quinta-feira, 28 de agosto de 2014

PAULO HENRIQUES BRITTO

III
O hábito de estar aqui agora
aos poucos substitui a compulsão
de ser o tempo todo alguém ou algo.
Um belo dia – por algum motivo
é sempre dia claro nesses casos –
você abre a janela, ou abre um pote
de pêssegos em calda, ou mesmo um livro
que nunca há de ser lido até o fim
e então a ideia irrompe, clara e nítida:
É necessário? Não. Será possível?
De modo algum. Ao menos dá prazer?
Será prazer essa exigência cega
a latejar na mente o tempo todo?
Então por que?
E neste exato instante
você por fim entende, e refestela-se
a valer nessa poltrona, a mais confortável
da casa, e pensa sem rancor:
Perdi o dia, mas ganhei o mundo.
(Mesmo que seja por trinta segundos.)
PAULO HENRIQUES BRITTO
[de "Três epifanias triviais", in "MACAU"]

terça-feira, 19 de agosto de 2014

ESPANTALHO DESCARADO

ESPANTALHO DESCARADO
– para Fabio Henriques


ando assim
tipo um erro flácido ambulante
sem êxito, hesitante
disco riscado
fora de catálogo
no pó do instante
ando assim oco, uma crosta
vodu cansado que com a sorte
nem mais dialoga – diamante
ando assim sem linguagem
sem faro, espantalho fora de foco
ando assim
mais opaco que olímpico
esquivo, íntimo, insípido
um mastodonte pensando
desamparado
aspirando a paralelepípedo
ando assim meio buster keaton
um tanto de lágrima hasteando o riso
ando assim raso
indiferente
me divertindo um bocado
eu ando mijando no poste
porque o banheiro
está sempre lotado

Marcelo Montenegro
[in "Orfanato Portátil", AtritoArt, PR, 2003 - Annablume, SP, 2012]

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

RESTOS DE ESTÚDIO

RESTOS DE ESTÚDIO

Cada cigarro fumado na madrugada fria do posto
de uma cidadezinha absurda qualquer
durante a parada do ônibus.
Quantas imagens apodrecidas
na garganta seca das descrições,
canções que não chegaram a tempo.

Quantos dentes pintados de preto
nos retratos sérios dos livros de História,
tanto amor que virou desespero.
Cada silêncio perdido no grito,
tantos cacos de vidro em cima dos muros,
como se eu mesmo os tivesse escrito.

Quantos versos criados a bordo e não anotados,
tanto rancor latejando
na mudez de socos não redigidos,
tanta fita cassete e as gargalhadas
de todos os loucos
espanando o sublime do mundo.
Quantas giletes cuspidas de um pulso,

tanto caderno novo começado,
quantas falas roubadas de amigos,
tantos pântanos não soletrados.
Quanta inocência colhida em varandas de abismos
que eu carrego comigo
como um tesouro afundado.

Marcelo Montenegro
[in "Garagem Lírica", Annablume, SP, 2012]