quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Fernando Pessoa


Começo a conhecer-me. Não existo.
Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram,
Ou metade desse intervalo, porque também há vida…
Sou isso, enfim…
Apague a luz, feche a porta e deixe de ter barulhos de chinelos no corredor.
Fique eu no quarto só com o grande sossego de mim mesmo.
É um universo barato.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Saudade é não saber mesmo


Trancar o dedo numa porta dói. Bater com o queixo no chão dói. Torcer o tornozelo dói. Um tapa, um soco, um pontapé, doem. Dói bater com a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua, dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade. Saudade de um irmão que mora longe. Saudade de uma cachoeira da infância. Saudade de um filho que estuda fora. Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais. Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu. Saudade de uma cidade. Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa. Doem essas saudades todas. Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama. Saudade da pele, do cheiro, dos beijos. Saudade da presença, e até da ausência consentida. Você podia ficar na sala e ela no quarto, sem se verem, mas sabiam-se lá. Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade, mas sabiam-se onde. Você podia ficar o dia sem vê-la, ela o dia sem vê-lo, mas sabiam-se amanhã. Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna-se menor, Ou quando alguém ou algo não deixa que esse amor siga, Ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter. Saudade é basicamente não saber. Não saber mais se ela continua fungando num ambiente mais frio. Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia. Não saber se ela ainda usa aquela saia. Não saber se ele foi na consulta com o dermatologista como prometeu. Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania de estar sempre ocupada; se ele tem assistido às aulas de inglês, se aprendeu a entrar na Internete encontrar a página do Diário Oficial; se ela aprendeu a estacionar entre dois carros; se ele continua preferindo Malzebier; se ela continua preferindo suco; se ele continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados; se ela continua dançando daquele jeitinho enlouquecedor; se ele continua cantando tão bem; se ela continua detestando o MC Donald's; se ele continua amando; se ela continua a chorar até nas comédias.
Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos; não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento; não saber como frear as lágrimas diante de uma música; não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche. Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer. É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso... É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela. Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer; Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que você, provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler...

Texto retirado do Livro Trem Bala da Martha Medeiros

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Pequeno tratado sobre minha casa


Sheyla,dizer o que dessa moça que eu adoro e escreve tudo aquilo que a gente sente e quer dizer.


Minha casa, às vezes, é tão pequena que sequer comporta minha armadura. Em outras vezes, nem mesmo casa é. Só um amontoado de livros, canções esquecidas, quadros dos outros, fotografias de paisagens, gatos dormindo, azuis de uma manhã que ainda não chegou.

Tem vez que minha casa é reconhecida pelos outros. Num olhar, numa frase, até mesmo em singelos elogios. Minha casa não espera muita coisa da rua. Porque a rua já é um outro tipo de morada, onde habitam meus crepúsculos favoritos e o perfume enigmático das nuvens e, por trás das nuvens, da escuridão.

Minha casa tem poucos espelhos. E às vezes é um universo por dentro, praticamente inabitado. A não ser pelas formigas que serpenteando estradas por entre as pareces, se dirigem aos seus escritórios e empresas subterrâneas. Sempre tão disciplinadas as formigas.


Minha casa, às vezes, é um rio onde não permito o aprisionamento de peixes, passarinhos, ou toda sorte de sutilezas que a natureza é capaz de empreender. Tenho sede só de quimeras e das chuvas de estrelas que banhavam meu olhar quando eu morava em outras casas e ainda nem sabia o significado de quimeras.

Minha casa pouco importa. O que me salva mesmo é esse nomadismo absoluto que prescinde de asas. Só de silêncio. E às vezes, de distância.

Sheyla Azevedo

sábado, 2 de outubro de 2010

De um universo a outro


É difícil mudar de casa. Sair da casca. Deixar o quentinho do cobertor. Sair do banho e alcançar a toalha. Mudanças são contrastes de estados e, por isso, doloridas. É nascer de novo sair de uma relação para o vazio. Ou para outra. É preciso coragem e ruptura. É preciso acreditar. Comum permanecermos imóveis por mais que o suportável. Sair do banho e agachar enrolado na toalha, pensando na vida. Demorar um tempo até tomar coragem pra mudar de posição. Mudar é um parto, sempre. Mesmo que o novo mundo seja melhor. Diante do universo inteiro que se anuncia novo, o de alguém que chegou de surpresa, muitas vezes nos acovardamos.

Cristina Guerra