domingo, 26 de setembro de 2010

Caio Fernando Abreu


"...Então, que seja doce. Repito todas as manhãs, ao abrir as janelas para deixar entrar o sol ou o cinza dos dias, bem assim: que seja doce. Quando há sol, e esse sol bate na minha cara amassada do sono ou da insônia, contemplando as partículas de poeira soltas no ar, feito um pequeno universo, repito sete vezes para dar sorte: que seja doce que seja doce que seja doce e assim por diante. Mas, se alguém me perguntasse o que deverá ser doce, talvez não saiba responder. Tudo é tão vago como se não fosse nada..."

Trecho do conto "Os Dragões não Conhecem o Paraíso", de Caio Fernando Abreu


A foto em destaque é Caio e Cazuza.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

ANDRÉ DE LEONES


Há o espaço a ser preenchido, o lugar de uma narrativa que ela tenta preencher aos poucos. A narrativa da crise, da internação, dos primeiros dias no hospital, e também a narrativa do período imediatamente anterior, os dias que precederam o horror. Hoje, sentada na cama do hospital com o notebook no colo, conseguiu conectar-se a uma rede sem fio das redondezas e leu os e-mails que eu lhe enviara desde o primeiro dia. Os longos e-mails que escrevi para me manter são: ela os lê e se emociona e ri, um espaço em branco a menos, dois, três, cinco, nove; revive o que não tem certeza de ter vivido, ou que não sabia ter vivido, e se refaz, e eu também.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Edwin Morgan


O Divisor

Continuo pensando em você – o que é ridículo.
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu pelos Stones;
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardam uma noite selvagem.
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou,
mesmo que não possa estar onde estou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa
que eu teria jogado sobre você – havia apenas
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia,
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar
e não se preocupar, e aquilo
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete
não senti nada além de uma punhalada
de dor me dizendo o que era,
e não posso dizer para você, nem uma palavra.

(Tradução: Virna Teixeira)

sábado, 4 de setembro de 2010

Clarice lispector


"quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar escolheria? às vezes dá certo. mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase "se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e começo a pensar. diria melhor, sentir.
e não me sinto bem. experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? logo de início se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser levemente locomovida do lugar onde se acomodara. no entanto já li biografias de pessoas que de repente passavam a ser elas mesmas, e mudavam inteiramente de vida. acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na rua porque até minha fisionomia teria mudado. como?não sei.
metade das coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. acho, por exemplo, que por um certo motivo eu terminaria presa na cadeia. e se eu fosse eu daria tudo o que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
"se eu fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do mundo. bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. e a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. não, acho que já estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais".
em: a descoberta do mundo - clarice lispector - pg. 156.