sábado, 31 de dezembro de 2011

Cordialidade


Luiza Franco Moreira

Não pense por favor que a casa é sua.
Aqui a mesa posta
-venha sempre-
pode ser até agrado,
nada além.Não se engane.

A toalha de renda é de família
mas só abro os armários por vaidade
Ou vício.Talvez ócio nem sei mais.

Rosas brancas no vaso
para nos enfeitarem
escolhi
as mais escandalosas

Não faça cerimônia,apareça.
Se você exagerar,o azar é seu.

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Marise Castro


numa velha cidade
um coração agonizava

sozinho

uma mobília antiga
o protegia do mundo

ele se cobria
no meio do dia e esperava
as mesmas lembranças
que sempre naquela mesma hora
o silencio e o sol
lhe traziam

há muito tempo ele se foi

saberá que parti com ele?
que jamais o deixei?

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Um slide


Um slide

[Sérgio Alcides, O ar das cidades, São Paulo, Nankin, 2000, págs. 30-31]



Mal consigo ler
a cidade no meio das letras
a gente fora dos outdoors.



Há muitos destroços
de palavras e luzes, rebites e bits
cobrindo o coração.



Suponho que tem um coração (e erro).



Não distingo seu ruído pelas ruas
que clamam Pour Élise.



Ponho este poema – um
slide – deitado na linha do horizonte.



Não desisto de desatar o enleio dos edifícios
na paisagem-pregão.



Se houver um desabamento
o poema ficará no ar
escorado

nos gritos.

Mas os letreiros, não.

domingo, 18 de dezembro de 2011

NÃO É SÓ MAIS UMA NOITE NO INFERNO


NÃO É SÓ MAIS UMA NOITE NO INFERNO

Você prometeu que estaria aqui quando eu voltasse
me esperando com uma garrafa de Jack e sorvete de caramelo
Você estaria ouvindo Headcat e ia ser uma noite longa num motel de beira de estrada
A gente ia rir como nos bons tempos
com minhas piadas sem graça e meu senso de humor sem nenhum senso de oportunidade
e ficar morgando na banheira de hidro ouvindo uma trilha sonora do inferno
Você me prometeu uma vida
sem abutres voando sobre minha cama na beira do abismo
Você prometeu que haveria um Deus que cuidaria de mim
e eu fui estúpido e inocente o suficiente
pra acreditar em você
Agora quando eu olho pra essa parede vazia
apenas com o retrato da Sasha Grey na parede
é que eu entendo que o tempo todo você tava mentindo pra mim
Eu só precisava perder o medo de te perder
pra não ter mais medo de nada

Mário Bortolotto

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O que acontece no meio


No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco, mas a que nos revela a nós mesmos

Vida é o que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o que importa.

No meio, a gente descobre que sexo sem amor também vale a pena, mas é ginástica, não tem transcendência nenhuma. Que tudo o que faz você voltar pra casa de mãos abanando (sem uma emoção, um conhecimento, uma surpresa, uma paz, uma ideia) foi perda de tempo.

Que a primeira metade da vida é muito boa, mas da metade pro fim pode ser ainda melhor, se a gente aprendeu alguma coisa com os tropeços lá do início. Que o pensamento é uma aventura sem igual. Que é preciso abrir a nossa caixa preta de vez em quando, apesar do medo do que vamos encontrar lá dentro. Que maduro é aquele que mata no peito as vertigens e os espantos.

No meio, a gente descobre que sofremos mais com as coisas que imaginamos que estejam acontecendo do que com as que acontecem de fato. Que amar é lapidação, e não destruição. Que certos riscos compensam – o difícil é saber previamente quais. Que subir na vida é algo para se fazer sem pressa.

Que é preciso dar uma colher de chá para o acaso. Que tudo que é muito rápido pode ser bem frustrante. Que Veneza, Mykonos, Bali e Patagônia são lugares excitantes, mas que incrível mesmo é se sentir feliz dentro da própria casa. Que a vontade é quase sempre mais forte que a razão. Quase? Ora, é sempre mais forte.

No meio, a gente descobre que reconhecer um problema é o primeiro passo para resolvê-lo. Que é muito narcisista ficar se consumindo consigo próprio. Que todas as escolhas geram dúvida, todas. Que depois de lutar pelo direito de ser diferente, chega a bendita hora de se permitir a indiferença.

Que adultos se divertem muito mais do que os adolescentes. Que uma perda, qualquer perda, é um aperitivo da morte – mas não é a morte, que essa só acontece no fim, e ainda estamos falando do meio.

No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco e da caixa postal, mas a senha que nos revela a nós mesmos. Que passar pela vida à toa é um desperdício imperdoável. Que as mesmas coisas que nos exibem também nos escondem (escrever, por exemplo).

Que tocar na dor do outro exige delicadeza. Que ser feliz pode ser uma decisão, não apenas uma contingência. Que não é preciso se estressar tanto em busca do orgasmo, há outras coisas que também levam ao clímax: um poema, um gol, um show, um beijo.

No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção: ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida toda, esse meio todo.

Martha Medeiros

domingo, 11 de dezembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade



TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu tambem já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bars
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas ha uma hora em que os bars se fecham
e todas as virtudes se negam.


Eu tambem já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrellas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céo tamanho
que minha poesia perturbou-se.


Eu tambem já tive um rithmo.
Fazia isto, fazia aquillo.
Meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu ironico deslisava
satisfeito de ter o meu rithmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não desliso mais não,
não sou ironico mais não,
não tenho rithmo mais não.


- Carlos Drummond de Andrade em “Alguma Poesia” da primeira edição, 1930.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Namore uma garota que lê – Rosemary Urquico


Namore uma garota que gasta seu dinheiro em livros, em vez de roupas. Ela também tem problemas com o espaço do armário, mas é só porque tem livros demais. Namore uma garota que tem uma lista de livros que quer ler e que possui seu cartão de biblioteca desde os doze anos.
Encontre uma garota que lê. Você sabe que ela lê porque ela sempre vai ter um livro não lido na bolsa. Ela é aquela que olha amorosamente para as prateleiras da livraria, a única que surta (ainda que em silêncio) quando encontra o livro que quer. Você está vendo uma garota estranha cheirar as páginas de um livro antigo em um sebo? Essa é a leitora. Nunca resiste a cheirar as páginas, especialmente quando ficaram amarelas.

Ela é a garota que lê enquanto espera em um Café na rua. Se você espiar sua xícara, verá que a espuma do leite ainda flutua por sobre a bebida, porque ela está absorta. Perdida em um mundo criador pelo autor. Sente-se. Se quiser ela pode vê-lo de relance, porque a maior parte das garotas que leem não gostam de ser interrompidas. Pergunte se ela está gostando do livro.

Compre para ela outra xícara de café.
Diga o que realmente pensa sobre o Murakami. Descubra se ela foi além do primeiro capítulo da Irmandade. Entenda que, se ela diz que compreendeu o Ulisses de James Joyce, é só para parecer inteligente. Pergunte se ela gosta ou gostaria de ser a Alice.
É fácil namorar uma garota que lê. Ofereça livros no aniversário dela, no Natal e em comemorações de namoro. Ofereça o dom das palavras na poesia, na música. Ofereça Neruda, Sexton Pound, cummings. Deixe que ela saiba que você entende que as palavras são amor. Entenda que ela sabe a diferença entre os livros e a realidade mas, juro por Deus, ela vai tentar fazer com que a vida se pareça um pouco como seu livro favorito. E se ela conseguir não será por sua causa.

É que ela tem que arriscar, de alguma forma.
Minta. Se ela compreender sintaxe, vai perceber a sua necessidade de mentir. Por trás das palavras existem outras coisas: motivação, valor, nuance, diálogo. E isto nunca será o fim do mundo.

Trate de desiludi-la. Porque uma garota que lê sabe que o fracasso leva sempre ao clímax. Essas garotas sabem que todas as coisas chegam ao fim. E que sempre se pode escrever uma continuação. E que você pode começar outra vez e de novo, e continuar a ser o herói. E que na vida é preciso haver um vilão ou dois.

Por que ter medo de tudo o que você não é? As garotas que leem sabem que as pessoas, tal como as personagens, evoluem. Exceto as da série Crepúsculo.

Se você encontrar uma garota que leia, é melhor mantê-la por perto. Quando encontrá-la acordada às duas da manhã, chorando e apertando um livro contra o peito, prepare uma xícara de chá e abrace-a. Você pode perdê-la por um par de horas, mas ela sempre vai voltar para você. E falará como se as personagens do livro fossem reais – até porque, durante algum tempo, são mesmo.
Você tem de se declarar a ela em um balão de ar quente. Ou durante um show de rock. Ou, casualmente, na próxima vez que ela estiver doente. Ou pelo Skype.
Você vai sorrir tanto que acabará por se perguntar por que é que o seu coração ainda não explodiu e espalhou sangue por todo o peito. Vocês escreverão a história das suas vidas, terão crianças com nomes estranhos e gostos mais estranhos ainda. Ela vai apresentar os seus filhos ao Gato do Chapéu [Cat in the Hat] e a Aslam, talvez no mesmo dia. Vão atravessar juntos os invernos de suas velhices, e ela recitará Keats, num sussurro, enquanto você sacode a neve das botas.

Namore uma garota que lê porque você merece. Merece uma garota que pode te dar a vida mais colorida que você puder imaginar. Se você só puder oferecer-lhe monotonia, horas requentadas e propostas meia-boca, então estará melhor sozinho. Mas se quiser o mundo, e outros mundos além, namore uma garota que lê.

Ou, melhor ainda, namore uma garota que escreve.

Texto original: Date a girl who reads – Rosemary Urquico

Tradução e adaptação – Gabriela Ventura

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Pio Vargas


goiânia,
foi-me dado
o direito de falar contigo,
não pela língua dos jornais
ou dos livros,
mas pela janela deste outubro
que nos ameaça com seus olhos
de futuro
e a dor das flâmulas boiando
nos flamboyants.
não direi dos becos
da saudade de beca
dos rios sujos
das margens secas
dos gabinetes
dos shoppings
ou do césio
ardendo nestes dias atônitos.
não direi dos pêndulos
dos vincos
de pedro Ludovico
inscrito no silêncio
dos monumentos
(o eterno da história
é o momento).