quarta-feira, 30 de abril de 2014

O que o "Antonico" do Ismael tem a ver com Pinxinga?

Dicionário Amoroso | Alvaro Marechal

A de “Antonico”

Em maio de 1939 Ismael Silva tinha 33 anos, a idade de Cristo, e já fizera alguns milagres. Fundara a primeira escola de samba, a Deixa Falar, e havia sido um destacado compositor da chamada geração do Estácio que, 10 anos antes, fora responsável pela formatação do samba moderno, a qual perdura até hoje. A partir de 1929 tornara- se um sucesso, parceiro de Nílton Bastos e Noel Rosa, com a maioria de suas músicas gravadas por Francisco Alves, o grande cartaz do rádio na época.

Ismael também puxara cadeia — pena de cinco anos de reclusão, dos quais, por bom comportamento, só cumprira dois, no presídio da Rua Frei Caneca — por ter dado um tiro na bunda de um folgado, de nome Edu Motorneiro, que tentara estuprar sua irmã Orestina. O “tresloucado gesto”, como anotaram os jornais, deu-se à porta do Café Pauliceia, esquina das Ruas Gomes Freire e Visconde do Rio Branco, e há quem afirme que o compositor sequer acertou o tal Motorneiro. Como nos bangue-bangues, o teco passou raspando.

De qualquer forma, sua carreira degringolou. Saindo da prisão, na pior, ele procurou ajuda com Pixinguinha, que, segundo testemunhos insuspeitos, era um santo.
 Centro Cultural Banco do Brasil, traz um bilhete datilografado de Pixinguinha ao próprio Mozart escrito num misto de linguagem de repartição com rasgos de sentimentalismo. O que interessa é o trecho final: “(...) razão pela qual lembrei-me de solicitar ao velho amigo para interceder junto ao Luís Simões Lopes, a fim de conseguir uma colocação para o popular sambista, que tem lutado com dificuldade de vida. Sem mais, sendo você músico e o Luís Lopes, cantor, espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim”.

Luís Simões Lopes era um secretário do presidente Getúlio Vargas que gostava de cantar e supostamente tinha influência no meio musical. O jornalista e biógrafo Sérgio Cabral garante que Pixinguinha não escreveu o bilhete, o estilo não era o dele. E o emprego, com ou sem pistolão, jamais saiu.

A primeira gravação de “Antonico”, cuja letra repete quase integralmente um das frases do bilhete (“É necessário uma viração pro Nestor/ Que está vivendo em grande dificuldade/ Ele está mesmo dançando na corda bamba/ Ele é aquele que na escola de samba/ Toca cuíca, toca surdo e tamborim/ Faça por ele como se fosse por mim”), foi realizada em 1950 por Alcides Gerardi. Entre outros, há registros de Elza Soares e Gal Costa, bem melhores que o de Gerardi.

É um marco na linha evolutiva do samba, uma peça intimista feita pelo mesmo compositor que havia começado a grande revolução no gênero no fim dos anos 1920 e início dos 1930. Note-se que toda vez que Caetano Veloso — que sugeriu a Gal que gravasse a música — comete um samba há ecos de “Antonico” nele.

No desvio, mas vaidoso e elegante, fazendo questão de andar de terno, gravata e sapato de bico fino bicolor, morando quase de favor numa pensão “para rapazes” da Rua Gomes Freire, no velho Centro do Rio, Ismael Silva — que antes de morrer, em 1978, gozou de certo reconhecimento, por ter sido praticamente o único da turma do Estácio que sobreviveu para contar sua versão dos fatos — negou sempre a hipótese autobiográfica, afirmando, em diversas entrevistas, que nada que compunha tinha a ver com a vida dele. Nunca existiu Antonico nem Nestor nem viração, garantia.

Mas há coincidências demais entre bilhete e samba. Teria o compositor olhado por cima do ombro de quem de fato escreveu o texto no qual está expresso o desesperado pedido de ajuda?


 http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=618

terça-feira, 22 de abril de 2014

Caio F.

me visite sem telefonar um dia desses
como não se faz na alemanha
como não se deveria fazer nunca na alemanha
sob o risco de de chamado
latinos americano de merda
(também conheço essas barras)
mas só quero que você me visite de repente
não mais que
um dia desses
sem avisos

Caio F.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Marize Castro

quando retornou estava velha
ao meu redor dançava quase cega
quis tudo que me pertencia
o filho que permanece em mim
o corpo que não libertei
o céu que jamais foi meu
pensei: tão louca e tão bela
qual dor lhe habita?
eu a olhava, ela me invadia
renove, renove
— repetia
(eu tão concha, ela tão éter)
invadida esqueci de qual
mais raro artefato
perdi
muito mais tarde
por amor
entre folhagens
li em distante lápíde:
Gôngula sem rota, falsa esfinge sem asas
sempre em vigília, sempre à margem

(Poemas do livro Habitar teu nome. Natal: Uma, 2013)

quinta-feira, 3 de abril de 2014

Antes que o amor seja apenas uma trégua

A ideia de me aposentar não me assalta com regularidade. Talvez porque esse tempo esteja longe; talvez porque eu não me imagine sem trabalhar. Ou não é bem isso. Pode ser que eu saiba que, de fato, não precisarei parar minhas atividades, ao menos não as preferidas. Poderei, isto sim, escolher o que fazer, para quem, com quem, por quanto. Mesmo assim, diante dessa expectativa agradável, a aposentaria não me passa tanto pela cabeça. Talvez porque eu ainda não me sinta muito cansada ou mesmo, talvez, porque eu seja uma pessoa apaixonada pelo trabalho que desempenho. Nada disso tira minha certeza de que os dias que antecedem a aposentaria possam ser doces e ansiosos. É o caso do narrador de A trégua, do uruguaio Mario Benedetti.

O livro chegou-me às mãos por indicação. A confiança que tenho na pessoa que o indicou me fez abrir logo aquelas páginas, inclusive atravessando-as adiante de outras atividades muito mais urgentes. Mas é assim mesmo que a literatura se torna urgente em nossas vidas. Sem ter lido este livro, eu talvez não pudesse repensar o que farei daqui em diante.

Aos 49 anos, viúvo há décadas e pai de três filhos adultos, Santomé escreve uma espécie de diário dos últimos dias antes de sua aposentadoria. O dia a dia no escritório passa como uma alegria mínima, assim como o contato quase mudo com os filhos que ele parece mal conhecer. Escreve Santomé à página 9: "Hoje foi um dia feliz; só rotina". A despeito de a afirmação muito me comover e de a rotina me soar agradável, na maioria das vezes, é nessa levada que o narrador verá sua vida, aos poucos, ser envolvida por uma experiência que o tirará do eixo - embora pouco - ou lhe dará novo eixo: o amor.

A história, contada pelo próprio narrador na forma de seu diário, acontece em alguns meses e vai se configurando lentamente, à medida que Santomé vai percebendo que se apaixona por uma funcionária nova - e muito jovem - da instituição onde trabalha. Aos poucos, ele, que se pensava com o coração ressequido após tantos anos de viuvez e solidão, põe reparo em Laura Avellaneda, que chama sempre pelo sobrenome. O amor entre eles é recíproco e cresce, mas a economia afetiva do narrador o impede de saltar dentro da relação, sentir seu abismo e sua glória. Ao contrário, Santomé é racional, expondo sua ferrugem e sua dúvida em relação ao que lhe cabia ou não fazer, tão próximo dos 50 anos. Entre suas dúvidas e vergonhas estão o fato de se sentir meio ridículo em uma relação com alguém tão mais jovem; e, em decorrência mesmo disso, poder ser traído quando Avellaneda estiver ainda jovem e ele, ainda mais velho.

Na toada da contenção, o narrador só se dá conta de que quer, de fato, se casar com Laura quando sente-lhe falta de forma abrupta. A moça adoece e, rapidamente, morre sem contato com o amado. A crueldade do acontecimento deixa o narrador mudo e desorientado por uns tempos, muito embora isso seja um sofrimento solitário, já que o casal sequer havia se assumido socialmente. Apenas os filhos dele e a mãe dela sabiam da relação, que se desenrolava dentro de um apartamento alugado.

A trégua de que trata é título é uma espécie de interstício entre uma vida sombria e melancólica antes e depois de Laura. Interessou-me, fortemente, a construção de um personagem masculino tão humano e tão ao contrário dos "pegadores" e "matadores" que pipocam na literatura. Santomé trata do sexo, enquanto é viúvo, com uma sisudez e um desinteresse muito mais verossímeis do que me parecem as narrativas cheias de garanhões que se acham "com a bola toda". A tristeza do narrador, assim como sua vida irritantemente pacata, deixa a impressão de que se trata de um colega de trabalho ou de um vizinho qualquer, discreto e apagado.

O amor de Santomé pela esposa morta - há mais de 20 anos - vem à tona, às vezes, no contraste da relação com Laura, muito mais jovem e muito mais viva. O amor e o sexo fazem uma conexão incomum nas narrativas, importante e nada ridícula, mesmo para um narrador masculino.

Peguei-me, centenas de vezes, levantando a cabeça para pensar não apenas nos 50 anos ou na aposentadoria, mas na vida diária, na vida que levo todos os dias, nas economias inúteis que talvez eu me imponha e aos outros. De que serve viver mornamente? De que serve avaliar o risco sem nunca arriscar? De que servem uma relação discreta, um apartamento alugado e uma noiva morta? De que serve o amor, sem a proximidade, o cuidado, a companhia? De que serve viver aos sussurros, mesmo diante da possibilidade do ridículo?

Santomé fracassa, penso, quando só conclui sobre o amor e a necessidade de se casar com Laura depois que ela está doente ou morta. É assim que a vida responde aos que não sabem se assumir - e aos outros. O que impedia aquele homem de amar abertamente? Ele mesmo. Nem os filhos, nem os vizinhos, nem os colegas do trabalho poderiam impedi-lo. Mas somos, talvez junto com ele, capazes de uma avareza inexplicável quando o assunto é "amar as pessoas como se não houvesse amanhã" (com a licença de Renato Russo).

Lendo A trégua, senti-me avara. Mas, tive também a certeza de não ser nem Santomé nem Laura. Eu, penso, seria incapaz de ser cúmplice de um amor trancafiado em um apartamento. A despeito disso, também sei que os momentos de plenitude podem ser tão simples quanto olhar juntos a chuva pela janela - uma das mais belas cenas do livro, no meu entender.

Avellaneda é chamada pelo sobrenome, ao longo de quase todo o diário de Santomé. Isso dá boa noção da avareza afetiva desse narrador. Laura, um belo nome de mulher, só lhe aparece quando a conhece e quando sabe de sua morte, pelo telefone, na repartição. A mesma avareza na vivência do amor ocorre na forma como ele vive a segunda viuvez, agora antes de conseguir saltar para dentro da experiência com a jovem.

Um livro com final triste. Isso é A trégua. Mas um livro que talvez nos ajude a não viver vidas claudicantes e meio medrosas. Quantas vezes, ao longo desta leitura - que durou uma semana - eu me lembrei de que não penso em me aposentar, mas que gostaria muito de saber viver. Solitário, sozinho, viúvo e aposentado... é o cenário de Santomé, ao final da narrativa. Sequer se pode dizer que tivesse voltado à estaca zero.

Tantas vezes ouvi histórias de viúvos que morrem assim que perdem a esposa. De outro lado, ouvi sobre viúvos que se casam muito rapidamente, surpreendendo toda a família e gerando enorme desconforto. Segundo se pode notar, há mais viúvas solitárias do que viúvos, isso além do fato de as mulheres viverem mais, muita vez sozinhas por opção. Viúvas costumam também viver décadas após a morte dos maridos; o que nem sempre ocorre aos homens viúvos, enfim.

Santomé é incomum por várias razões. É um viúvo de décadas que se sacia apenas eventualmente com mulheres quaisquer e tem muita incredulidade - em si - quando se apaixona por uma jovem comum, simples, mediana. Viveu o luto, parcimoniosamente. Foi respeitoso com a família tanto quanto qualquer família quer ser respeitada. A sensação de substituição é insuportável para a maioria de nós. Santomé não sabe mais amar, talvez. Reaprende, se reconfigura. Quando começa a se compreender e a assumir Laura, ele a perde, dando novo início a uma vida sem grande sentido.

Santomé não se casou rapidamente, após ficar viúvo. Também não morreu em seguida. Assumiu a criação dos filhos, o que também fez com distanciamento e avareza. Só se dá conta dos herdeiros quando, adultos, passam a mostrar seus conflitos e suas preferências. No entanto, é tarde para se aproximar dessas pessoas. Talvez, A trégua seja um livro sobre a economia dos afetos e a má comunicação, elementos que penso estarem essencialmente ligados. O amor precisa ser vivido e comunicado.


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 27/12/2013