segunda-feira, 31 de março de 2014

Mário Quintana

A Rua dos Cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.
Hoje, dos meu cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de Vela amarelada,
Como único bem que me ficou.
Vinde! Corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!
Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!

terça-feira, 25 de março de 2014

Fernando Pessoa

Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram!

«Ah, não há saudades mais dolorosas do que as das coisas que nunca foram! O que eu sinto quando penso no passado que tive no tempo real, quando choro sobre o cadáver da vida da minha infância ida,... isso mesmo não atinge o fervor doloroso e trémulo com que choro sobre não serem reais as figuras humildes dos meus sonhos, as próprias figuras secundárias que me recordo de ter visto uma só vez, por acaso, na minha a pseudovida, ao virar uma esquina da minha visionação, ao passar por um portão numa rua que subi e percorri por esse sonho fora.»

in Livro do Desassossego (fragmento 92)

quarta-feira, 5 de março de 2014

O ÚLTIMO BRINDE

(Tradução do russo de Lauro Machado Coelho)

Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado
e à ti também eu bebo –
            aos lábios que me mentiram,
            ao frio mortal nos olhos,
             ao mundo rude e brutal
             e a Deus que não nos salvou.
                                                                                         Anna Akhmátova – 27/3/1934