quarta-feira, 9 de novembro de 2016

DAS DUAS UMA

DAS DUAS UMA

Para Ana C.

Uma das suas.
Suave lembrança ensina. Não vou morrer até o fim.
Der e vier de garras afiadas, dentes na mão.
Seu livro solta folhas enquanto leio um poema chupado -
você disse isso.
Mais doce na manga o coração: duas antigas.
Antigamente, eu me sentia mais nova do que sou.
Isto me faz lembrar outra frase à porta da igreja.
Esta casa qualquer coisa assim .
aqui está para todos os homens.
To see, to rest, to pray.
E eu também nem nada.
Morri sem saber quem são os 3.
Mas os outros grandes... descobri! São reticentes.
É você
que está ali de roupa clara sorrindo ou fingindo ouvir?
Alguns estão dormindo de tarde.
Coisa ínfima,
quero ficar perto 

Angela Melim

Asas

ASAS

O que este punhal tem de ave
são asas da imaginação
a dor voa mas volta sempre
e pousa em meu coração.

Voa gaivota breve, voa leve
que o mar tem alma secreta
e guarda a carne dos peixes
a solidão do poeta.

(Musicado por Fagner)

Abel Silva

Local

LOCAL

De onde me viria
esta história de o amor
ser de partida?

E esta agonia,
o inquirir de cada olhar
o revés
do esquecimento?

Minha praia é esta
meu convés o litoral
eu sou a minha nau
e o meu descobrimento.

Eu não conheço a dor dos navegantes
nem as areias escaldantes
dos salvados do mar...

Se sou assim desde o primeiro dia
por que fugir de mim
em travessia?

Abel Silva

31 DE DEZEMBRO DE 2005

31 DE DEZEMBRO DE 2005

O último dia do ano deveria ser um dia como outro qualquer.
Sem temores, sem sobressaltos.
Mas entristeci de pensar.
A canallha assovia, a sirene passa
e eu me deito sobre os meus 48 anos.
Da varanda vejo o Tejo.
A noite abriu-se como por encanto.
Há bulício nas casas e nas ruas.
Holofotes e estrelas anunciam
e eu desentristeço de expectativa.
Os barcos são candeias na fragrância das águas.
A meia noite acende os formidáveis fogos.
As auras fosfóreas produzem súbita aurora.
É já manhã na face lisa do Tejo.

Marcio Catunda

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Raymond Carver

  1. O POEMA QUE NÃO ESCREVI - Raymond Carver
  2. Eis o poema que eu iria escrever mais
    cedo, mas não escrevi
    porque ouvi você se mexendo....
    Eu estava pensando de novo
    naquela primeira manhã em Zurique.
    Como acordamos antes do sol nascer.
    Desorientados por um minuto. Mas fomos para
    a varanda que tinha vista para
    o rio e a parte antiga da cidade.
    E simplesmente ficamos ali, calados.
    Nus. Assistindo o céu clarear.
    Tão emocionados e felizes. Como se
    tivéssemos sido colocados ali
    naquele instante.
    ***
    THE POEM I DIDN’T WRITE
    Here is the poem I was going to write
    earlier, but didn’t
    because I heard you stirring.
    I was thinking again
    about that first morning in Zurich.
    How we woke up before sunrise.
    Disoriented for a minute. But going
    out onto the balcony that looked down
    over the river, and the old of this city.
    And simply standing there, speechless.
    Nude. Watching the sky lighten.
    So thrilled and happy. As if
    we’d been put there
    just at that moment.
  3. (Raymond Carver, trad.:Edivaldo Ferreira)

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Sophia de Mello Breyner Andresen

DATA

Tempo de solidão e de incerteza
Tempo de medo e tempo de traição
Tempo de injustiça e de vileza
Tempo de negação

Tempo de covardia e tempo de ira
Tempo de mascarada e de mentira
Tempo de escravidão

Tempo dos coniventes sem cadastro
Tempo de silêncio e de mordaça
Tempo onde o sangue não tem rasto
Tempo da ameaça

domingo, 7 de agosto de 2016

Angélica Freitas em homenagem a Ana Cristina Cesar

ANA C.
ana c. me salvou de ser técnica em eletrônica
aos dezesseis
quando entrou de vermelho
em minha vida
e me deixou
aos seus pés
eu não tive escolha
foi um baita clarão
soco na goela seguido
de cisco no olho
quem é ela
o que é isto
quem sou eu
em 1989 a gente não tinha google
as bibliotecas eram enxames
pré-vestibulares
saber de ana c. e em seguida
de seu suicídio
fez de mim uma das mais jovens
viúvas de ana c.
eu me perguntava
mas por quê por quê por quê
você foi se matar
como se uma guria toda errada
míope descabelada
no fim do fundo do país
fosse fazer qualquer diferença
em sua vida ou anseio de continuidade
mas foi assim que aconteceu em 89
e eu larguei os estudos de eletrônica
porque até ana c. eu não sabia que se podia
escrever assim e eu queria escrever
também larguei por outros motivos
que não vêm ao caso aqui
e o que preciso dizer é
até hoje nós viúvas jovens e nem tanto de ana c.
sóbrias ou já meio loucas estamos procurando
uma noite de amor nas linhas de seus poemas
rezando para que saia enfim a tal biografia
que nos conte o que mais houve
para darmos visões novas ao nosso amor
e novos cenários para o nosso tesão
torcendo para saber que outras bocas ela beijava
porque afinal são sempre as nossas
e afinal são as nossas mãos que ela pega
até hoje quando escrevemos um verso, pelo amor -
Angélica Freitas é poeta. Seu livro "Rilke Shake" ganhou o prêmio Best Translated Book Award, da Universidade de Rochester, nos EUA. 

terça-feira, 22 de março de 2016

Ana de Santana

ATLAS ANTIGO

Aquela cidade não há mais
A não ser nos mapas 
E nos meus desenhos escolares
Madrugadinha Luzes todas apagadas
Esquecimento e fim
A herança do ermo Inclui fantasmas e folguedos
Aquela cidade me cartografa
Brinco nela quando me dá infância
Sou cabra-cega procurando a mim

Ana de Santana

Nonato Gurgel

OUT(R)ONO
... convoca aos afetos, 
devolve turista e ainda chega com uma lua drummondiana,
 deixando a gente comovido pra caralho...
Nada de tesão do talvez:
 vamos tomar mate às 5, no Largo, e eu te conto...

Nonato Gurgel

segunda-feira, 7 de março de 2016

(Mário Bortolotto)

Porque eu devia pegar leve. Não tenho mais idade pra fazer diferente. É só um jeito de olhar com ternura pela janela quando a tempestade se anuncia. Mas quem disse que eu sou capaz de ficar na minha quando a temperatura sobe? Eu sempre aposto comigo e perco. Tem certas pessoas no mundo que não nasceram pra ficar mocozadas. Mas mesmo assim eu quero acreditar. E então insisto e ultrapasso a linha. Já não tenho pra onde voltar. Tem gente que tem um jardim. Ou um papagaio. Ou uma tartaruga. Eu só tenho o hálito frio de um fantasma que diz que não há com o que se preocupar. Então eu não espero que me convidem. Eu furo o bloqueio. Eu não tenho esqueletos no armário. Nem um jardim esperando por mim. Ou um papagaio. Ou uma tartaruga. Eu só tenho uma ansiedade filha da puta que faz com que a minha temperatura suba. E acreditem: nesse momento não levo nenhuma vantagem. I have to dream alone.

(Mário Bortolotto)