segunda-feira, 29 de junho de 2009

Caio Fernando Abreu


"Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível". Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome."
Dois ou três almoços, uns silêncios.Fragmentos disso que chamamos de "minha vida"Caio Fernando Abreu, em 1986.

domingo, 28 de junho de 2009

Que seja doce, repito duas vezes antes de mergulhar novamente nas cobertas com a certeza do sonho. Pequenas epifanias, copos de guaraná e filmes em preto e branco, nada me afasta do que foi. Ao menos descobri como separar a dor do resto todo, resto este que inclui aquele amor que não sai com água, chuva, beijo, esponja, ódio, tatuagem, certeza. E, por saber que não sai, não morre, não diminui, aceito, silenciosa. A resignação não me parece mais tão vergonhosa, as vezes as coisas são e isto. Mas minhas espada está na cintura, só por garantia. (Cristiane Lisboa)

sábado, 27 de junho de 2009

O ciúme (Guilherme de Almeida)


Minha melhor lembrança é esse instante no qual

Pela primeira vez me entrou pela retina

Tua silhueta provocante e fina

Como um punhal.

Depois, passaste a ser unicamente aquela

Que a gente se habitua a achar apenas bela

E que é quase banal.

E agora que te tenho em minhas mãos e sei

Que os teus nervos se enfeixam todos em meus dedos

Que os teus sentidos são cinco brinquedos

Com que brinquei;

Agora que não mais me és inédita, agora

Que compreendo que tal como te vira outrora

Nunca mais te verei;

Agora que de ti, por muito que me dês,

Já não podes dar a impressão que me deste,

A primeira impressão que me fizeste,

Louco, talvez,

Tenho ciúme de quem não te conhece ainda

E, cedo ou tarde, te verá, pálida e linda pela

Primeira vez.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Espere,Baby


Espere, Baby
(Chacal)

espere baby não desespere
não me venha com propostas tão fora de propósito
não acene com planos mirabolantes mas tão distantes

espere baby não desespere
vamos tomar mais um e falar sobre o mistério da lua vaga
dylan na vitrola dedo nas teclas
canto invento enquanto o vento marasma

espere baby não desespere
temos um quarto uma eletrola uma cartola
vamos puxar um coelho um baralho e um castelo de cartas
vamos viver o tempo esquecido do mago merlin
vamos montar o espelho partido da vida como ela é

espere baby não desespere
a lagoa há de secar
e nós não ficaremos mais a ver navios
e nós não ficaremos mais a roer o fio da vida
e nós não ficaremos mais a temer a asa negra do fim

espere baby não desespere
porque nesse dia soprará o vento da ventura
porque nesse dia chegará a roda da fortuna
porque nesse dia se ouvirá o canto do amor
e meu dedo não mais ferirá o silêncio da noite
com estampidos perdidos.

Paulo Henriques Brito


FISIOLOGIA DA COMPOSIÇÃO

I.

A opacidade das coisas
e os olhos serem só dois

A compulsão sem culpa
de dar sentido a tudo

O incômodo pejo
de ser só desejo

Por fim, o acaso
Sem o qual, nada.


[In Macau, Companhia das Letras, 2003]

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Ana C.


“Tenho arrumado os livros.
Tiro de uma prateleira sem ordem e coloco em outra
com ordem. Ficam espaços vazios.
Hora em hora.
Não tenho te dito nada.”
(Ana Cristina César)

terça-feira, 23 de junho de 2009

Homenagem a Chico que dia 19 deste aniversariou


Trocando em Miúdos

Eu vou lhe deixar a medida do Bonfim
Não me valeu
Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim?
O resto é seu
Trocando em miúdos, pode guardar
As sobras de tudo que chamam lar
As sombras de tudo que fomos nós
As marcas de amor nos nossos lençóis
As nossas melhores lembranças

Aquela esperança de tudo se ajeitar
Pode esquecer
Aquela aliança, você pode empenhar
Ou derreter
Mas devo dizer que não vou lhe dar
O enorme prazer de me ver chorar
Nem vou lhe cobrar pelo seu estrago
Meu peito tão dilacerado

Aliás
Aceite uma ajuda do seu futuro amor
Pro aluguel
Devolva o Neruda que você me tomou
E nunca leu
Eu bato o portão sem fazer alarde
Eu levo a carteira de identidade
Uma saideira, muita saudade
E a leve impressão de que já vou tarde

(Chico Buarque)

sábado, 20 de junho de 2009

Quem não ouviu com Betania?


"Mora comigo na minha casa um rapaz que eu amo. Aquilo que ele não me diz porque não sabe, vai me dizendo no seu corpo que dança para mim. Ele me adora e eu vejo através dos seus olhos um menino que aperta o gatilho do coração sem saber o nome do que pratica. Ele me adora e eu o gratifico só com os olhos que o vejo. Corto todas as cebolas da casa, arrasto os móveis, incenso. Ele tem medo de dizer que me ama. E me aperta e mão, e me chama de amiga"


Luis Carlos Lacerda

quinta-feira, 18 de junho de 2009

De cara lavada


hoje me desfiz dos meus bens
vendi o sofá cujo tecido desenhei
e a mesa de jantar onde fizemos planos

o quadro que fica atrás do bar
rifei junto com algumas quinquilharias
da época em que nos juntamos

a tevê e o aparelho de som
foram adquiridos pela vizinha
testemunha do quanto erramos

a cama doei para um asilo
sem olhar pra trás e lembrar
do que ali inventamos

aquele cinzeiro de cobre
foi de brinde com os cristais
e as plantas que não regamos

coube tudo num caminhão de mudança
até a dor que não soubemos curar
mas que um dia vamos (Martha Medeiros)

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Ana C., sempre


"Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda." (Ana cristina cesar)

Henri Cartier-Bresson


Henri Cartier-Bresson talvez tenha sido o maior nome que a fotografia mundial já produziu. Principalmente se pensarmos em fotojornalismo. ...

segunda-feira, 15 de junho de 2009

A Cidade


"Podem publicar estatísticas e contar as populações às centenas de milhares, mas, para cada homem, uma cidade consiste em apenas algumas ruas, algumas casas, algumas pessoas. Removidas essas poucas coisas, essa cidade já não existe, exceto como uma saudade dolorosa, como a dor de uma perna amputada que já se foi."

Graham Greene, Nosso homem em Havana

Escova de dentes


Conheci uma jovem médica no feriado de Corpus Christi. Loira, bonita, sorriso fácil e dona de um humor difícil de ser decifrado à primeira vista, ela me foi apresentada por um amigo, também médico, na comemoração do seu aniversário em um bar da Vila Madalena. Ao ser informado de que ela fazia residência médica, automaticamente perguntei em qual especialidade. “Anatomia patológica”, ela me respondeu. “Lâminas, eu só quero lâminas na minha frente”, completou antes de dar mais um gole em seu copo de cerveja. Soube que medicina foi a terceira carreira universitária a que ela deu início – e a única que concluiu. Antes, havia estudado línguas e cinema.

Não conversei tanto assim com ela, até porque fiquei pouco no aniversário. Mas tive a chance de ouvir uma frase, uma frase longa, que agora está martelando na minha cabeça. Sem nenhum resquício de mágoa ou morbidez, ela me disse o seguinte: “Se soubéssemos como algumas coisas iriam terminar, nós não as teríamos começado”, disse antes de soltar um longo sorriso. “Se soubéssemos como algumas coisas iriam terminar, talvez não fizéssemos nada. Nem da higiene pessoal eu cuidaria, nem os dentes escovaria. Apenas ficaria quieta”.


Não é algo que se diz impunemente, pensei. E nem a qualquer um. Ela não se dirigia especificamente a mim. Jogou esta frase na mesa, em um momento oportuno, admito, mas não sei se alguém carregou a frase para casa como eu fiz. E agora não paro de pensar quais coisas eu não teria começado se eu soubesse, de antemão, como elas terminariam. Claro que neste pensamento cabem respostas radicais: a gente poderia se matar ainda no berçário alegando já saber que nosso fim é o túmulo. Mas eu prefiro uma interpretação mais sutil e mais carregada de possibilidades. Talvez o importante não seja saber como as coisas vão terminar, mas o que faremos com elas, ou o que elas farão com a gente, neste longo intervalo entre o início e o fim. Algo me diz que não são as extremidades que importam tanto neste caso, e sim o recheio. Como eu pretendo continuar escovando meus dentes, talvez seja melhor não saber como será o fim de algumas coisas nas quais me apego – ou não.


A frase me atormentou porque, de certo modo, me obrigou a uma revisão inesperada da minha vida. Algumas coisas muito boas que eu tive terminaram em dor: a dor da perda, da separação, da ausência, da incompatibilidade, do abandono, da saudade. A dor da solidão. A dor que é inerente às coisas que terminam e que foram um dia boas. E terminam porque tudo nesta vida tem de terminar – tenhamos ou não culpa ou responsabilidade pelo desfecho. Então eu me pergunto, caso fosse me dada a chance, se eu deixaria de ter vivido o que vivi em determinado momento para me safar de uma dor futura? Penso que a resposta é não. Eu não teria aberto mão dos momentos felizes que mais tarde, por um desvio qualquer que minha vida tomou, me deixaram com os olhos sem brilho. Me lembrei de um amigo que costumava dizer que não acreditava nos momentos felizes prometidos pelas drogas. “A gente tem de fazer por merecer a felicidade”, ele me dizia. “A felicidade, além de não nos chegar sem luta, custa muito mais caro do que um papelote de cocaína”, ele me ensinou.

Penso que as coisas boas são boas em sua essência, e não deixam de ser boas porque em algum momento não podemos mais contar com elas. Quem sabe este seja o princípio da saudade, não sei. Prefiro seguir sem saber o que me aguarda e mesmo hoje, especificamente hoje, quando estou sendo mais movido pela saudade que pelo prazer, quero continuar escovando meus dentes direitinho. Uma hora dessas, mais cedo do que a gente imagina, a gente volta a sorrir. A sorrir do inesperado, do imprevisto e do acaso. A sorrir justamente porque a gente não sabe como as coisas vão terminar. (http://roveriblog.blogspot.com/)

sábado, 13 de junho de 2009

Rabo de galo (Angela Melim)


Medo com amor.
Um drinque.
Rabo de galo.
Ana, lembrei de você, do seu jeito.
Cada um é um.
Só si.
Associações, coincidências, perpasses...
estou procurando a palavra certa
para partes superpostas de duas esferas.
Interseção?
E solidão.
Ninguém.
Vai cobrir esse buraco, com flores do bem, com letras.
Taça, daí de beber.
O fraco é fundo acabou-se o mundo.
Morreu Diadorim.
Açoite, ricocheteia - estão erradas, não cabem aqui.
Em mim a paz passa depressa, assobia.
Eu peço que fique, imploro,
mas é assim, eu sei, amor e medo.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Rafael Gil Beckel


"O amor que acredito:
Não prende,
não pede em troca,
não impõe condições,
não segue regras,
não tem nome.

O amor que acredito:
Liberta,
é gratuito,
é incondicional,
é espontâneo,
é apenas o que é.

Se o amor não for assim, será um mero remédio para a sua carência, um alimento para o seu ego, um apoio para a sua insegurança, mas jamais será amor." -Esta dificil achar alguém pronto para um amor assim!

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Marcelo Montenegro


buquê de presságios
De tudo, talvez, permaneça
o que significa. O que
não interessa. De tudo,
quem sabe, fique aquilo
que passa. Um gerânio
de aflição. Um gosto
de obturação na boca.
Você de cabelo molhado
saindo do banho.
Uma piada. Um provérbio.
Um buquê de presságios.
Sons de gotas na torneira da pia.
Tranqueiras líricas
na velha caixa de sapatos.
De tudo, talvez, restem
bêbadas anotações
no guardanapo.
E aquela música linda
que nunca toca no rádio.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Amanhecer em Copacabana


Amanhece, em Copacabana, e estamos todos cansados. Todos, no mesmo banco de praia. Todos , que somos eu, meus olhos, meus braços e minhas pernas, meu pensamento e minha vontade. O coração, se não está vazio, sobra lugar que não acaba mais. Ah, que coisa insuportável, a lucidez das pessoas fatigadas! Mil vezes a obscuridade dos que amam, dos que cegam de ciúmes, dos que sentem falta e saudade. Nós somos um imenso vácuo, que o pensamento ocupa friamente. E, isso, no amanhecer de Copacabana.
As pessoas e as coisas começaram a movimentar-se. A moça feia, com o seu caniche de olhos ternos. O homem de roupão, que desce à praia e faz ginástica sueca. O bêbado, que vem caminhando com um esparadrapo na boca e a lapela suja de sangue. Automóveis, com oficiais do Exército Nacional, a caminho da batalha. Ônibus colegiais e, lá dentro, os nossos filhos, com cara de sono. O banhista gordo, de pernas brancas, vai ao mar cedinho, porque as pessoas da manhã são poucas e enfrentam, sem receios, o seu aspecto. Um automóvel deixou uma mulher à porta do prédio de apartamentos — pelo estado em que se encontra a maquillage, andou fazendo o que não devia. Os ruídos crescem e se misturam. Bondes, lotações, lambretas e, do mar, que se vinha escutando algum rumor, não se tem o que ouvir.
Enerva-me o tom de ironia que não consigo evitar nestas anotações. Em vezes outras, quando aqui estive, no lugar destas censuras, achei sempre que tudo estava lindo e não descobri os receios do homem gordo, que vem à praia de manhã cedinho. E Copacabana é a mesma. Nós é que estamos burríssimos aqui, neste banco de praia. Nós é que estamos velhíssimos, à beira-mar. Nós é que estamos sem ressonância para a beleza e perdemos o poder de descobrir o lado interessante de cada banalidade. Um homem assim não tem direito ao amanhecer de sua cidade. Deve levantar-se do banco de praia e ir-se embora, para não entediar os outros, com a descabida má-vontade dos seus ares.
Rio, 12/09/59
- Antônio Maria

segunda-feira, 8 de junho de 2009



Essa foto foi eu mesma que bati.Estive no show comemorativo aos 50 anos de carreira do rei aqui em Natal dia 4 de junho.Tenho uma relação de amor com o rei desde que me entendo de gente.Conheço de cor todas as suas canções.Posso dizer que minha vida é pontuada por suas músicas.De Nova Palmeira a Natal,onde quer que eu vá!

domingo, 7 de junho de 2009

Ana Cristina Cesar


"trilha sonora ao fundo: piano no bordel, vozes barganhando
uma informação difícil. agora silêncio; silêncio eletrônico,
produzido no sintetizador que antes construiu a ameaça das
asas batendo freneticamente.
Apuro técnico.
Os canais que só existem no mapa.
O aspecto moral da experiência.
Primeiro ato da imaginação.
Suborno no bordel.
Eu tenho uma idéia.
Uma frase em cada linha. Um golpe de exercício.
Memórias de copacabana. Santa Clara às 3 da tarde.
Autobiografia. Não, biografia.
Mulher.
Papai Noel e os marcianos.
Billy the Kid versus Drácula.
Drácula versus Billy the Kid.
Muito sentimental.
Agora pouco sentimental.
Pensa no seu amor de hoje que sempre dura menos que o seu
amor de ontem.
Gertrude: estas são idéias bem comuns.
Apresenta a jazz-band.
Não, toca blues com ela.
Esta é a minha vida.
Atravessa a ponte.
É sempre um pouco tarde.
Não presta atenção em mim.
Olha aqueles três barcos colados imóveis no meio do grande rio.
Estamos em cima da hora.
Daydream.
Quem caça mais o olho um do outro?
Sou eu que admito vitória.
Ela que mora conosco então nem se fala.
Caça, caça.
E faz passos pesados subindo a escada correndo.
Outra cena da minha vida.
Um amigo velho vive em táxis.
Dentro de um táxi é que ele me diz que quer chorar mas não chora.
Não esqueço mais.
E a última, eu já te contei?
É assim.
Estamos parados.
Você lê sem parar, eu ouço uma canção.
Agora estamos em movimento.
Atravessando a grande ponte olhando o grande rio e os três
barcos colados imóveis no meio.
Você anda um pouco na frente.
Penso que sou mais nova do que sou.
Bem nova.
Estamos deitados.
Você acorda correndo.
Sonhei outra vez com a mesma coisa.
Estamos pensando.
Na mesma ordem de coisas.
Não, não na mesma ordem de coisas.
É domingo de manhã (não é dia útil às três da tarde).
Quando a memória está útil.
Usa.
Agora é a sua vez.
Do you believe in love...?
Então está.
Não insisto mais."

sábado, 6 de junho de 2009

Quando você não está


Na sua ausência, me perco na liberdade que só a solidão pode oferecer. Dona de meus próprios domínios, sem você, deixo nascer a tirana que habita em mim

Você acaba de me dar um beijo e sair.É domingo e faz frio lá fora. Dia ideal para ser perdido entre chamegos, afagos, mimos, xícaras de café e, maistarde, taças de vinho. Mas não esse. Você precisa sair e vai demorar para voltar. E tá tudo bem porque, com você longe de mim,posso me entregar à leitura do jornal sem ser interrompida para responder se lembrei de pagar a conta de luz na sexta ou se pretendo ir à Cobasi comprar a ração dos cachorros – essa, mais uma imposição do que uma pergunta. Embora não pretenda ir, digo que vou para poder voltar ao jornalmais rapidamente. Tá tudo bem, porque é com você longe de mim que posso fazer um pouco mais de café sem ter que obedecer ao comando de desviar para ir apagar a luz do quarto que, tenho certeza, quem acendeu foi você e não eu. E posso, quando bem entender, ligar a TV e deixaro volume alto, mesmo que eu decida continuar na sala lendo o jornal: você não está por perto para fazer bico, para pedir que eu levante e abaixe o som ou, em casos extremos, para que eu simplesmente desligue o aparelho. Posso inclusive escolher deixar a TV desligada, por minha própria vontade, mas ligar o rádio para saber mais a respeito dos jogos da tarde; sem você por perto, não tem ninguém para reclamar de minhas manias.

Ditadura
Aliás, com você longe de mim, posso gritar para que as cachorras, esses dois quadrúpedes hiperativos que moram aqui, nem pensem em se aproximar do meu café ou do meu jornal porque agora sou eu quem controla essa área, sou dona exclusiva de meus domínios. Com você longe de mim, nasce a ditadura, morre a democracia e revela-se a tirana que habita em mim. Pelo menos sob o ponto de vista canino; ao meu comando autoritário, as duas cadelas imediatamente emitem um som de súplica e saem à sua procura, em busca de proteção; elas sabem que o papel do “policial ruim” é meu. Mas, naturalmente, voltam com o rabo entre as pernas porque, finalmente, perceberam o que eu já sei há quase uma hora: que você não está. Então, derrotadas, simplesmente deitam à espera do seu retorno. E nem dão bola para meu estado de espírito. Porque é quando você não está que posso deixar o cabelo preso como bem entender: você gosta dele solto, para poder mexer, bagunçar, despentear. Você tem essa mania de ficar com a mão no meu cabelo. Então, a primeira coisa que faço quando o portão da garagem se fecha é pegar o elástico e prender bem forte, quase uma provocação. Mas aí lembro que é uma provocação vã, porque você não está. Só que também lembro que, com você longe de mim, posso colocar aquela playlist que já tá gasta e que você não agüenta mais. E posso ficar deitada, olhando o teto e pensando na vida, sem ter que ir ver se a água quente já voltou. Com você longe de mim posso navegar pela internet à vontade, sem ter que, bem na hora que finalmente encontro a informação que procurava, contar como foi a visita que fiz à minha irmã, como estavam as crianças, como foi a festa ontem.

Cachorros no sofá
Com você longe de mim me perco nessa liberdade que só a solidão é capaz de oferecer. E então aumento o som, pego um livro e, sem que você veja, autorizo as cachorras a subirem no sofá, atitude que deixaria você muito feliz, porque você ama ter as duas por perto, ama ver o sofá cheio de pêlos, ama me ouvir mandar elas descerem. Mas você não está e eu, quando você não está, deixo as duas subirem. É uma provocação, mais uma. Porque quando você não está não existe o risco de ser parada no meio da sala, enquanto estou indo colocar mais café na xícara, com aquele abraço apertado e demorado, sempre cheio de más intenções. Quando você não está, não existe a possibilidade de ser tirada de meu cochilo com um beijo molhado na boca. Também não tem quem, sem aviso prévio, pegue meu pé para fazer massagem, ou quem me ofereça torrada com queijo e geléia no meio da manhã, me pergunte sobre o que estou lendo e queira ouvir a explicação, mesmo que seja sobre o assunto mais chato do mundo. Sem você por perto, não tem quem se interesse por minhas histórias cotidianas, quem ria de minhas piadas tolas, quem converse com as cachorras como se elas fossem crianças de 5 anos só para meu entretenimento. Quando você não está não tenho com quem comentar um trecho do livro a respeito do Almodóvar que li ontem, não tenho por que fazer um pouco mais de café ou para quem ir buscar um Yakult na geladeira. Quando você não está, falta um pouco de mim, falta toda a graça, falta metade da vida: quando você não está, parte de mim também vai embora. Então, quando ouço o portão da garagem abrir e vejo as cachorras correrem em euforia para recebê-la, sei que tudo está prestes a mudar. É quando você volta que sou mais feliz e posso, finalmente, soltar o cabelo. Milly Lacombe

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Paulo Henriques Britto


Súbito? Não. A coisa morre à míngua,
um risco vira traço e o traço, ponto.
Por exemplo: uma manhã de domingo, a
mesa posta pro café, tudo pronto
pra não se fazer nada — ou então
a noite de uma terça-feira inane,
sob o quebranto da televisão —
mas isso não importa; que se dane
o tempo, e o lugar também (um boteco?
o elevador?) — chegou ao final
um processo previsível, perverso,
trivial, que reduziu o universo
a uma bolinha de papel, da qual
você se livra com um peteleco.

Aplausos para Tácito


Vou estar presente neste coquetel como também no debate na livraria.Tácito merece aplausos,com seu blog dá vida cultural a cidade,com seu estilo refinado e bom gosto nos proporciona o que de melhor se tem no campo da cultura.

Novo SPlural estréia dia 10


Caros amigos,

Na próxima quarta-feira, dia 10, realizaremos um coquetel às 19 horas, no Restaurante Calígula (Rua Chile – Ribeira), para apresentação e lançamento do novo Substantivo Plural. Será algo simples, despido de qualquer solenidade ou formalidade. Muito mais uma oportunidade pra gente se confraternizar.

Na sexta-feira, dia 12, também às 19 horas, realizaremos no auditório da Livraria Siciliano do Midway, uma mesa redonda para conversar sobre blogs, jornalismo e cultura. Participarão desse bate-papo, mediado por mim, o escritor Nelson Patriota, o professor Daniel Dantas, o jornalista Alex de Souza e a web design Kênia Castro.

Esses eventos marcam os dois anos de funcionamento do SPlural e eu ficaria muito feliz se pudesse contar com a presença de todos vocês. Os colegas jornalistas e blogueiros que puderem divulgar em suas colunas e blogs contam desde já com o meu agradecimento.

O novo SPlural foi criado pela equipe da Mariz Comunicação Integrada, sob o comando do chefão Marcelo Mariz. Nos próximos dias darei mais detalhes do projeto.

Tácito Costa
Data: 02/06/2009 - Horário: 22h55min

segunda-feira, 1 de junho de 2009

João Guimarães Rosa


“A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isso significa que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ter novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas." João Guimarães Rosa

letra - Ledusha Spinardi


in Fernanda Porto

Eletricidade
música - Fernanda Porto
letra - Ledusha Spinardi


Como numa amorosa cantiga
Hoje, com aquele espanto da primeira dor
Acordei chorando
Rodando o apartamento
Uma entrevista de Godard na mão
Três fantasias na cabeça
O teto tão baixo
Fui até o centro
Lírico Ulisses devorador de milk-shakes

Em passos rápidos dizia pro espelho das vitrines
Alô, Marina Vladi, imitando aquele jeito do cabelo
Alto-falantes das lojas me arrepiam

Por pouco não me sinto enamorada
Aí, soprando um café de máquina
Com a voz do Rei na barriga
Jobim no coração
Espelho caixa de contatos
Assobio no elevador
Uma canção me consola
Enquanto mamãe faz tricô
Penélope distraída
Preciso sair de casa

Se alguém tocar seu corpo como eu, não diga nada