segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Senha

Senha

Eu sou uma mulher sem nenhum mel
eu não tenho um colírio nem um chá
tento a rosa de seda sobre o muro
minha raiz comendo esterco e chão.
Quero a macia flor desabrochada
irado polvo cego é meu carinho.
Eu quero ser chamada rosa e flor
Eu vou gerar um cacto sem espinho.

Adélia Prado

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Manoel de Barros

O APANHADOR DE DESPERDÍCIOS

Manoel de Barros

Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras fatigadas de informar.
Dou mais respeito às que vivem
de barriga no chão tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos como as boas moscas.
Queria que minha voz tivesse um formato de canto.
Por que eu não sou da informática:
Eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

domingo, 22 de dezembro de 2013

A Paciência e seus limites

A Paciência e seus limites


Dá a entender que me ama,
mas não se declara.
Fica mastigando grama,
rodando no dedo sua penca de chaves,
como qualquer bobo.
Não me engana a desculpa amarela:
‘Quero discutir minha lírica com você’.
Que enfado! Desembucha, homem,
tenho outro pretendente
e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio
que esse seu verso doente.

Adélia Prado

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Guillaume Apollinaire

A PONTE MIRABEAU
Sob a ponte Mirabeau corre o Sena
E nosso amor
É preciso trazê-lo à cena
A alegria vinha sempre após a pena
Venha a noite, soe a hora
Os dias se vão, não vou embora
De mãos dadas ficamos face a face
Enquanto que sob
A ponte dos nossos braços passa
Eternos olhares a onda tão lassa
Venha a noite, soe a hora
Os dias se vão, não vou embora
O amor se vai como água corrente
O amor se vai
Como a vida é lenta
Como a Esperança é violenta
Venha a noite, soe a hora
Os dias se vão, não vou embora
Passam os dias e as semanas
Nem o tempo passado
Nem o amor acena
Sob a Ponte Mirabeau flui o Sena
Venha a noite, soe a hora
Os dias se vão, não vou embora

Guillaume Apollinaire
Tradução: Virna Teixeira

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

ESPELHO

ESPELHO
 
Sylvia Plath
       Tradução: Rodrigo Garcia Lopes e Maurício A. Mendonça

Sou prateado e exato. Não tenho preconceitos.
Tudo o que vejo engulo no mesmo momento
Do jeito que é, sem manchas de amor ou desprezo.
Não sou cruel, apenas verdadeiro —
O olho de um pequeno deus, com quatro cantos.
O tempo todo medito do outro lado da parede.
Cor-de-rosa, malhada. Há tanto tempo olho para ele
Que acho que faz parte do meu coração. Mas ele
[ falha.
Escuridão e faces nos separam mais e mais.


Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça
[ sobre mim,
Buscando em minhas margens sua imagem
[ verdadeira.
Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua.
Vejo suas costas, e a reflito fielmente.
Me retribui com lágrimas e acenos.
Sou importante para ela. Ela vai e vem.
A cada manhã seu rosto repõe a escuridão.
Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha
Emerge em sua direção, dia a dia, como um
[ peixe terrível.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Perfomarce

 
Performance

Não é só para apaziguar
as guerras
é para mudar de rosto, de roupa
de corpo
fraturar-se, quebrar-se
transformar-se
ser despedida e raiz
espanto
Não é só para cantar
é para mudar de ângulo
de geografia
como as nuvens mudam de forma
também mudamos de olhos e cílios
de hábitos e de lábios
 
Iracema Macedo