record, 1996. Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Uma tarde, em Buenos Aires… – crônica de Rubem Braga

Uma tarde, em Buenos Aires… – crônica de Rubem Braga

 

Uma tarde em Buenos Aires eu estava meio triste – mas não bebi, não telefonei, não procurei nenhuma pessoa amiga. Fechado no meu capote e no meu silêncio pus-me a andar pela rua cheia de gente. As grandes luzes só se acendem às dez da noite e, desde muito cedo, no inverno, é escuro. Há um poder nessa multidão que desfila na penumbra como um rio grosso com seu murmúrio. Deixei-me ir pela Florida, dobrei talvez em Tucumán, subi até Suipacha, desemboquei em Corrientes, e eu era mais um homem de capote no seio da multidão, e a multidão me embalava e me fazia bem. E por ser impessoal e não ter pressa e não ter pressa nem rumo, por ter um capote e sapatos grossos e por andar entre meus desconhecidos irmãos, eu me senti mais livre. E cumpri os ritos da multidão, comprei meu jornal, tomei meu café, li o placar das últimas notícias, fiquei um instante distraído mirando os frangos que giravam se tostando numa rotisseria.
Quando voltava para o meu hotel, por Florida, me lembrei do primeiro verso de um soneto que li há muito tempo, parece que de Alfonsina Storni, ” lo encontré en una esquina de la calle Florida…” Fiquei com esse verso na cabeça, pensando vagamente que esse homem sem nome que alguém encontrou em uma esquina de la calle Florida podia ser eu, como podia ser milhões de outros, e tirei disso não sei que vago e particular consolo.
Não foi em uma esquina, mas foi ainda na Florida que encontrei alguém: era um casal de amigos brasileiros em lua-de-mel. Os dois estavam felizes, alegres deles mesmos e de tudo o mais, falando do prazer das compras de lã e da carne soberba dos restaurantes. Estimei encontrá-los, e a felicidade do casal me fez bem, mas senti, com certa curiosidade, que no fundo de mim não havia a menor inveja. Ide-vos, noivos morenos, por Florida e Corrientes, ide-vos felizes por todos os caminhos da vida. Só vos invejarão os que também procuram ser felizes; minha longa tarefa é outra, é não ser infeliz e me proteger e guardar, ser forte dentro de mim, forte, quieto, sereno. Essa tarefa me distrai; e, vendo em vossos olhos a felicidade, eu descobri que em verdade já não a procuro mais. Já passei por esse caminho; sobre minha cabeça, quando ia por ele, mais de uma árvore deixou cair flores. Não choro esse tempo; simplesmente ele passou. Assim vai passando a multidão, e dentro dela caminho outra vez, lentamente, distraído e tranqüilo como um boi.