terça-feira, 29 de setembro de 2009

Corra e Olhe o Céu


Vida te sinto mais bela
Te fico na espera
Me sinto tão só, ai!
O tempo que passa
Em dor maior, bem maior
Linda no que se apresenta
O triste se ausenta
Fez-se a alegria
Corra e olha o céu
Que o sol vem trazer bom dia
Ah, corra e olha o céu
Que o sol vem trazer bom dia


Corra e Olhe o Céu (Cartola e Dalmo Castelo)


Angenor de Oliveira

domingo, 27 de setembro de 2009

O SOM DESTA PAIXÃO ESGOTA A SEIVA


O som desta paixão esgota a seiva
Que ferve ao pé do torso; abole o gesto
De amor que suscitava torre e gruta,
Espada e chaga à luz do olhar blasfemo;
O som desta paixão expulsa a cor
Dos lábios da alegria e corta o passo
Ao gamo da aventura que fugia;
O som desta paixão desmente o verbo
Mais santo e mais preciso e enxuga a lágrima
Ao rosto suicida, anula o riso;
O som desta paixão detém o sol,
O som desta paixão apaga a lua.
O som desta paixão acende o fogo
Eterno que roubei, que te ilumina
A face zombeteira e me arruína.
Mário Faustino

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

AP



se escondendo da rotina num quarto escuro
ou batendo a cinza do cigarro na janela
enquanto espia as roupas dançando em silêncio
no varal da área
às três da madrugada
você pode flagrar alguém preocupado
segurando uma caneca com vinho vagabundo
dormindo fora de hora
pensando demais na vida
e no tédio que é
essa falta de paixão.
BRUNA BEBER

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Inocentes do Leblon


Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe imigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
Carlos Drummond de Andrade

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Data de vencimento


Há alguns dias eu compartilhava uma mesa de bar com dois amigos. Um deles estava bem, como pareceu estar sempre bem ao longo de todos estes anos que a gente se conhece. O outro estava um caco. Tinha acabado um namoro de quase um ano, chorava na nossa frente e dizia ter certeza de que aquela mulher de quem ele começava agora a se afastar era a mulher da vida dele. Eu nunca sei bem o que dizer diante de alguém que chora. É como se as lágrimas brotassem de algum lugar aonde as palavras não chegam. Eu prestava muita atenção ao que o amigo dizia, tentava compreender sua dor e, por algum motivo qualquer, achava que ele tinha razão. Naquele momento – e ainda que aquele momento não viesse a durar para sempre – a mulher por quem ele chorava era mesmo a mulher da vida dele.

O outro amigo, cuja praticidade eu sempre invejei, ouvia tudo calado como eu, movimentando apenas o braço direito, que levava o copo de chope até a boca. Então, quando o desabafo do nosso amigo triste parecia ter chegado ao fim, ele pediu a palavra para dar seu surpreendente diagnóstico – que depois eu cheguei a me perguntar se seria sempre este o diagnóstico masculino.

- Chore mesmo – disse o amigo prático. - Chore e esperneie tudo o que você tem de espernear. Sofra, pragueje, vá ao fundo da sua dor. Mas calcule um tempo exato para este sofrimento: um mês, a contar de hoje. Daqui a um mês você deve se levantar, olhar para o espelho e dizer: agora acabou. Vou partir para outra porque esta dor ficou antiga. Chega de sofrer por isso.

Eu, que já estava quieto, resolvi me calar ainda mais, na tentativa de acreditar que fosse possível estipular um prazo para o fim da dor. Depois pensei muito no que tem sido a vida deste amigo prático durante todos esses anos que o conheço. E tive de admitir que ele sempre seguiu à risca seu próprio conselho. Não importava o tamanho do amor ou do luto, do prazer ou da dor: uma manhã qualquer ele levantava e decretava o fim daquilo que sentia.

Nunca acreditei que nossa supremacia sobre os sentimentos pudesse chegar a este nível. Reagir à dor é possível – mas que possível, talvez seja saudável. Quanto a dizer em que momento ela deve terminar, isso eu já não sei. Se pudéssemos controlar a dor com tanta aritmética, talvez pudéssemos fazer o mesmo em relação ao amor, à saudade e a tudo aquilo que faz de nós ser o que somos. Depois pensei se haveria teatro, literatura, cinema e música se a dor tivesse prazo de validade. Pensei em todas as peças, filmes e livros que só nasceram porque a dor e o amor fugiram totalmente do controle de algum autor. Talvez nós estejamos aqui porque um dia o amor e o desejo fugiram ao controle dos nossos pais.

E se eu soubesse que o que eu sinto agora poderia ser controlado daqui a um mês, acho que eu não seria nada e nem ninguém. Talvez um boleto bancário, talvez um calendário preso na parede, no máximo um aviso colado na porta da geladeira. Eu acho que a gente é bem mais do que isso porque a nossa dor e o nosso amor vão sobreviver mais do que um mês. Vão sobreviver a nós mesmos.
(http://roveriblog.blogspot.com/)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

To a locomotive in Winter (1876)




"O seu corpo cilíndrico, latões dourados e aços cor da prata / As suas maciças barras laterais, bielas paralelas, girando ritmicamente nos seus flancos / O seu palpitar, o seu rugido regular, ora vigoroso, ora enfraquecido na distância, / A sua luz dianteira, saliente, fixada na fronte, / Os seus penachos de vapor longos e pálidos, flutuantes, tingidos de delicada púrpura / As nuvens densas e negras expelidas pela chaminé / a sua ossatura soldada, as suas molas e válvulas, o trêmulo relampejar das suas rodas / a fila de carruagens, atrás obedientes, felizes por segui-la / Através da tempestade ou do bom tempo, ora rápida, ora lenta, mas sempre a avançar".
Walt Whitman (1819-1892).

domingo, 13 de setembro de 2009

DUAS BAGATELAS


DUAS BAGATELAS





Então viver é ísso,

é essa obrigação de ser feliz

a todo custo, mesmo que doa,

de amar alguma coisa, qualquer coisa,

uma causa, um corpo, o papel

em que se escreve,

a mão, a caneta até,

amar até a negação de amar,

mesmo que doa,

então viver é só

esse compromisso com a coisa,

esse contrato, esse cálculo

exato e preciso, esse vicio,

só isso.

De Liturgia da matéria (1982)

PAULO HENRIQUES BRITTO

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Emily Dickinson (1830-86)


É maior que o céu o pensamento.
Coloque-os lado a lado. Como vê,
Este pode conter com folga o outro
E ainda você.

O pensamento é mais fundo que o mar.
Ponha o azul contra o azul – note a igualdade –
Um sorverá o outro como a esponja
Sorve a água de um balde.

Tem o peso de Deus o pensamento.
Sopese-os com cuidada precisão.
Como sílaba e som, em harmonia,
Os dois se ajustarão.

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Para fazer uma campina
Basta um só trevo e uma abelha.
Trevo, abelha e fantasia.
Ou apenas fantasia
Faltando a abelha.

Tradução Idelma Ribeiro de Faria

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

MELODRAMA BLUES




Algumas pessoas acabam se encontrando. E é como se conhecessem desde sempre. Algumas pessoas desistiram de botar suas fichas na máquina e choram assistindo People and Arts de madrugada. E cultivam milhões de novidades pra dizer umas às outras. Algumas pessoas "jogaram fora o guardanapo pra comer com a mão". Fazer o quê. Algumas pessoas decidiram se sofisticar. E produzem coisas importantes. E detestam o trabalho solo do Frejat. Algumas pessoas espremem o cérebro e se divertem. E bolam apelidos engraçados pras pessoas. E nutrem idéias mirabolantes. E seus sonhos grisalhos. E seus blogs sangrando. Algumas pessoas são capazes de elogios desconcertantes. E nunca esquecem o final da piada. E citam cenas inteiras de seus filmes ruins preferidos. E racham garrafas de conhaque só pra assistir ao show dos Bêbados Habilidosos. Que resolveram tocar suas ilíadas vagabundas quase clandestinamente. Assim. Apenas pra algumas pessoas. Que riem de si mesmas como se rezassem. Que insistem em recolher as peças só pra espalhá-las de novo. Algumas pessoas que construíram isso como operárias do próprio privilégio. Que custa caro. As coisas que importam. E as que não se explicam. Algumas pessoas se debatem pra não descuidar da defesa mas desde há muito descobriram que só sabem jogar no ataque. E permanecem saudavelmente inquietas mesmo se o time estiver ganhando. Algumas pessoas se emocionam. E deixam o melhor do seu abandono em cada abraço que fica. Algumas pessoas realmente direcionaram suas vidas. E subiram nos ombros dos seus ídolos e dos seus medos pra poder enxergar depois do muro. Só pra ver aonde a bola caiu. E continuar brincando. Desfrutar desse indescritível prazer que é chutá-la mais longe .(Marcelo Montenegro)

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

uma canção de Nei Lisboa


Por Aí
Nei Lisboa
Lembra do quanto amanhecemos
Com a luz acesa
Nos papos mais estranhos
Sonhando de verdade
Salvar a humanidade
Ao redor da mesa

Sábias teses e ilusões sem fim
Ying, Jung, I Ching e outras cabalas
Procurando deus entre as folhagens do jardim

Que tolos fomos nós, que bom que foi assim
Que achamos um lugar pra ter razão
Distantes de quem pensa que o melhor da vida
É uma estrada estreita e feita de cobiça
Que nunca vai passar por aqui

Lembra de longas primaveras
De andar pela cidade
Saudando novas eras
Sonhando com certeza
Salvar a natureza
Ao final da tarde

Cegas crenças, lixo oriental
Ying, Jung, I Ching e outras balelas
Procurando deus entre as macegas do quintal

Seremos sempre assim, sempre que precisar
Seremos sempre quem teve coragem
De errar pelo caminho e de encontrar saída
No céu do labirinto que é pensar a vida
E que sempre vai passar por aí

Auras, carmas, drogas siderais
Ying, Jung, I Ching e outras viagens
Procurando deus entre delírios dos mortais

Seremos sempre assim, sempre que precisar
Seremos sempre quem teve coragem
De errar pelo caminho e de encontrar saída
No céu do labirinto que é pensar a vida
E que sempre vai passar
Sempre vai passar por aí

sábado, 5 de setembro de 2009

Fernando Pessoa





LIBERDADE
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doira
Sem literatura.



O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa...
Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.



Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!



Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.



O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

(Poema sugerido pela minha amiga Maria Luiza,leitora de Fernando Pessoa e deste blog que nada mais é que uma brincadeira onde coloco os poemas,textos e fotos que me enternecem)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Muralha




Porque me abasteci, estou de volta.
Trago comigo coisas abandonadas.
Coisas que os homens jogaram fora:
placentas, gânglios, guirlandas, guelras.

Retorno alimentada. Perigosa.
Mais mar. Mais aberta.

Hoje descobri que quando estou dormindo
Deus segura minha mão e a leva para seu rosto.
Para Ele
sou mulher e menina.
Para o mundo
sou silêncio e desordem.
Lassidão e rumor.

Uma muralha que sempre desejou ser flor.
(Marize Castro)