"Vou com Fregolente à Barra da Tijuca,
onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma
multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. Só a
desgraça alimenta uma tal sede de divertimento. Aliás, é sempre este o
aspecto de um aglomerado que se reúne à procura de esquecimento: os
limites humanos surgem com avassaladora nitidez e o rebanho festivo
adquire um aspecto confrangedor, de coisa abandonada e amaldiçoada. Não é
precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos
desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma
inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade -
qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao
sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade
grosseira e sem profundidade?
Talvez
o amanhã pertença a gente dessa espécie - talvez sejam eles os
coordenadores do mundo em que começamos a viver. Mas são tão
melancólicos e tão estritamente confinados à sua miséria, que
possivelmente estão muito longe de perceber o que se passa. O Deus
antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir
esse sangue bruto ao longo das areias mornas - bem poderia brandir um
raio ou soprar uma rajada morna de demência - qualquer coisa finalmente
que fizesse sangrar essas almas cativas, tornando-as acordadas e viris.
Há uma determinada sonolência da alma, que só o castigo e o medo
conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes
ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir à tona das faces
uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles
apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando,
sem amor e sem piedade, as velhas carnes mal-tratadas.
(Inútil
conter, é muito forte o sopro de impiedade que me atravessa. Ó carnes
abastadas e domingueiras! Custa a crer que tenha havido um mistério da
Encarnação, e que um Deus autêntico tenha descido a este mundo para
redimir tal rebotalho... Sim, as revoluções, que são exteriores, podem
lidar com isto - mas a religião, que fará desta vontade assassinada?)"
Trecho do diário de Lúcio Cardoso lançado na década de 70 pela editora Jose Olímpio.
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