O passarinheiro
Publicação: 03 de Novembro de 2013 às 00:00
Sanderson Negreiros - escritor
À memória de Pedro Vicente
Antônio de Águas Belas morava em um socavão de serra. Era seu reino, desencantado. De lá era capaz de se ouvir o ranger de rotação e translação da Terra como se o Universo fosse uma velha porteira que rangesse, ou um portal secular, cujas dobradiças enferrujadas multiplicassem o som gutural de seus movimentos em torno do sol.
Do seu buraco do mundo, Antônio, posto na sela de seu cavalo baio, alvíssimo e manco, subia a serra té atingir sua planície – a chã da serra onde o vento se equilibra como uma festa.
De sua casa, encravada em grotões pesados e difíceis, ele sentia a vida como lhe chegava: suada, pegajosa e tonitruante. Era preciso respirar mais em cima. Respirar como os bois faziam – aproveitando os descampados e a perspectiva de lonjura, sorvendo o tempo pelas narinas, o vento que lá em cima se fazia mais do que uma festa: uma carícia.
Antônio de Águas Belas visitava a pequena plantação de abacaxis, tirava um ângulo novo com o olhar percuciente da paisagem em volta; e mordia no canto da boca o cigarro de palha, cheirando a um convite. Discutia a melhor maneira de proteger os abacaxis incipientes contra o verão próximo e, no fim da discussão com os empregados, era novamente um ser livre, em doce disponibilidade.
Daí, Antônio dispunha-se a fazer o que mais lhe convinha e apetecia a vontade de dono de herdade obscura: colocava o alçapão no último galho de uma oiticica para ver se pegava um sabiá branco. Sabiás escuros, ele os apreendera às centenas – em cima da serra, com jeito, era possível conseguir-se o apanhamento de passarinhos, belos concrizes, vira-casacas virtuosas, bem-te-vis donos do milagre do canto, galos-de-campina que enchiam a vista, pintassilgos vivíssimos.
Mas toda sua vida, desde criança, ele sentia que seu destino era ser dono de um sabiá branco. Pois só esse tem o canto de que lhe falaram, na infância, os avós: um canto triste e alegre, ao mesmo tempo, de dar sorte, rival da patativa dourada naquelas regiões de Mata-Pasto-de-Dentro.
E o sabiá branco não aparecia. O compadre Lucas, colega de infância, ouvira falar que perto dali morava um passarinheiro, por necessidade e convicção, que conseguira pegar um sabiá branco, vendendo-o logo depois a um mascate. Antônio de Águas Belas procurou o fio da meada da história toda e constatou que tudo fora invenção. O passarinheiro morrera há muitos anos e apenas a viúva dele confirmara que o marido foi, vida inteira, um caçador infatigável de um sabiá branco – e nunca o encontrara.
Assim sendo, Antônio gostava de ir a cavalo até a ponta da serra – exatamente o lugar onde havia o abismo misturado de beleza irrefreável e uma paisagem primitiva – para ver, eu meditar a seu modo, na hora do poente. E ali ficava, boca da noite quase, no frio suave das alturas, a esperar que as luzes da cidade, lá longe, nas serras de Araruna, se acendessem. E, acesas, tremessem na distância, aflitas pela escuridão. Pois naquelas luzes, ele via constantemente a imagem do sabiá branco de que nunca pudera ser dono. Nem amigo.
À memória de Pedro Vicente
Antônio de Águas Belas morava em um socavão de serra. Era seu reino, desencantado. De lá era capaz de se ouvir o ranger de rotação e translação da Terra como se o Universo fosse uma velha porteira que rangesse, ou um portal secular, cujas dobradiças enferrujadas multiplicassem o som gutural de seus movimentos em torno do sol.
Do seu buraco do mundo, Antônio, posto na sela de seu cavalo baio, alvíssimo e manco, subia a serra té atingir sua planície – a chã da serra onde o vento se equilibra como uma festa.
De sua casa, encravada em grotões pesados e difíceis, ele sentia a vida como lhe chegava: suada, pegajosa e tonitruante. Era preciso respirar mais em cima. Respirar como os bois faziam – aproveitando os descampados e a perspectiva de lonjura, sorvendo o tempo pelas narinas, o vento que lá em cima se fazia mais do que uma festa: uma carícia.
Antônio de Águas Belas visitava a pequena plantação de abacaxis, tirava um ângulo novo com o olhar percuciente da paisagem em volta; e mordia no canto da boca o cigarro de palha, cheirando a um convite. Discutia a melhor maneira de proteger os abacaxis incipientes contra o verão próximo e, no fim da discussão com os empregados, era novamente um ser livre, em doce disponibilidade.
Daí, Antônio dispunha-se a fazer o que mais lhe convinha e apetecia a vontade de dono de herdade obscura: colocava o alçapão no último galho de uma oiticica para ver se pegava um sabiá branco. Sabiás escuros, ele os apreendera às centenas – em cima da serra, com jeito, era possível conseguir-se o apanhamento de passarinhos, belos concrizes, vira-casacas virtuosas, bem-te-vis donos do milagre do canto, galos-de-campina que enchiam a vista, pintassilgos vivíssimos.
Mas toda sua vida, desde criança, ele sentia que seu destino era ser dono de um sabiá branco. Pois só esse tem o canto de que lhe falaram, na infância, os avós: um canto triste e alegre, ao mesmo tempo, de dar sorte, rival da patativa dourada naquelas regiões de Mata-Pasto-de-Dentro.
E o sabiá branco não aparecia. O compadre Lucas, colega de infância, ouvira falar que perto dali morava um passarinheiro, por necessidade e convicção, que conseguira pegar um sabiá branco, vendendo-o logo depois a um mascate. Antônio de Águas Belas procurou o fio da meada da história toda e constatou que tudo fora invenção. O passarinheiro morrera há muitos anos e apenas a viúva dele confirmara que o marido foi, vida inteira, um caçador infatigável de um sabiá branco – e nunca o encontrara.
Assim sendo, Antônio gostava de ir a cavalo até a ponta da serra – exatamente o lugar onde havia o abismo misturado de beleza irrefreável e uma paisagem primitiva – para ver, eu meditar a seu modo, na hora do poente. E ali ficava, boca da noite quase, no frio suave das alturas, a esperar que as luzes da cidade, lá longe, nas serras de Araruna, se acendessem. E, acesas, tremessem na distância, aflitas pela escuridão. Pois naquelas luzes, ele via constantemente a imagem do sabiá branco de que nunca pudera ser dono. Nem amigo.
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