A ideia de me
aposentar não me assalta com regularidade. Talvez porque esse tempo esteja
longe; talvez porque eu não me imagine sem trabalhar. Ou não é bem isso. Pode
ser que eu saiba que, de fato, não precisarei parar minhas atividades, ao menos
não as preferidas. Poderei, isto sim, escolher o que fazer, para quem, com quem,
por quanto. Mesmo assim, diante dessa expectativa agradável, a aposentaria não
me passa tanto pela cabeça. Talvez porque eu ainda não me sinta muito cansada ou
mesmo, talvez, porque eu seja uma pessoa apaixonada pelo trabalho que
desempenho. Nada disso tira minha certeza de que os dias que antecedem a
aposentaria possam ser doces e ansiosos. É o caso do narrador de A
trégua, do uruguaio Mario Benedetti.
O livro chegou-me às mãos por
indicação. A confiança que tenho na pessoa que o indicou me fez abrir logo
aquelas páginas, inclusive atravessando-as adiante de outras atividades muito
mais urgentes. Mas é assim mesmo que a literatura se torna urgente em nossas
vidas. Sem ter lido este livro, eu talvez não pudesse repensar o que farei daqui
em diante.
Aos 49 anos, viúvo há décadas e pai de três filhos adultos,
Santomé escreve uma espécie de diário dos últimos dias antes de sua
aposentadoria. O dia a dia no escritório passa como uma alegria mínima, assim
como o contato quase mudo com os filhos que ele parece mal conhecer. Escreve
Santomé à página 9: "Hoje foi um dia feliz; só rotina". A despeito de a
afirmação muito me comover e de a rotina me soar agradável, na maioria das
vezes, é nessa levada que o narrador verá sua vida, aos poucos, ser envolvida
por uma experiência que o tirará do eixo - embora pouco - ou lhe dará novo eixo:
o amor.
A história, contada pelo próprio narrador na forma de seu diário,
acontece em alguns meses e vai se configurando lentamente, à medida que Santomé
vai percebendo que se apaixona por uma funcionária nova - e muito jovem - da
instituição onde trabalha. Aos poucos, ele, que se pensava com o coração
ressequido após tantos anos de viuvez e solidão, põe reparo em Laura Avellaneda,
que chama sempre pelo sobrenome. O amor entre eles é recíproco e cresce, mas a
economia afetiva do narrador o impede de saltar dentro da relação, sentir seu
abismo e sua glória. Ao contrário, Santomé é racional, expondo sua ferrugem e
sua dúvida em relação ao que lhe cabia ou não fazer, tão próximo dos 50 anos.
Entre suas dúvidas e vergonhas estão o fato de se sentir meio ridículo em uma
relação com alguém tão mais jovem; e, em decorrência mesmo disso, poder ser
traído quando Avellaneda estiver ainda jovem e ele, ainda mais velho.
Na
toada da contenção, o narrador só se dá conta de que quer, de fato, se casar com
Laura quando sente-lhe falta de forma abrupta. A moça adoece e, rapidamente,
morre sem contato com o amado. A crueldade do acontecimento deixa o narrador
mudo e desorientado por uns tempos, muito embora isso seja um sofrimento
solitário, já que o casal sequer havia se assumido socialmente. Apenas os filhos
dele e a mãe dela sabiam da relação, que se desenrolava dentro de um apartamento
alugado.
A trégua de que trata é título é uma espécie de interstício
entre uma vida sombria e melancólica antes e depois de Laura. Interessou-me,
fortemente, a construção de um personagem masculino tão humano e tão ao
contrário dos "pegadores" e "matadores" que pipocam na literatura. Santomé trata
do sexo, enquanto é viúvo, com uma sisudez e um desinteresse muito mais
verossímeis do que me parecem as narrativas cheias de garanhões que se acham
"com a bola toda". A tristeza do narrador, assim como sua vida irritantemente
pacata, deixa a impressão de que se trata de um colega de trabalho ou de um
vizinho qualquer, discreto e apagado.
O amor de Santomé pela esposa morta
- há mais de 20 anos - vem à tona, às vezes, no contraste da relação com Laura,
muito mais jovem e muito mais viva. O amor e o sexo fazem uma conexão incomum
nas narrativas, importante e nada ridícula, mesmo para um narrador
masculino.
Peguei-me, centenas de vezes, levantando a cabeça para pensar
não apenas nos 50 anos ou na aposentadoria, mas na vida diária, na vida que levo
todos os dias, nas economias inúteis que talvez eu me imponha e aos outros. De
que serve viver mornamente? De que serve avaliar o risco sem nunca arriscar? De
que servem uma relação discreta, um apartamento alugado e uma noiva morta? De
que serve o amor, sem a proximidade, o cuidado, a companhia? De que serve viver
aos sussurros, mesmo diante da possibilidade do ridículo?
Santomé
fracassa, penso, quando só conclui sobre o amor e a necessidade de se casar com
Laura depois que ela está doente ou morta. É assim que a vida responde aos que
não sabem se assumir - e aos outros. O que impedia aquele homem de amar
abertamente? Ele mesmo. Nem os filhos, nem os vizinhos, nem os colegas do
trabalho poderiam impedi-lo. Mas somos, talvez junto com ele, capazes de uma
avareza inexplicável quando o assunto é "amar as pessoas como se não houvesse
amanhã" (com a licença de Renato Russo).
Lendo A trégua, senti-me
avara. Mas, tive também a certeza de não ser nem Santomé nem Laura. Eu, penso,
seria incapaz de ser cúmplice de um amor trancafiado em um apartamento. A
despeito disso, também sei que os momentos de plenitude podem ser tão simples
quanto olhar juntos a chuva pela janela - uma das mais belas cenas do livro, no
meu entender.
Avellaneda é chamada pelo sobrenome, ao longo de quase todo
o diário de Santomé. Isso dá boa noção da avareza afetiva desse narrador. Laura,
um belo nome de mulher, só lhe aparece quando a conhece e quando sabe de sua
morte, pelo telefone, na repartição. A mesma avareza na vivência do amor ocorre
na forma como ele vive a segunda viuvez, agora antes de conseguir saltar para
dentro da experiência com a jovem.
Um livro com final triste. Isso é A
trégua. Mas um livro que talvez nos ajude a não viver vidas claudicantes e
meio medrosas. Quantas vezes, ao longo desta leitura - que durou uma semana - eu
me lembrei de que não penso em me aposentar, mas que gostaria muito de saber
viver. Solitário, sozinho, viúvo e aposentado... é o cenário de Santomé, ao
final da narrativa. Sequer se pode dizer que tivesse voltado à estaca
zero.
Tantas vezes ouvi histórias de viúvos que morrem assim que perdem a
esposa. De outro lado, ouvi sobre viúvos que se casam muito rapidamente,
surpreendendo toda a família e gerando enorme desconforto. Segundo se pode
notar, há mais viúvas solitárias do que viúvos, isso além do fato de as mulheres
viverem mais, muita vez sozinhas por opção. Viúvas costumam também viver décadas
após a morte dos maridos; o que nem sempre ocorre aos homens viúvos,
enfim.
Santomé é incomum por várias razões. É um viúvo de décadas que se
sacia apenas eventualmente com mulheres quaisquer e tem muita incredulidade - em
si - quando se apaixona por uma jovem comum, simples, mediana. Viveu o luto,
parcimoniosamente. Foi respeitoso com a família tanto quanto qualquer família
quer ser respeitada. A sensação de substituição é insuportável para a maioria de
nós. Santomé não sabe mais amar, talvez. Reaprende, se reconfigura. Quando
começa a se compreender e a assumir Laura, ele a perde, dando novo início a uma
vida sem grande sentido.
Santomé não se casou rapidamente, após ficar
viúvo. Também não morreu em seguida. Assumiu a criação dos filhos, o que também
fez com distanciamento e avareza. Só se dá conta dos herdeiros quando, adultos,
passam a mostrar seus conflitos e suas preferências. No entanto, é tarde para se
aproximar dessas pessoas. Talvez, A trégua seja um livro sobre a economia
dos afetos e a má comunicação, elementos que penso estarem essencialmente
ligados. O amor precisa ser vivido e comunicado.
Ana
Elisa Ribeiro
Belo
Horizonte, 27/12/2013
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