segunda-feira, 15 de junho de 2009

Escova de dentes


Conheci uma jovem médica no feriado de Corpus Christi. Loira, bonita, sorriso fácil e dona de um humor difícil de ser decifrado à primeira vista, ela me foi apresentada por um amigo, também médico, na comemoração do seu aniversário em um bar da Vila Madalena. Ao ser informado de que ela fazia residência médica, automaticamente perguntei em qual especialidade. “Anatomia patológica”, ela me respondeu. “Lâminas, eu só quero lâminas na minha frente”, completou antes de dar mais um gole em seu copo de cerveja. Soube que medicina foi a terceira carreira universitária a que ela deu início – e a única que concluiu. Antes, havia estudado línguas e cinema.

Não conversei tanto assim com ela, até porque fiquei pouco no aniversário. Mas tive a chance de ouvir uma frase, uma frase longa, que agora está martelando na minha cabeça. Sem nenhum resquício de mágoa ou morbidez, ela me disse o seguinte: “Se soubéssemos como algumas coisas iriam terminar, nós não as teríamos começado”, disse antes de soltar um longo sorriso. “Se soubéssemos como algumas coisas iriam terminar, talvez não fizéssemos nada. Nem da higiene pessoal eu cuidaria, nem os dentes escovaria. Apenas ficaria quieta”.


Não é algo que se diz impunemente, pensei. E nem a qualquer um. Ela não se dirigia especificamente a mim. Jogou esta frase na mesa, em um momento oportuno, admito, mas não sei se alguém carregou a frase para casa como eu fiz. E agora não paro de pensar quais coisas eu não teria começado se eu soubesse, de antemão, como elas terminariam. Claro que neste pensamento cabem respostas radicais: a gente poderia se matar ainda no berçário alegando já saber que nosso fim é o túmulo. Mas eu prefiro uma interpretação mais sutil e mais carregada de possibilidades. Talvez o importante não seja saber como as coisas vão terminar, mas o que faremos com elas, ou o que elas farão com a gente, neste longo intervalo entre o início e o fim. Algo me diz que não são as extremidades que importam tanto neste caso, e sim o recheio. Como eu pretendo continuar escovando meus dentes, talvez seja melhor não saber como será o fim de algumas coisas nas quais me apego – ou não.


A frase me atormentou porque, de certo modo, me obrigou a uma revisão inesperada da minha vida. Algumas coisas muito boas que eu tive terminaram em dor: a dor da perda, da separação, da ausência, da incompatibilidade, do abandono, da saudade. A dor da solidão. A dor que é inerente às coisas que terminam e que foram um dia boas. E terminam porque tudo nesta vida tem de terminar – tenhamos ou não culpa ou responsabilidade pelo desfecho. Então eu me pergunto, caso fosse me dada a chance, se eu deixaria de ter vivido o que vivi em determinado momento para me safar de uma dor futura? Penso que a resposta é não. Eu não teria aberto mão dos momentos felizes que mais tarde, por um desvio qualquer que minha vida tomou, me deixaram com os olhos sem brilho. Me lembrei de um amigo que costumava dizer que não acreditava nos momentos felizes prometidos pelas drogas. “A gente tem de fazer por merecer a felicidade”, ele me dizia. “A felicidade, além de não nos chegar sem luta, custa muito mais caro do que um papelote de cocaína”, ele me ensinou.

Penso que as coisas boas são boas em sua essência, e não deixam de ser boas porque em algum momento não podemos mais contar com elas. Quem sabe este seja o princípio da saudade, não sei. Prefiro seguir sem saber o que me aguarda e mesmo hoje, especificamente hoje, quando estou sendo mais movido pela saudade que pelo prazer, quero continuar escovando meus dentes direitinho. Uma hora dessas, mais cedo do que a gente imagina, a gente volta a sorrir. A sorrir do inesperado, do imprevisto e do acaso. A sorrir justamente porque a gente não sabe como as coisas vão terminar. (http://roveriblog.blogspot.com/)

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