sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

CleberCamargoRodrigues




tenho comigo, desde sempre
um limão que a limonada alcança
um papel em branco pro lápis sem ponta
um embornal lotado de saudades silenciosas.

um reencontro aqui, outro ali
um quilo e meio de certezas depois
redescobri que 'um gambá cheira o outro'
desde então, é meu coração quem desnuda os perfumes mais gostosos...

[ CleberCamargoRodrigues ]

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Bruna Beber



Situação
to domindo no lodo
da vala confortável onde dormem
os apaixonados
e lambendo sabão de cachorro
sorrindo, e sentindo cheiro de maçã
onde não tem
chamando os amigos pra almoçar
e deixando a comida esfriar
pra falar de você.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Ivo Barroso




Eliminei o excesso de paisagem
simplifiquei toda a decoração
retirei quadros flores ornamentos
apaguei as velas copos guardanapos
e a música
Bani a inutilidade do discurso
Na mesa de madeira
Nua
Apenas dois pratos
Sem talheres
O banquete será tua presença.

domingo, 16 de dezembro de 2012

NinaDValle‏




Em caso de faísca
Você molha o rastilho
De pólvora.
Olha,
Pode faltar tudo, menos coragem.
Não nessa idade.
Preciso ir, sair do frio,
Da sombra.
Um dia eu encontro
Quem engula meu fôlego.
Quem acenda o pavio.

(Foto:boate Arpege/Ribeira)

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Walt Whitman




"Agora nos encontramos e olhamos,
estamos salvos,
retorna em paz ao oceano, meu amor,
também sou parte do oceano, meu amor,
não estamos assim tão separados,
...
olha a imensa curvatura,
a coesão de tudo tão perfeito!
Quanto a mim e a ti,
separa-nos o mar irresistível
levando-nos algum tempo afastados,
embora não possa afastar-nos sempre:
não fiques impaciente — um breve espaço
e fica certa de que eu saúdo o ar,
a terra e o oceano,
todos os dias ao pôr-do-sol
por tua amada causa, meu amor."

- Poema: Do Inquieto Oceano da Multidão, Walt Whitman, poeta americano (1819-1892)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

FERNANDO BRANT » Roda pião, bambeia pião‏






FERNANDO BRANT » Roda pião, bambeia pião‏




Estado de Minas: 12/12/2012
Estou na cozinha da casa de Vera Brant, cercado, como é de hábito, por gente sensível, inteligente e criativa. Lá fora, na noite, o flamboyant impera. Tenho ao meu lado, no melhor lugar de todas as casas, o maestro Jobim e Gonzaguinha. Diante de quem tem o que dizer, e pensa com profundidade mesmo as coisas do cotidiano, prefiro falar pouco e ouvir.

A cerveja molha as gargantas e os bolinhos de feijão nos alimentam. A música, a poesia, as pessoas e o mundo eram nossos assuntos e o tempo parecia não existir. Mas estou agora ouvindo uma seresta à frente de nossa casa, em Caldas, Minas Gerais, na véspera do dia em que meu pai, juiz da comarca, se despedia da cidade para assumir o mesmo cargo em Diamantina. As imagens são nubladas quando me lembro do ocorrido. Não tinha completado 5 anos. Ficaram os sons da saudade dos que ficavam e da gratidão dos que partiam.

E agora estou, de calças curtas e mirando o presente, pisando nas pedras capistranas do Tijuco com minhas sandálias de sola de pneu, que nunca acabam. Vou comprar a revista O Cruzeiro para meus pais e aproveito e adquiro o primeiro exemplar brasileiro da Luluzinha e sua turma.

O Zé Aparecido me leva para jantar com ele no Palácio dos Buritis. Eu e o Hildebrando Pontes nos surpreendemos com a presença iluminada e bem-humorada do Oscar Niemeyer. Foi uma alegria sem precedentes, dessas que só o Zé tinha capacidade e generosidade de oferecer aos amigos.

No Bar Scotelaro, em Belo Horizonte, rompo a madrugada bebendo cerveja com Dedé, Caetano Veloso e minhas irmãs Vina e Ana. Ali mesmo iniciara, numa noite de novembro, a comemoração pelo nascimento de minha primeira filha e, mais tarde, da segunda.

Com paletó do Toninho Horta, calça preta minha e gravata borboleta de não sei quem, subo ao palco do Maracanãzinho entupido de gente para, a seu lado, assistir ao meu parceiro, Milton Bituca do Nascimento, cantar a nossa Travessia, que abria todos os horizontes para nós.

No meio de todo esse rodopio temporal e geográfico, a memória me leva e traz pelos caminhos de minha existência. Não me lembro como começou nem sei como se encerrará. Mas aprendi muito, disso tenho certeza. Quando olho para os que me cercam, a vontade que tenho é de gritar ao mundo que é com afeto, compreensão, carinho que seremos saudáveis parceiros na construção de um mundo mais justo.

A consciência de que podemos conviver em harmonia e a sede de beleza que só a amizade, o amor e a cultura podem nos ofertar me embala a fazer rodar o pião que vai encantar as crianças do mundo.

domingo, 9 de dezembro de 2012

(poema vermelho – lau Siqueira)

 
 
 
resumo



misturo tudo
que penso e sinto
num mesmo precipício

olhos que sabem voar

certeza que nunca
retorna ao mesmo
tamanho

e sou essa imensa
eterna e lenta
mutação

um estranho
que aos poucos vai
tecendo as manhãs

(mas, isto é apenas
um resumo)

(poema vermelho – lau Siqueira)

sábado, 8 de dezembro de 2012

Leminski




Bem no fundo

No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto

a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo

extinto por lei todo o remorso,
maldito seja que olhas pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais

mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.



quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Caio Fernando Abreu





"Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen, jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-los e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores, uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia. Nada por dentro e por fora além daquele quase-novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul – daquela não-dor, afinal."
Caio Fernando Abreu em Estranhos Estrangeiros

domingo, 2 de dezembro de 2012

Nivaldete e Martha Medeiros



Hoje,data do aniversário de Nivaldete Ferreira,e nada mais apropriado e parecido com ela do que esse texto de Martha Medeiros.Parabéns,como diz os poetas da MBP: "Se todos fossem iguais a você/que maravilha viver..."




Zero Hora 02/12/2012

Sempre acreditei que, se eu quisesse transformar alguma coisa, teria antes que passar por uma racionalização profunda e, posteriormente, por uma compreensão dos fatos. Ou seja, primeiro, pensar bastante para, então, compreender.

Cumprindo essas duas etapas, atingiria a serenidade buscada, fosse nas questões amorosas, familiares, profissionais, existenciais. A compreensão, como num passe de mágica, soltaria os fios enovelados e só então eu poderia me modificar.

Acontece que pensar demais cansa. Afirmo com a experiência de uma maratonista cerebral: eu vivia sempre no módulo on, com o cérebro ligado na tomada, descansando só quando dormia, e ainda assim com um olho fechado e outro aberto. Se pensar conduzia à compreensão, bora pensar, para poder entender. Sem entender, acreditava que meu barco ficaria à deriva, noites e dias sob as intempéries, sem atracar em lugar algum.

Tanta coisa serve de cais: um casamento, uma promoção, uma cura, um projeto, uma bolada, um filho. Estamos sempre indo ao encontro de alguma coisa sensacional que ainda não sabemos o que é nem se iremos encontrar mesmo.

Pois, diante desse imenso ponto de interrogação que é o futuro de todos nós, reformulei minhas crenças: estou me dando o direito de não pensar tanto, de me cobrar menos ainda, e deixar para compreender depois. Desisti de atracar o barco e resolvi aproveitar a paisagem.

Primeiro mude, a compreensão virá depois. É mais ou menos o que a filosofia de Nietzche sugere. Ninguém muda apenas através do pensamento. A transformação meramente intelectual é uma presunção, não existe de fato. É preciso colocar o pensamento nas pernas e agir. O corpo é que nos leva para uma nova vida, e não a razão, diz o filósofo num texto chamado “A favor da crítica”.

Recentemente os integrantes do programa Saia Justa discutiram o que é drama e o que é tragédia, e chegaram à conclusão de que o drama te encarcera, enquanto a tragédia, por mais dolorosa que seja, te coloca em movimento: você sai dela diferente. Do drama você não sai: você fica remoendo, remoendo, remoendo. Excesso de racionalização engessa o sentimento e não te leva pra fora, pra frente.

De Nietzche a Saia Justa é um salto e tanto, reconheço, mas toda filosofia é bem-vinda, seja acadêmica ou de mesa de bar, de programa de tevê, de coluna de jornal. Estamos aqui para aquilo que os intelectuais rejeitam que se fale em público (mas falo baixinho: ser feliz). E a felicidade não é uma ilha paradisíaca onde nosso barco um dia atracará. A felicidade não é terra firme: ela é o próprio mar.

Passamos uma vida perseguindo a felicidade, sem reparar que ela está justamente na perseguição. O pensamento nas pernas. O movimento. A ação. Não há muito a compreender além disso.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Paul Auster



Um trecho de Sunset Park...
A alegria de olhar seu rosto outra vez, a alegria de abraçá-la outra vez, a alegria de ouvir seu riso outra vez, a alegria de ouvir sua voz outra vez, a alegria de vê-la comer outra vez, a alegria de olhar para suas mãos outra vez, a alegria de olhar para seu corpo nu outra vez, a alegria de tocar seu corpo nu outra vez, a alegria de beijar seu corpo nu outra vez, a alegria de vê-la franzir as sobrancelhas outra vez, a alegria de vê-la escovar o cabelo outra vez, a alegria de vê-la pintar as unhas outra vez, a alegria de ficar debaixo do chuveiro com ela outra vez, a alegria de conversar com ela sobre livros outra vez, a alegria de ver seus olhos se encherem de lágrimas outra vez, a alegria de vê-la andar outra vez, a alegria de ouvi-la xingar Angela outra vez, a alegria de ler em voz alta para ela outra vez, a alegria de ouvir seu arroto outra vez, a aleg... ria de vê-la escovar os dentes outra vez, a alegria de tirar sua roupa outra vez, a alegria de colocar a boca sobre a sua boca outra vez, a alegria de olhar seu pescoço outra vez, a alegria de caminhar pela rua com ela outra vez, a alegria de pôr os braços em volta dos ombros dela outra vez, a alegria de lamber seus peitos outra vez, a alegria de penetrar em seu corpo outra vez, a alegria de acordar ao lado dela outra vez, a alegria de discutir sobre matemática com ela outra vez, a alegria de comprar roupas para ela outra vez, a alegria de massagear e ser massageado outra vez, a alegria de falar sobre o futuro outra vez, a alegria de viver no presente com ela outra vez, a alegria de ouvi-la dizer que o ama outra vez, a alegria de dizer para ela que a ama outra vez, a alegria de viver debaixo de seus olhos escuros e ardentes outra vez, e depois a agonia de vê-la embarcar no ônibus na rodoviária de Port Authority na tarde do dia 3 de janeiro, com a certeza de que só em abril, daqui a mais de três meses, ele terá a alegria de estar com ela outra vez.
De Paul Auster.


Por questão de honestidade,cito o link de onde tirei o texto acima,foi do blog de Tiozinho que sempre acesso gosto muito:

http://www.tiozinhodafoto.blogspot.com.br/?zx=883ddd639f38ff92



segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Pra mim





O que pode nos deixar mais comovido e emocionado do que um depoimento de uma amiga sobre a gente,ainda mais quando se trata de uma pessoa da nossa estima e que sabe escrever com a delicadeza que só os grandes escritores tem.Eu tive o enorme prazer de ter sido pesenteada com um belíssimo texto de Nivaldete,e confesso fiquei emocionada,confiram:



T T

Ela manda por e-mail textos curtos de pessoas que, de algum modo, escrevem com sangue
("escreve com sangue e verás que sangue é espírito" -impossível não trazer Nietzsche aqui). Sabe escolher, tem faro para essas escritas 'vermelhas', aquelas em que seus autores se mostram sem pudor, mostram as feridas, riem delas, se confessam arruinados naquele momento, quebram coisas na linguagem, se descabelam, choram e prosseguem com um riso irônico.
Se somos o que comemos, como dizem, Tetê ( T T) Bezerra é o que lê e as músicas que ouve. Aqui não há sectarismo: tanto um violonista sofisticado quanto um brega dor-de-cotovelo-deslavada. Pra ouvir alto, enquanto o gole de cerveja desce pela garganta. Doce boêmia, embora cerveja amargue -e não seria cerveja se não amargasse, ela diria. Porque sabe achar ditos circunstanciais adequados.

Sabendo o nosso gosto, grava CDs de Drummond dizendo poemas e nos dá como presente de aniversário, uma letrinha azul indicando do que se trata. "Gravei pra você, é seu, guarde, depois você ouve".
Seus agrados são assim: de quem conhece aquele/a que recebe o que recebe. 
 

 Delicadezas de T T, que ama cachorros e gatos. A sua gata Aninha tem também sobrenome: Bezerra. O cachorro Nino, que não tinha pelos, mas cabeleira arruivada, já foi...

Um tempão sem vê-la e é aquela mesma montanha de gente -grande e forte nos dois sentidos: no corpo e na forma de estar presente, de adivinhar a pessoa de cada pessoa e falar de coisas próprias do mundo de cada uma. E o corte e a mecha branca no cabelo lembram Susan Sontag. Digo sempre. Ou vez por outra, pois é vez por outra que a gente se acha, quase sempre nas comemorações familiares. Ainda bem.

T T esquiva-se de misturar amizade com política, por ex. Ou faz parte de sua política, já que política vem de polis, cidade, e a cidade é também o lugar 3x4 onde se está com outros, e é preciso saber estar; ela sabe. Sabe que encontrar amigos é semelhante a um devaneio, e devaneios não devem ser afugentados com discussões dessa ordem.

Ela se mostra quase surpresa porque damos retorno aos seus envios de textos: um comentário ligeiro e ela se sente tocada. Ora, T T, essas pequenas éticas são o mínimo que você merece, mas respondemos também porque igualmente nos toca termos sido lembrados.

Faça de conta que eu ainda tomo cerveja, T T. Então vai uma 'ceriveja' aí (na minha pronúncia lá de Nova Palmeira, nossa terra)?...
Tim-tim por você! Até mais depois.

P.S. Escrevi pra você, não guarde, nem precisa ler. Você sabe já isso tudo.


http://lapisvirtual.blogspot.com.br/2012/11/t-t.html#comment-form

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

Ticcia





Aprendi a amar sob o signo do efêmero, avisada de que a qualquer momento podia me flagar vivendo de mentira ou despencando de uma torre muito alta que a mim não pertencia. Alfabetizei o peito e os olhos para acolher o adeus a qualquer momento e por qualquer motivo, em muitas línguas, de muitas formas, mesmo sussurrado em ausência e silêncio. Eduquei os braços para o regresso do vazio e os pés para dar meia volta e seguir noutra direção, como se o amor fosse frágil, perecível, volátil, fugidio, como se eu nunca fosse capaz de fazê-lo vingar, ou não merecesse permanência, mais que uma miragem, um presságio, um trailer. Peço perdão se não sei mergulhar no que para mim sempre foi um poço raso demais. Para isso é preciso mais que certezas. Para isso é preciso fé.
(Escrito por Ticcia)

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

PAULO HENRIQUES BRITTO




Hoje acordei bem prático, sofístico,
sem pudores de lógica e moral,
fechado em mim, feito uma ostra, um dístico
ou uma pedra (mas não filosofal).
Devia haver mais dias como este,
livres de compromissos com dois mil
anos de ocidentalismo, a nordeste,
a sul, a sotavento do Brasil
ou do que quer que seja. Simplesmente
ser, sim, mas contingência pura, só,
nada que deixe um rastro ou excedente
em sangue, fezes, páginas ou pó.
Dias de amarrar barbante ao redor
do nada, e capturar um deus menor.

(de Cinco Sonetos Frívolos; in Formas do Nada)

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Ana Paula Oliveira.





Deixou o raio
o quarto
o risco

e se foi com a dança
de apanhar gravetos

Deixou o raio
o quarto
o risco

E esse vício tão sublime
de brincar de abismos.

Ana Paula Oliveira.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Trecho de Livros




‎"No primeiro dia pensei em me matar. No segundo, em virar padre. No terceiro, em beber até cair. No quarto, pensei em escrever uma carta para Marcela. No quinto, comecei a pensar na Europa e no sexto comecei a sonhar com as noites em Lisboa. Em seis dias Deus fez o mundo e eu refiz o meu."

(Memórias póstumas de Brás Cuba)

sábado, 20 de outubro de 2012

Cristiane Lisboa

Podemos fugir. Podemos correr duas vezes mais rápido apenas para ficar no mesmo lugar. Podemos nos camuflar, esquecer os brilhos d’alma, os sonhos de infância, as promessas feitas debaixo de estrelas, a paisagem da janela, o chão de terra, a vista do rio. Mas quando a borra de café se aconchega no fundo da xícara sussura o destino. E sou obrigada a voltar a querer o que na verdade sempre quis.

Cristiane Lisboa

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

LUA NOVA | manuel bandeira



Meu novo quarto
virado para o nascente:
meu quarto, de novo a cavaleiro da entrada da barra.

Depois de dez anos de pátio
volto a tomar conhecimento da aurora.
Volto a banhar meus olhos no mênstruo incruento das madrugadas.

Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir.

Hei de aprender com ele
a partir de uma vez
- sem medo,
sem remorso,
sem saudade.

Não pensem que estou aguardando a lua cheia
- esse sol da demência
vaga e noctâmbula.
O que mais quero,
o de que preciso
é de lua nova.

sábado, 29 de setembro de 2012

Rubens Jardim




Toda mulher é uma viagem
ao desconhecido. Igual poesia
avessa ao verso e à trucagem,
mulher é iniciação do dia,

promessa, surpresa, miragem.
De nada adiantam mapas, guias,
cenas ensaiadas ou pilhagens.
Controverso ser, mulher é via

de mão única, abismo, moagem.
É também risco máximo, magia,
caminho íngreme na paisagem.

Simplificando: mulher é linguagem,
palavra nova, imagem que anistia
o ser, o vir-a-ser e outras bobagens

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Diva Cunha







Certas mulheres catam coisas pequeninas
conchas, feijões, letras

outras distraem-se nos espelhos
contam rugas

algumas contam nuvens
criam cachorros e gatos como crianças

certas mulheres guardam mágoas
ressentimentos, botões, elásticos

algumas são como certos homens
não contam nada
ocupadas com coisas incontáveis

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Marla de Queiroz

Momento de me recolher para me acolher. Hoje, pelo dia difícil, pelo desafio novo, pelo susto atravessando a tarde, o choro preso, uma tristeza nada boba, mas passageira, meu olhar ficou cansado, minha mente pesada, a cabeça doendo e as pessoas me pedindo ajuda sem me perguntar como eu estava. Pois saibam que a melancolia surpreende até os que são otimistas e tiram fotos com o sorriso escancarado ou abraçados às paisagens. Mas não enfio mais a minha dor no bolso para cuidar do Outro, como fazia Caio F. Contudo, eu sabia que neste mesmo dia, agora nesta noite calma, eu teria o meu colo, meu afago, meu afeto derramado, um jeito de me aninhar confortavelmente convidando o bem-estar.E, é neste momento de recolhimento doce, bem na hora em que as coisas falam comigo e tudo que estava embaçado vai clareando aos poucos, tenho meu auto-abraço-amigo.
Que o dia vai acordar pulsante, eu não tenho dúvidas.E minha alma vai acordar renovada deste instante: doida pra resgatar minha alegria.

Marla de Queiroz
 
Belíssima foto do fotográfo potiguar João Maria.
 

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Clarissa Corrêa







"Quem é feliz não conta, não espalha, não grita aos quatro cantos. Quem é feliz, satisfaze-se por ser. E sabe que felicidade anda coladinha na inveja. Quem é feliz não precisa provar nada, simplesmente é. As pessoas felizes demais nunca me passaram confiança. Essa coisa de que a vida é uma festa e não existe nada errado, não me brilha aos olhos. Feliz é quem conhece o lado ruim e o respeita. Feliz é quem já foi infeliz. Somente quem já foi infeliz pode entender que a tristeza traz um punhado muito bom de aprendizados. Felicidade não é sobre quem grita mais alto; é sobre quem sorri mais fundo."

Clarissa Corrêa
 
(Foto do fotográfo potiguar João Maria)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O valioso tempo dos maduros

O valioso tempo dos maduros

"Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora.Tenho muito mais passado do que futuro. Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço. Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte. Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha. Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário-geral do coral. As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos. Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, quero a essência, minha alma tem pressa... Sem muitas cerejas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, que não se encanta com triunfos, que não se considera eleita antes da hora, que não foge de sua mortalidade, Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade! O essencial faz a vida valer a pena. E para mim, basta o essencial!"
 
 
A foto é da minha sobrinha neta Sophia,uma fofura de criança..

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Carlos Heitor Cony - O imenso Jorge




Carlos Heitor Cony - O imenso Jorge

Criou uma obra torrencial, quente de vida e de pecado, numa prosa que parecia desleixada aos críticos

Ele foi o único habitante deste planeta que conseguiu acreditar com a mesma sinceridade em Marx e na Menininha do Gantois. Muitos não admitem essa intimidade de Jorge com o marxismo, ao qual aderiu mais com o coração do que com a cabeça. E sua literatura também foi assim. Nada de papo cabeça.

Papo coração.


Suando baianidade, melado pelo ouro do cacau, ele foi uma mistura de pai de santo e pajé, um pajé que sabia contar histórias bonitas para a imensa taba global onde à noite, se alguém era capaz de duvidar, ele repetia com astúcia: "Meninos, eu vi!".


Se o poeta é o fingidor, o romancista é o mentiroso. No caso da poesia, quanto mais finge, mais o poeta é sincero.


No romance, quanto mais se mente, mais se é verdadeiro. E nada mais verdadeiro do que o universo de saveiros e moleques, de mulatas cadeirudas e operários perseguidos, de xangôs e iemanjás, de cabarés e velórios, de doutores de borla e capelo e capitães de longo curso, de quituteiras e babalaôs que povoaram suas noites enfeitiçadas, seus terreiros de suor e milagres -que a carne sofre inteira e precisa sentir prazer por inteiro, pois ninguém é de ferro.


Jorge Amado conseguiu o absurdo de ser cético e de ser crente. Só na Bahia podia nascer um sujeito assim. Por isso mesmo ele tinha um gosto de azeite e de sono espreguiçado, de cafuné e de mulata tombada nos fundos da cozinha.


Espiou o mundo com o olho treinado nas fechaduras da vida: compreendeu tudo. Leitores que ele teve em todo o mundo não sabem o que perderam: a pessoa humana que só deu a conhecer uma parte de si mesma. Uma parte que constitui um dos maiores todos da literatura moderna.

E este Jorge começou a se mostrar de mansinho, escrevendo "Lenita", uma novela em parceria com Dias da Costa e Edson Carneiro. Tinha 15 anos. O trabalho em equipe geralmente não figura na lista de suas obras, mas não deixou de ser uma ameaça. Ele queria escrever.

O seu aprendizado não seria feito nos laboratórios da gramática ou nos alambiques da linguística. Como a cozinheira se faz no fogão, prevendo e provendo panelas e frigideiras, Jorge se fez na vida, vivendo e escrevendo. Lenita teria sucessoras: Gabriela, Dona Flor, Tereza Batista, Tieta do Agreste.

Criou uma obra torrencial, humana, quente de vida e de pecado, numa prosa que parecia desleixada aos críticos do "ancien régime" literário, mas que o povo ia absorvendo, gostando e consagrando.

Sua obra é inteira, coerente, vívida, caudalosa, formalmente irregular e densamente regular. Não se deve exigir a mediocridade das fórmulas tradicionais de um escritor cuja força humana e literária criou "Jubiabá", "Mar Morto", "A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água".


Suas mulheres de ancas cobiçadas, seus turcos fesceninos cheios de truques, seus marinheiros mentirosos, seus santos e suas senhoras afogadas em mantas e colares coloridos são sempre os mesmos, em qualquer língua ou sob qualquer sintaxe.


Jorge faria hoje, 10 de agosto, cem anos. Fez mais do que isso. Para todo o sempre, ele ficou inteiro em sua obra, e para aqueles que o conheceram foi uma figura humana espetacular. Dele guardo duas lembranças pessoais.


À minha revelia, marcou um encontro com a Menininha do Gantois e foi comigo para ver como me sairia. Garantiu-me que a visita "mal não pode fazer". Filho dileto de outra mãe de santo, ele não podia pedir a bênção de uma rival. Mas pediu e foi abençoado. Para todos os efeitos, ele era filho e devoto de todas as mães de santo da Bahia.


Tancredo Neves foi a um almoço na "Manchete". Quando me viu, o já presidente eleito elogiou crônica publicada naquela semana, aludindo a uma suposta "plasticidade" de estilo. Tive meu minuto de glória. Logo chegou Jorge Amado, blusão com todas as cores, boné de operário russo e capanga pendurada em diagonal no seu largo peito. Tancredo correu para abraçá-lo e elogiou seu último livro: "Que plasticidade!".


Murchei. Fui me queixar com o Jorge, muito mais escolado em situações iguais. Ele comentou: "O Doutor Tancredo errou de profissão. Seria melhor e maior romancista do que todos nós, incluindo o velho Machado".

quinta-feira, 2 de agosto de 2012







"A mim, na realidade, apaixonava o caminho do meio: bebedeiras, loucura e gente durante a noite. Solidão e silêncio de dia. Lia e escrevia diante do mar. Varadero continuava sendo uma praia e um povoado fantasma. Ali descobri que o ócio total e absoluto é imprescindível para o criador. Sempre será preferível para o escritor ter cinco centavos no bolso, mas dispor de todo o tempo e solidão, em vez de cem mil dólares em troca de viver como um louco no meio da sociedade, puxado pelo estresse."


(Pedro Juan Gutierrez) 

(A foto que ilustra esse texto é do filme "PARIS TEXAS" )

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Angélica Freitas






a poesia não (reloaded)
a poesia não é uma coisa idiota
a poesia não é uma opção
a poesia não é só linguagem
a poesia, não
a poesia não é para ser entendida
a poesia não é uma ciência exacta
a poesia não é arma
a poesia não é mais de Orfeu
a poesia não é diferente
a poesia não é um casamento
a poesia não é um sentido
a poesia não é, nunca foi
a poesia não é escolha
a poesia não é nem quer ser mercadoria
“a poesia não é uma força de choque.
é uma força de ocupação.”
Mas a poesia não é a revelação do real?
a poesia não é a arte do objeto
a poesia não é mero artifício
a poesia não é de Castro Alves, como pensam muitas pessoas
a poesia não é mais representativa
a poesia não é uma ocupação permanente
a poesia não é um espelho
não, a poesia não é uma arte contemplativa
a poesia não é uma coisa idiota
a poesia não é algo que possa utilizar-se como trombeta
a poesia não é uma questão de sentimentos
a poesia não é feita (diretamente) de idéias
mas de palavras (estas, sim, portadoras daquelas)
as pessoas nem sempre percebem que a poesia não
é mero entretenimento, brincadeirinha literária inconseqüente
já a poesia não.

- Angélica Freitas

domingo, 22 de julho de 2012

MARTHA MEDEIROS - Pequenas felicidades






- Cachorro-quente.

- Na esteira de bagagens do aeroporto, sua mala estar entre as primeiras a aparecer.

- Receber notícias de um amigo de que você gosta muito e que andava sumido.

- Ter recebido de presente a série inteira de Mad Men para assistir atirada no sofá.

- Numa loja de CDs usados, por um preço irrisório, encontrar discos de Keith Jarret, Tom Waits, Chet Baker e Miles Davis que você já teve em vinil e estupidamente se desfez.

- Livros. Encantar-se por um autor que você não conhecia.

- Num restaurante com os amigos, a última rodada ser brinde da casa.

- Dentro do cinema, não haver ninguém conversando e fazendo barulho com papel de bala e saco de pipoca.

- Revistas TPM, Lola, Bravo, Elle, Vogue, Joyce Pascowitch – revistas de moda, cultura, entretenimento e decoração são sempre um luxo acessível, uma fantasia necessária.

- Lareira.

- Sair bem na foto.

- Passar um fim de semana no Rio.

- Um bom programa de entrevistas na tevê.

- Uma consulta altamente proveitosa na terapia.

- Flores, folhagens, jardins, árvores, montanha.

- Acertarem no presente.

- Taxista que não corre.

- Prazos de validade bem visíveis nos produtos perecíveis.

- Banho quente. Sem pressa pra sair.

- Declaração de amor de filho.

- Declaração de amor do seu amor.

- Conversar longamente com sua melhor amiga. Tomando um vinho tinto, melhor ainda.

- Alguém encontrou e devolveu a carteira que você havia perdido com todos os documentos dentro.

- Barulho de chuva antes de dormir.

- Dia de sol ao acordar.

- Massagem.

- Receber um elogio profissional de alguém que você admira muito.

- Subir na balança e descobrir que emagreceu.

- Check-up que não acusa nenhum distúrbio de saúde.

- Lembrar detalhes de um sonho bom.

- A vibrante pulsação de um show ao vivo.

- Biografias bem escritas de personalidades interessantes.

- Praia com mar de cartão postal.

- Festa boa.

- A luz voltar.

- Um dinheiro extra que você não estava esperando.

- Beijo.

- n Sair do dentista ouvindo a recomendação de voltar só dali a um ano.

- Uma noite bem dormida.

- Ter concluído satisfatoriamente todas as pendências da semana.

- Seu time fazer o gol decisivo no último minuto do jogo – é preciso sofrer um pouquinho na vida.

- Coca-Cola. Bombom. Pão com manteiga. Queijo.

- Chorar de rir.

- Quitar uma dívida.

- Rever as obras de um pintor de que você gosta muito.

- Seu cachorro de estimação. Seu gato aninhado em seu colo.

- Identificar suas próprias pequenas felicidades e, mesmo nem tudo dando certo, gostar da vida que leva.

(O arco íris na praia de ponta negra,foto de João Maria)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

Alessandro "Robocop" Bartel





Vermelhos. Vermelhos seus olhos estavam quando me disse. Disse que não. Não havia a mínima chance de algo entre a gente acontecer. Você precisa me entender. Preciso fazer isso por mim, falou com o olhar baixo e a voz embargada. Silêncio. Foi isso que aconteceu nos minutos seguintes. De repente, o silêncio se desfez. Eu acho que não tem nada a ver, sabe, a gente não tem nada a ver. Agora, ela deu p...ra achar as coisas, pensei. Era fim de tarde e lá no oeste, o sol tocava, de leve, o horizonte. Uma cor laranja invadia a janela da sala e iluminava um porta-retrato, um sapato seu e registrava, em cores vivas, nossa separação. Não houve nenhum porém. Ele me ligou e a gente vai tentar, foram essas suas últimas palavras. Resolvi não arriscar nenhuma palavra. Apenas sorri. Sorri e ela entendeu que tava tudo bem. Peguei meu óculos, engoli a saliva, beijei-lhe a testa, destranquei a porta e sai. Não olhei pra trás. Desci nove lances de escadas e quando alcancei a rua, o horizonte já havia engolido o sol. Céu limpo, um vento de leve, desses típicos de outono, atingiu-me em cheio. Segui em frente, sem saber pra onde ir. Olhei pro céu. Há muito tempo não fazia uma noite assim.

(Alessandro "Robocop" Bartel)

quarta-feira, 18 de julho de 2012

MARTHA MEDEIROS - Para Woody Allen, com amor



MARTHA MEDEIROS - Para Woody Allen, com amor

Tinham me dito que seu novo filme era meio bobinho, com piadas requentadas e que não acrescentava grande coisa à sua carreira. Querido cineasta, quem o julga com severidade o faz por amor também – admira tanto sua obra que não se contenta com menos do que um Match Point ou um Meia Noite em Paris –, porém ganharíamos mais se julgássemos você pelo seu estado de espírito, que tem sido transparente e inspirador. Espero não estar sendo pretensiosa, mas percebo que, depois de muitos anos procurando entender e diagnosticar as neuroses humanas – as suas, inclusive –, você deu o serviço como feito e agora está apenas se divertindo enquanto seu lobo não vem.

Não vejo maneira mais inteligente de envelhecer. Deixar de lado a obsessão por originalidade e dar seu recado com as ferramentas que domina é uma forma de se libertar, e a liberdade é um dom para poucos. Você sabe que um dos assuntos do seu novo filme, a de que as pessoas perderam a noção do ridículo ao valorizarem a vida íntima dos “famosos” (e os “famosos” mais ainda ao se deixarem seduzir por essa falácia), já está datado. No entanto, filmando em Roma, terra dos paparazzi, como não aproveitar a piada?

Acreditar-se especial nos torna patéticos. Somos todos uns pobres diabos tentando enfrentar a morte iminente com alguma ilusão tirada da cartola. Você é um homem talentoso com uma extensa folha de serviços prestados ao cinema mundial, mas o fato de se reconhecer comum o torna ainda maior.

Outro dia ouvi do grande Gilberto Gil, ao completar 70 anos: “Me dou cada vez menos importância”. Ah, que presente para si mesmo. Somos todos geniais cantando no chuveiro – quando passamos a acreditar seriamente que merecemos veneração, lá se vai um pouco da nossa essência.

Como diz o personagem de Alec Baldwin, maturidade talvez não seja sinônimo de sabedoria, e sim de exaustão. Quanto mais o tempo passa, mais se torna necessário simplificar a vida. O que não impede de estarmos abertos para algumas surpresas. Escutar mais do que falar, aprender mais do que ensinar, enxergar mais do que aparecer – não seria o ideal? Lutar contra o próprio ego não é fácil, mas é o único jeito de mantermos uma certa sanidade e paz de espírito.

Caro Woody, minha admiração segue gigantesca. Não só por todos os filmes brilhantes já realizados, mas também por você ter alcançado essa visão desestressada e zombeteira da vida maluca que levamos todos.

Por você conseguir, a despeito de todos os elogios e prêmios recebidos, ter a dimensão exata do seu tamanho no mundo. De não trocar seus prazeres pessoais pela ânsia de ter mais visibilidade. Por filmar em diferentes cidades do planeta, extraindo delas sua beleza genuína, mas sem deixar de unificar as fraquezas e grandezas humanas, que são iguais em qualquer lugar.

O resto é gordura desnecessária. Longa vida aos que conseguem se desapegar do ego e ver a graça da coisa.

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Alma Corsária





Alma Corsária 

De tanto sono me baixa uma lucidez estranha
em que a amendoeira pousa, luminosa, rara,
sob o fundo escuro da noite meio baça
(cilíndrica, roliça, bizarra)
seu vulto verde acocorado sobre a água
da piscina que não tem um pensamento.

Eu sinto inveja dessas águas anuladas
tão plácidas, idênticas ao próprio contorno
enquanto eu mesma nem sei onde começo,
quando acabo
e sofro o assédio de tudo o que me toca.

O mundo ora me engole, ora me vara
e tudo o que aproxima me desterra.
Chorei, ao ver no chão da cela,
o botão arrancado na contenda,
os óculos pisados do escritor judeu.

Tenho um coração que estala
com o peteleco das palavras de Clarice.
Numa vila miserável na Bahia,
um negro lindo, lindo,
dança ao som do corisco
_ e só me apaixono por casos perdidos,
homens com um quê de irremediável.

Mais de uma vez, imóvel, circunspecta,
vi abrir-se a máquina do mundo
sob a luz inclinada de Ipanema,
na Serra da Bocaina, no meio da floresta,
no alto da escada no topo do morro
por onde a moça seqüestrada vinha subindo
debaixo das lágrimas do pai.

Mais de uma vez meu coração trincou feito vidro
diante da página impressa,
e sempre que a palavra justa vem tirar seu mel
de dentro da copa do desespero de amor.
Acredito, do fundo das minhas células,
que uma amizade sincera "é o único modo de sair da solidão
que um espírito tem no corpo".
Sim, eu acredito no corpo.

Por tudo isso é que eu me perco
em coisas que, nos outros,
são migalhas.
Por isso navego, sóbria, de olho seco,
as madrugadas.
Por isso ando pisando em brasas
até sobre as folhas de relva,
na trilha mais incerta e mais sozinha.

Mas se me perguntarem o que é um poeta
(Eu daria tudo o que era meu por nada),
eu digo.
O poeta é uma deformidade.

Claudia Roquette-Pinto

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Fernando Pessoa




Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto de apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.
Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque de tão interessante que é a todos os momentos,
a vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre as árvores e esquecimentos,
Entre tombos e perigos e ausências de amanhã.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Políbio Alves



Última carta

Estou tãp alegre
que o sono me escapa
e me lacra
sobre o azul das paredes.
É o mesmo continente
sala e quarto, aquele azul
descascado pelo tempo.
Estou tão só e contente
que amanhã de manhã
vou abrir a janela,
me lançar
do décimo segundo andar
e decuplar
um soco no mundo.


 

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Baudelaire

"EMBRIAGUEM-SE
É preciso estar sempre embriagado. Aí está: eis a única questão. Para não sentirem o fardo horrível do Tempo que verga e inclina para a terra, é preciso que se embriaguem sem descanso.

Com quê? Com vinho, poesia ou virtude, a escolher. Mas embriaguem-se.

E se, porventura, nos degraus de um palácio, sobre a relva verde de um fosso, na solidão morna do quarto, a embriaguez diminuir ou desaparecer quando você acordar, pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que flui, a tudo que geme, a tudo que gira, a tudo que canta, a tudo que fala, pergunte que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro, o relógio responderão: "É hora de embriagar-se! Para não serem os escravos martirizados do Tempo, embriaguem-se; embriaguem-se sem descanso". Com vinho, poesia ou virtude, a escolher".
Baudelaire

terça-feira, 12 de junho de 2012

Marcelo Montenegro

Filme
Você pede para eu apertar o pause
e vai ao banheiro
deixando ao meu lado
seu cheiro quente
no travesseiro amassado.
Penso por um segundo
no texto que fiquei de escrever
para uma revista de literatura.
“Se é possível conciliar experimentalismo formal
E lirismo na poesia”.
Ouço sua bunda
desgrudar-se da tampa
que bate seca
e levemente na privada.
A descarga, a torneira ligada,
imagino uma grande sequência.
(A preguiça tem algo de comovente nos dias úteis.)
Você volta ao quarto dizendo
-Está me dando uma fome!
enquanto rimos da pose engraçada
que o ator parou.
Antes de apertar o play
chego a esboçar que algumas pessoas
são incapazes
de tirar a poesia do sério.
(Marcelo Montenegro)

A foto é de Henri Cartier-Bresson

terça-feira, 5 de junho de 2012

Marla de Queiroz


"Feira Hippie, BH" Pintura de Jean Paulo
Não encontrei o mar revolto em Pessoa, mas vi em Hilda Hilst seu jeito destemido de ser tão obscena e obcecada. Não fui moça casadoira como Adélia Prado, eu me inseri na babilônia da lascívia de Anais Nin, entre a loucura, a delícia e a razão fantasiada. Eu quis salvar a vida de Ana C. que virou passarinho em Manoel de Barros. Estive com Clarice, Caio e Mia Couto, mas quis que Guimarães me amasse qual neblina Diadorim: faltou meu Riobaldo, um rio nosso, terra seca e a boca molhada de neologismos pra mulher amada.
(Fui quase injusta em desejar que as coisas tivessem sempre um real tamanho, que as fomes fossem saciadas sempre pelo melhor gosto, que a chuva só desabasse em tempos de matar a sede.) Tranquei meus dias ruins nas cores de um Miró aceso. Fui tão constrangedora não sendo infeliz como escritora, preferindo de qualquer maneira a incerteza da existência da verdade inteira. Se quase sucumbi num poço de tristeza, me reergo até hoje, constante e amiúde, fazendo o meu melhor_ fiz o maior que pude. Mas não me preservei: ainda sou lanhada pelos galhos de matas fechadas que são o meu altar, minha estrada.
Engulo o amargo da saudade sem fazer careta, absorvo o azedo da rejeição sem me achar menor, abro os braços para a escuridão contando estrelas, gasto cada gota de suor e sangue nas minhas entregas. E não economizo gargalhadas, mas pago o preço alto do inconveniente de viver no mundo paralelo e metafísico onde vivem as palavras.
Estive em muitas páginas. Grifei muitos parágrafos. Sorvi tantas inglórias e orgasmos e vitórias.
E estive com você além de mim. Fui burra, mas foi bom. Fui pura, mas fui tola. E toda a malícia vinda na hora inadequada me fez desconfiada por tudo, por nada.
Eu tenho um jeito enorme de amar pra sempre, mas sou desajeitada.
Eu tenho um jeito imenso de ser comovente, mas sempre concluo as histórias na hora errada.

Marla de Queiroz
 

terça-feira, 29 de maio de 2012

Lúcio Cardoso

"Vou com Fregolente à Barra da Tijuca, onde durante algum tempo, infeliz e sem repouso, viajo através de uma multidão feia, triste e sem nenhuma dúvida profundamente desgraçada. Só a desgraça alimenta uma tal sede de divertimento. Aliás, é sempre este o aspecto de um aglomerado que se reúne à procura de esquecimento: os limites humanos surgem com avassaladora nitidez e o rebanho festivo adquire um aspecto confrangedor, de coisa abandonada e amaldiçoada. Não é precisamente nesses minutos, nesses e não em outros, que ousamos desejar para toda essa gente uma catástrofe comum, uma guerra, uma inundação ou até mesmo um ataque coletivo de insânia ou de crueldade - qualquer coisa enfim que agite essas carnes moles que se estendem ao sol, domesticadas pela preguiça, pelo álcool e por uma sensualidade grosseira e sem profundidade?

Talvez o amanhã pertença a gente dessa espécie - talvez sejam eles os coordenadores do mundo em que começamos a viver. Mas são tão melancólicos e tão estritamente confinados à sua miséria, que possivelmente estão muito longe de perceber o que se passa. O Deus antigo, o Deus do terror e das hecatombes, bem poderia agora esparzir esse sangue bruto ao longo das areias mornas - bem poderia brandir um raio ou soprar uma rajada morna de demência - qualquer coisa finalmente que fizesse sangrar essas almas cativas, tornando-as acordadas e viris. Há uma determinada sonolência da alma, que só o castigo e o medo conseguem afastar. Os ferros do tempo dos escravos ou as tenazes ardentes da Inquisição, tudo serviria para fazer vir à tona das faces uma sombra de sentimento ou de espírito. Mas é inútil sonhar, eles apenas vivem uma agonia sem sentido, enquanto aconchegam ao sol brando, sem amor e sem piedade, as velhas carnes mal-tratadas.

(Inútil conter, é muito forte o sopro de impiedade que me atravessa. Ó carnes abastadas e domingueiras! Custa a crer que tenha havido um mistério da Encarnação, e que um Deus autêntico tenha descido a este mundo para redimir tal rebotalho... Sim, as revoluções, que são exteriores, podem lidar com isto - mas a religião, que fará desta vontade assassinada?)"



Trecho do diário de Lúcio Cardoso lançado na década de 70 pela editora Jose Olímpio.