sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Dez teses sobre Natal


Por Alyson Freire
NA CARTA POTIGUAR

Não há melhor maneira de descrever Natal do que segundo as coisas que seus próprios habitantes não param de repetir sobre sua cidade. Assim como em outros lugares, também em Natal, cristalizaram-se e generalizaram-se algumas atitudes emocionais poderosas. Os natalenses reprovam, com convicção, traços e hábitos que seriam inerentes a este pequeno pedaço de terra espremido na esquina do atlântico; o provincianismo arraigado, a mesquinhez camuflada de extravagância de suas classes abastadas, o gosto cultivado pelas classes médias locais por tudo o que é capaz de aparentar e enganar, o comodismo e a insensibilidade de seu povo, entre outros traços mais. O que distingue Natal de todas as outras capitais consiste na afinidade e na naturalidade com que seus habitantes convivem com a insatisfação de estarem onde estão; isto é, a intimidade com as poderosas associações negativas sobre as quais construíram e fundaram a autoimagem de sua cidade e população.

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Natal é uma cidade melancólica, e não a cidade do prazer, como um dia quiseram nos fazer acreditar. Só conhece a melancolia de Natal que cresceu em seu regaço. Seus futuros tão prometidos por publicitários, empresários e políticos, como ramos secos, nunca se realizam. Cidade da falta. Natal é apontada por seus próprios filhos como desprovida de cultura e identidade próprias. Cidade da ausência, de filhos ilegítimos e órfãos de verdadeira cultura, assim a concebem seus próprios moradores. O existir para os natalenses é sempre uma questão de ausência; é da falta que irrompe todo sentido sobre o seu ser: a falta de cultura, a falta de identidade, a falta de alternativas, a falta de um senso urbano metropolitano, de civilidade e cosmopolitismo verdadeiros. Os outros – pernambucanos, paraibanos e cearenses – lhes são como espelhos negativos nos quais os natalenses vêem menos o que não são e mais o que lhes falta. O espelho, impiedoso, não lhes devolve com claridade os traços e contornos que seriam seus. Sua identidade é como uma imagem refletida num espelho desfocado. A inautenticidade é o que reluz mais radiante no olhar dos natalenses.

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Nenhuma outra cidade é tão ferozmente ressentida consigo mesma quanto Natal. Esta só existe através da fala de seus habitantes, em suas queixas e frustrações. Por isso, Natal é mais a cidade que se descreve, do que a cidade que se vê; ela é, antes de qualquer coisa, o seu discurso, ou pelo menos, vive do seu próprio discurso ressentido. Natal vive da insatisfação de ser Natal. Ela é uma cidade que tem medo de se realizar, e, por isso mesmo, deseja ser menor do que realmente é, mais provinciana e menos moderna do que realmente é. Suas muralhas são os seus próprios medos. Seus obstáculos são os seus autoenganos acerca de si mesma.

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Por aqui, moderno e província coexistem, se interpenetram, lutam e se repelem conflituosamente e sem síntese. Estranho paradoxo esse, mas que diz algo de fundamental com respeito à autoimagem dessa cidade. É sua ambigüidade, a violência do contraste observada no jogo entre o frívolo e o ressentimento, a alternância dos contrários, a tensão espiritual entre a extravagância e a excitação alienada de seus cidadãos-blasés com o permanente estado de mal-estar e deslocamento com o qual convivem diariamente parte de seus cidadãos descontentes, que conferem, por assim dizer, a dinâmica da qual nasce o “espírito” da capital do Rio Grande do Norte.

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De sorte que Natal é simultaneamente a Natal das cadeiras e fofocas nas calçadas e do apreço por padres, médicos e advogados de renome, e a Natal das passarelas e travessias por onde os passantes inquietos escoam apertados e encolhidos e os olhares se cruzam sem quase nunca se fixar. É a cidade que se diz hospitaleira, calma e pacata, mas é também a cidade do automóvel, regida, como qualquer outra metrópole, em sua orquestra diária pelos sinais de trânsito, muito embora seu tamanho real afirme sua vocação pra bicicletas. É o provincinismo compartilhado de Natal que impede que se veja o quanto há de moderno nessa cidade, sacudida e revirada de fio à pavio desde os empreendimentos mobiliários aos fluxos transnacionais de modas, corpos, perversões e desejos; uma cidade globalizada pelos sites pornográficos e pela prostituição. Nosso provincinismo é essa atitude emocional habitual de envergonhar-se e encolher a si mesmo para negar nossa modernidade.

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A cidade de Câmara Cascudo, deste que se definia como um “provinciano incurável”, também conheceu Mario de Andrade e Jorge Fernandes, esse último o nosso poeta modernista. Cidade das contradições e contra-sensos, das dubiedades e incongruências, de “vaqueiros motorizados” e “dandis jecas”.

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Esta é também a cidade dos modismos. Nela nada dura o suficiente, e quase tudo é irritantemente passageiro e efêmero. Tudo se consome num prazo de dois verões. Ninguém cultua tanto o novo como o natalense; os novos bares e boates, os novos restaurantes, casas-de-show e teatros em shopping’s centers. Tal é, em geral, que cada novidade é veementemente celebrada, agitada, propalado às raias da comoção pública, pois significa mais uma ocasião para a ostentação e para o esporte predileto dos natalenses, a exibição, pois não se sabe ao certo o quanto essa mais nova novidade irá durar.

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Aqui a aparência tem que ter sempre razão. Nesta cidade quase todos são vigiados pelo colunismo social. Por toda parte se estar cercado por um sem número de colunistas sociais ordinários que, por cima dos ombros, espiam sorrateiros de quais roupas, marcas, amigos e objetos seus vigiados se cercam. Aqui, nutrimos um gosto pelo acusatório, uma predileção por gestos reativos e pelo ressentimento semi-esclarecido. O ressentimento é o elemento intelectual desta cidade. Não se enganem, Natal é a mais pequeno-burguesa das cidades brasileiras, pois seus conterrâneos não cessam de atribuir à culpa e o mal aos outros – políticos, imprensa, o povo etc. – sem perceber como absurdo sua própria autoexclusão do contexto que denunciam.

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Grande parte dos natalenses sente-se mal em sua própria casa, mas porque, de alguma maneira, se concebem como maiores, melhores e mais verdadeiros do que o restante da cidade. Os natalenses, em sua porção média, são estrangeiros em sua própria terra; dizem estar de passagem, de partida pra não sei onde – talvez para alguma cidade no Canadá. Porque Natal, em seu provincianismo e artificialidade, não os cabe, nem os merece e tão pouco os aquilata em sua singularidade e autenticidade.

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Nossa vocação política é fabricar cartões-postais artificiais. Esta é uma cidade que não sonha porque nunca desperta. Natal não é nada do que fez crer – e desejou crer – de si. E, assim, aprendeu a conhecer somente medos e dúvidas, frustrações e fracassos. Uma cidade impossível…

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