quarta-feira, 25 de junho de 2014

Alice SantAnna

eu sabia
que mesmo depois que me
despedisse e fechasse
a porta

e descesse todos
os degraus troteando
a escada em espiral

e entrasse no táxi, boa-noite
siga reto, por favor, à
direita, o troco, obrigada
e acenasse para o porteiro

mesmo depois que eu apertasse
o botão do elevador, procurando
o chaveiro na bolsa

abrisse a porta de casa
tirasse os sapatos, os brincos
escovasse os dentes, os cabelos

mesmo depois que eu
dormisse e sonhasse e até a hora
em que acordasse, você ainda estaria

com os olhos
presos
à porta.

domingo, 15 de junho de 2014

Paulo Mendes Campos

ACORRENTADOS Quem coleciona selos para o filho do amigo; quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; quem procura na cidade os traços da cidade que passou; quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; quem envia bonecas às filhas dos lázaros; quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; quem manda livros aos presidiários; quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; quem se lembra todos os dias do amigo morto; quem jamais negligencia os ritos da amizade; quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; quem guarda as cartas do noivado com uma fita; quem sabe construir uma boa fogueira; quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; quem se desata em sorriso à visão de uma cascata; quem leva a sério os transatlânticos que passam; quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; quem de repente liberta os pássaros do viveiro; quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
Autor: Paulo Mendes Campos
Texto extraído do livro "
O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 105.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Trecho de Carta de Rubem Braga para Clarice Lispector

"Meio desempregado, enfrentei o verão (o maior de que tenho lembrança, e continua ainda) em meu novo e pequeno apartamento, e me entreguei à praia, ao uísque e aos levianos amores com estranha voracidade. Agora estou um tanto cansado - inclusive do Rio e do apartamento - e crivado de dívidas".

(Carta de Rubem Braga para Clarice Lispector, Rio, 23-05-53 do livro: Correspondências Clarice Lispector, organizado por Teresa Montero, p. 153)


http://vemcaluisa.blogspot.com.br/2010/06/praia-ao-uisque-e-aos-levianos-amores.html

sábado, 7 de junho de 2014

Lau Siqueira

DA IMORTALIDADE
POÉTICA


eternas mesmo
são as nuvens

essas dissonâncias
do infinito

eternas
e mutantes

mas a vida
e suas dobras
de estupidez e
coragem...

a vida é aqui
e agora

e é frágil
como uma caipora

é tão frágil a vida
que uma única morte
não basta

por isso sempre
amanheço um pouco
esta memória

o que está posto
poderia ser dito
numa oração

num tratado
numa tese
num conceito
reformado

mas eis aqui
um poema
besta

e hoje nem é sexta