terça-feira, 26 de novembro de 2013

setembro

setembro
Nunca mais será setembro,
nunca mais a tua voz dizendo
nunca mais, eu lembro,
nunca mais, eu não esqueço,
a pele, nunca mais,
o teu olhar quebrado,
dividido, vou esquecê-lo,
é o que digo, nunca mais
a minha mão no teu sorriso,
a tua voz cantando,
vou apagá-la para sempre,
e nossos dias, setembro, lembro
bem, dentro a tua voz dizendo não
( ouço ainda agora ), como se quebrasse
um copo, mil copos, contra o muro.
Rasgarei o que não houve, o que seria,
mesmo que tudo em mim me diga não
( e diz ), mas é preciso.
Como não se pensa mais um pensamento,
quero, prometo:
nunca mais será setembro.
( eucanaã ferraz )

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Praça da república dos meus sonhos - Roberto Piva

Praça da república dos meus sonhos - Roberto Piva


A estátua de Álvares de Azevedo é devorada com paciência pela paisagem
de morfina
a praça leva pontes aplicadas no centro de seu corpo e crianças brincando
na tarde de esterco
Praça da República dos meus sonhos
onde tudo se faz febre e pombas crucificadas
onde beatificados vêm agitar as massas
onde Garcia Lorca espera seu dentista
onde conquistamos a imensa desolação dos dias mais doces
os meninos tiveram seus testículos espetados pela multidão
lábios coagulam sem estardalhaço
os mictórios tomam um lugar na luz
e os coqueiros se fixam onde o vento desarruma os cabelos
Delirium Tremens diante do Paraíso bundas glabras sexos de papel
anjos deitados nos canteiros cobertos de cal água fumegante nas
privadas cérebros sulcados de acenos
os veterinários passam lentos lendo Dom Casmurro
há jovens pederastas embebidos em lilás
e putas com a noite passeando em torno de suas unhas
há uma gota de chuva na cabeleira abandonada
enquanto o sangue faz naufragar as corolas
Oh minhas visões lembranças de Rimbaud praça da República dos meus
Sonhos última sabedoria debruçada numa porta santa



Roberto Piva nasceu em São Paulo no dia 25 de setembro de 1937. Poeta ligado aos marginais dos anos 60, esteve na Antologia dos Novíssimos de Massao Ohno em 1961 e em 26 poetas hoje de Heloisa Buarque de Holanda. Foi professor na rede de ensino público, produtor de shows de rock e é um dos três únicos poetas brasileiros a ser citado no Dicionário Geral do Surrealismo publicado na França.


http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2013/11/18/praca-da-republica-dos-meus-sonhos-roberto-piva-515029.asp

domingo, 17 de novembro de 2013

eucanaã ferraz

piscina

Nem solidões, nem navios.
Netuno menino brinca no quintal
do vizinho, no jardim , terraço
do edifício: praia de bolso, praia

na bolsa, água e paredes de louça.
Doido , o verão não tem destino
certo, mas o desatino nesse oceano-
retângulo deixa-se emoldurar

em nuvens de vidro. Paisagem
breve. A calma aguarda
tempestades - trampolim! -
em copo d'água.

( eucanaã ferraz )

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Sanderson Negreiros


Ele voltou!Depois de um longo tempo sem publicar,o maior cronista do RN nos presenteia com essa linda crônica publicada na Tribuna do Norte:

O passarinheiro

Publicação: 03 de Novembro de 2013 às 00:00

Sanderson Negreiros - escritor

À memória de Pedro Vicente

Antônio de Águas Belas morava em um socavão de serra. Era seu reino, desencantado. De lá era capaz de se ouvir o ranger de rotação e translação da Terra como se o Universo fosse uma velha porteira que rangesse, ou um portal secular, cujas dobradiças enferrujadas multiplicassem o som gutural de seus movimentos em torno do sol.

Do seu buraco do mundo, Antônio, posto na sela de seu cavalo baio, alvíssimo e manco, subia a serra té atingir sua planície – a chã da serra onde o vento se equilibra como uma festa.

De sua casa, encravada em grotões pesados e difíceis, ele sentia a vida como lhe chegava: suada, pegajosa e tonitruante. Era preciso respirar mais em cima. Respirar como os bois faziam – aproveitando os descampados e a perspectiva de lonjura, sorvendo o tempo pelas narinas, o vento que lá em cima se fazia mais do que uma festa: uma carícia.

Antônio de Águas Belas visitava a pequena plantação de abacaxis, tirava um ângulo novo com o olhar percuciente da paisagem em volta; e mordia no canto da boca o cigarro de palha, cheirando a um convite. Discutia a melhor maneira de proteger os abacaxis incipientes contra o verão próximo e, no fim da discussão com os empregados, era novamente um ser livre, em doce disponibilidade.

Daí, Antônio dispunha-se a fazer o que mais lhe convinha e apetecia a vontade de dono de herdade obscura: colocava o alçapão no último galho de uma oiticica para ver se pegava um sabiá branco. Sabiás escuros, ele os apreendera às centenas – em cima da serra, com jeito, era possível conseguir-se o apanhamento de passarinhos, belos concrizes, vira-casacas virtuosas, bem-te-vis donos do milagre do canto, galos-de-campina que enchiam a vista, pintassilgos vivíssimos.

Mas toda sua vida, desde criança, ele sentia que seu destino era ser dono de um sabiá branco. Pois só esse tem o canto de que lhe falaram, na infância, os avós: um canto triste e alegre, ao mesmo tempo, de dar sorte, rival da patativa dourada naquelas regiões de Mata-Pasto-de-Dentro.

E o sabiá branco não aparecia. O compadre Lucas, colega de infância, ouvira falar que perto dali morava um passarinheiro, por necessidade e convicção, que conseguira pegar um sabiá branco, vendendo-o logo depois a um mascate. Antônio de Águas Belas procurou o fio da meada da história toda e constatou que tudo fora invenção. O passarinheiro morrera há muitos anos e apenas a viúva dele confirmara que o marido foi, vida inteira, um caçador infatigável de um sabiá branco – e nunca o encontrara.

Assim sendo, Antônio gostava de ir a cavalo até a ponta da serra – exatamente o lugar onde havia o abismo misturado de beleza irrefreável e uma paisagem primitiva – para ver, eu meditar a seu modo, na hora do poente. E ali ficava, boca da noite quase, no frio suave das alturas, a esperar que as luzes da cidade, lá longe, nas serras de Araruna, se acendessem. E, acesas, tremessem na distância, aflitas pela escuridão. Pois naquelas luzes, ele via constantemente a imagem do sabiá branco de que nunca pudera ser dono. Nem amigo.

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Carlos Pena Filho

A solidão e sua porta

Quando mais nada resistir que valha
a pena de viver e a dor de amar
e quando nada mais interessar
(nem o torpor do sono que se espalha),

quando, pelo desuso da navalha
a barba livremente caminhar
e até Deus em silêncio se afastar
deixando-te sozinho na batalha

a arquitetar na sombra a despedida
do mundo que te foi contraditório
lembra-te que afinal te resta a vida

com tudo o que insolvente e provisório
e de que ainda tens uma saída:
entrar no acaso e amar o transitório.

Clarissa Corrêa

"Quem é feliz não conta, não espalha, não grita aos quatro cantos. Quem é feliz, satisfaze-se por ser. E sabe que felicidade anda coladinha na inveja. Quem é feliz não precisa provar nada, simplesmente é. As pessoas felizes demais nunca me passaram confiança. Essa coisa de que a vida é uma festa e não existe nada errado, não me brilha aos olhos. Feliz é quem conhece o lado ruim e o respeita. Feliz é quem já foi infeliz. Somente quem já foi infeliz pode entender que a tristeza traz um punhado muito bom de aprendizados. Felicidade não é sobre quem grita mais alto; é sobre quem sorri mais fundo."

Clarissa Corrêa