terça-feira, 27 de setembro de 2011

“NÓIS MUDEMO”


“NÓIS MUDEMO”

Fidêncio Bogo

Ônibus da Transbrasiliana deslizava manso pela Belém-Brasilia rumo ao Porto Nacional.
Era abril, mês das derradeiras chuvas. No céu, uma luzona enorme pra namorado nenhum botar defeito. Sob o luar generoso, o cerrado verdejante era um presépio, todo poesia e misticismo.

As aulas tinham começado numa segunda-feira. Escola de periferia, classes heterogêneas, retardatários. Entre eles, uma criança crescida, quase um rapaz.

- Por que você faltou esses dias todos?
- É que nóis mudemo onti, fessora. Nóis veio da fazenda.
Risadinhas da turma.
- Não se diz “nóis mudemo” menino! A gente deve dizer: nós mudamos, ta?
- Tá fessora!
No recreio as chacotas dos colegas: Oi, nóis mudemo! Até amanhã, nóis mudemo!
No dia seguinte, a mesma coisa: risadinhas, cochichos, gozações.
- Pai, não vô mais pra escola!
- Oxente! Módi quê?
Ouvida a história, o pai coçou a cabeça e disse:
- Meu fio, num deixa a escola por uma bobagem dessa! Não liga pras gozações da mininada!
Logo eles esquece.
Não esqueceram.
Na quarta-feira, dei pela falta do menino. Ele não apareceu no resto da semana, nem na segunda-feira seguinte. Aí me dei conta de que eu nem sabia o nome dele. Procurei no diário de classe e soube que se chamava Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa. Achei o endereço.
Longe, um dos últimos casebres do bairro. Fui lá, uma tarde. O rapaz tinha partido no dia anterior para casa de um tio, no sul do Pará.
-É, professora, meu tio não agüentou as gozações da mininada. Eu tentei fazê ele continuá, mas não teve jeito. Ele tava chateado demais. Bosta de vida! Eu devia di tê ficado na fazenda coa famia. Na cidade nóis não tem veis. Nóis fala tudo errado.
Inexperiente, confusa, sem saber o que dizer. Engoli em seco e me despedi.

O episódio ocorrera há dezessete anos e tinha caído em total esquecimento, ao menos de minha parte.
Uma tarde, um povoado à beira da Belém-Brasília, eu ia pegar o ônibus, quando alguém me chamou.
Olhei e vi, acenando para mim, um rapaz pobremente vestido, magro, com aparência doentia.
-O que é, moço?
-A senhora não se lembra de mim, fessora?
Olhei para ele, dei tratos à bola. Reconstitui num momento meus longos anos de sacerdócio, digo de magistério. Tudo escuro.
-Não me lembro não, moço. Você me conhece? De onde? Foi meu aluno? Como se chama?
Para tantas perguntas, uma resposta lacônica:
-Eu sou “Nóis mudemo”, lembra?
Comecei a tremer.
-Sim, moço. Agora lembro. Como era mesmo o seu nome?
-Lúcio – Lúcio Rodrigues Barbosa.
- 0 que aconteceu? Ah! Fessora! É mais fácil dizê o que não aconteceu. Comi o pão que o diabo amasso. E êta diabo bom de padaria! Fui garimpeiro. Fui bóia-fria, um “gato” me arrecadou e levou num caminhão pruma fazenda no meio da mata. Lá trabaiei como escravo, passaei fome, fui baleado quando conseguir fugi. Peguei tudo quando é doença. Até na cadeia já fui pará. Nóis ignorante as veis fais coisa sem querê fazê. A escola fais uma farta danada. Eu não devia tê saído da quele jeito, fessora, mais não agüentei as gozação da turma. Eu vi logo que nunca ia consegui falá direito. Ainda hoje não sei.
-Meu Deus!
Aquela revelação me virou pelo avesso. Foi demais para mim. Descontrolada, comecei a soluçar convulsivamente. Como eu podia ter sido tão burra e má? E abracei o rapaz, o que restava do rapaz que me olhava ataratado.
O ônibus buzinou com insistência.
- O rapaz afastou-me se si suavemente.
- Chora não, fessora! A senhora não tem curpa.
Como? Eu não tenho culpa? Deus do céu!
Entrei no ônibus apinhado. Cem olhos eram cem flexas vingadoras apontadas para mim. O ônibus partiu. Pensei na minha sala de aula. Eu era uma assassina a caminho da guilhotina.

Hoje tenho raiva da gramática. Eu mudo, tu mudas, ele muda, nós mudamos... Super usada, mal usada, abusada, ela é uma guilhotina dentro da escola. A gramática faz gato e sapato da língua materna, a língua que a criança aprendeu com seus país e irmãos e colegas – e se torna o terror dos alunos. Em vez de estimular e fazer crescer, comunicando, ela reprime e oprime, cobrando centenas de regrinhas estúpidas para aquela idade.
E os lúcios da vida, os milhares lúcos da periferia e do interior, barrados nas salas de aula:
“Não é assim que se diz, menino!” Como se o professor quisesse dizer: “Você está errado! Os seus país estão errados! Seus irmãos e amigos e vizinhos estão errados! A certa sou eu! Imite-me!
Copie-me! Fale como eu! Você não seja você! Renegue suas raízes! Diminua-se ! Desfigure-se! Fique no seu lugar!
Seja uma sombra!”
E siga desarmado para o matadouro da vida...

domingo, 18 de setembro de 2011

Amar é Punk - Fernanda Mello


Eu já passei da idade de ter um tipo físico de homem ideal para eu me relacionar. Antes, só se fosse estranho (bem estranho). Tivesse um figurino perturbado. Gostasse de rock mais que tudo. Tivesse no mínimo um piercing (e uma tatuagem gigante). Soubesse tocar algum instrumento. E usasse All Star. Uma coisa meio Dave Grohl. Hoje em dia eu continuo insistindo no quesito All Star e rock´n roll, mas confesso que muita coisa mudou. É, pessoal, não tem jeito. Relacionamento a gente constrói. Dia após dia. Dosando paciência, silêncios e longas conversas. Engraçado que quando a gente pára de acreditar em “amor da vida”, um amor pra vida da gente aparece. Sem o glamour da alma gêmea. Sem as promessas de ser pra sempre. Sem borboletas no estômago. Sem noites de insônia. É uma coisa simples do tipo: você conhece o cara. Começa, aos poucos, a admirá-lo. A achá-lo foda. E, quando vê, você tá fazendo coraçãozinho com a mão igual uma pangaré. (E escrevendo textos no blog para que ele entenda uma coisa: dessa vez, meu caro, é diferente). Adeus expectativas irreais, adeus sonhos de adolescente. Ele vai esquecer todo mês o aniversário de namoro, mas vai se lembrar sempre que você gosta do seu pão-de-sal bem branco (e com muito queijo). Ele não vai fazer declarações românticas e jantares à luz de vela, mas vai saber que você está de TPM no primeiro “Oi”, te perdoando docemente de qualquer frase dita com mais rispidez. Ah, gente, sei lá. Descobri que gosto mesmo é do tal amor. DA PAIXÃO, NÃO. Depois de anos escrevendo sobre querer alguém que me tire o chão, que me roube o ar, venho humildemente me retificar. EU QUERO ALGUÉM QUE DIVIDA O CHÃO COMIGO. QUERO ALGUÉM QUE ME TRAGA FÔLEGO. Entenderam? Quero dormir abraçada sem susto. Quero acordar e ver que (aconteça o que acontecer), tudo vai estar em seu lugar. Sem ansiedades. Sem montanhas-russas. Antes eu achava que, se não tivesse paixão, eu iria parar de escrever, minha inspiração iria acabar e meus futuros livros iriam pra seção B da auto-ajuda, com um monte de margaridinhas na capa. Mas, caramba! Descobri que não é nada disso. Não existe nada mais contestador do que amar uma pessoa só. Amar é ser rebelde. É atravessar o escuro. É, no meu caso, mudar o conceito de tudo o que já pensei que pudesse ser amor. Não, antes era paixão. Antes era imaturidade. Antes era uma procura por mim mesma que não tinha acontecido. Sei que já falei muito sobre amor, acho que é o grande tema da vida da gente. Mas amor não é só poesia e refrão. Amor é reconstrução.É ritmo. Pausas. Desafinos. E desafios. Demorei anos pra concordar com meu querido Cazuza: “eu quero um amor tranqüilo, com sabor de fruta mordida”. Antes, ao ouvir essa música, eu sempre pensava (e não dizia): porra, que tédio! Ah, Cazuza! Ele sempre soube. Paixão é para os fracos. Mas amar - ah, o amor! - AMAR É PUNK.

Fernanda Mello

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Dez teses sobre Natal


Por Alyson Freire
NA CARTA POTIGUAR

Não há melhor maneira de descrever Natal do que segundo as coisas que seus próprios habitantes não param de repetir sobre sua cidade. Assim como em outros lugares, também em Natal, cristalizaram-se e generalizaram-se algumas atitudes emocionais poderosas. Os natalenses reprovam, com convicção, traços e hábitos que seriam inerentes a este pequeno pedaço de terra espremido na esquina do atlântico; o provincianismo arraigado, a mesquinhez camuflada de extravagância de suas classes abastadas, o gosto cultivado pelas classes médias locais por tudo o que é capaz de aparentar e enganar, o comodismo e a insensibilidade de seu povo, entre outros traços mais. O que distingue Natal de todas as outras capitais consiste na afinidade e na naturalidade com que seus habitantes convivem com a insatisfação de estarem onde estão; isto é, a intimidade com as poderosas associações negativas sobre as quais construíram e fundaram a autoimagem de sua cidade e população.

*

Natal é uma cidade melancólica, e não a cidade do prazer, como um dia quiseram nos fazer acreditar. Só conhece a melancolia de Natal que cresceu em seu regaço. Seus futuros tão prometidos por publicitários, empresários e políticos, como ramos secos, nunca se realizam. Cidade da falta. Natal é apontada por seus próprios filhos como desprovida de cultura e identidade próprias. Cidade da ausência, de filhos ilegítimos e órfãos de verdadeira cultura, assim a concebem seus próprios moradores. O existir para os natalenses é sempre uma questão de ausência; é da falta que irrompe todo sentido sobre o seu ser: a falta de cultura, a falta de identidade, a falta de alternativas, a falta de um senso urbano metropolitano, de civilidade e cosmopolitismo verdadeiros. Os outros – pernambucanos, paraibanos e cearenses – lhes são como espelhos negativos nos quais os natalenses vêem menos o que não são e mais o que lhes falta. O espelho, impiedoso, não lhes devolve com claridade os traços e contornos que seriam seus. Sua identidade é como uma imagem refletida num espelho desfocado. A inautenticidade é o que reluz mais radiante no olhar dos natalenses.

*

Nenhuma outra cidade é tão ferozmente ressentida consigo mesma quanto Natal. Esta só existe através da fala de seus habitantes, em suas queixas e frustrações. Por isso, Natal é mais a cidade que se descreve, do que a cidade que se vê; ela é, antes de qualquer coisa, o seu discurso, ou pelo menos, vive do seu próprio discurso ressentido. Natal vive da insatisfação de ser Natal. Ela é uma cidade que tem medo de se realizar, e, por isso mesmo, deseja ser menor do que realmente é, mais provinciana e menos moderna do que realmente é. Suas muralhas são os seus próprios medos. Seus obstáculos são os seus autoenganos acerca de si mesma.

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Por aqui, moderno e província coexistem, se interpenetram, lutam e se repelem conflituosamente e sem síntese. Estranho paradoxo esse, mas que diz algo de fundamental com respeito à autoimagem dessa cidade. É sua ambigüidade, a violência do contraste observada no jogo entre o frívolo e o ressentimento, a alternância dos contrários, a tensão espiritual entre a extravagância e a excitação alienada de seus cidadãos-blasés com o permanente estado de mal-estar e deslocamento com o qual convivem diariamente parte de seus cidadãos descontentes, que conferem, por assim dizer, a dinâmica da qual nasce o “espírito” da capital do Rio Grande do Norte.

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De sorte que Natal é simultaneamente a Natal das cadeiras e fofocas nas calçadas e do apreço por padres, médicos e advogados de renome, e a Natal das passarelas e travessias por onde os passantes inquietos escoam apertados e encolhidos e os olhares se cruzam sem quase nunca se fixar. É a cidade que se diz hospitaleira, calma e pacata, mas é também a cidade do automóvel, regida, como qualquer outra metrópole, em sua orquestra diária pelos sinais de trânsito, muito embora seu tamanho real afirme sua vocação pra bicicletas. É o provincinismo compartilhado de Natal que impede que se veja o quanto há de moderno nessa cidade, sacudida e revirada de fio à pavio desde os empreendimentos mobiliários aos fluxos transnacionais de modas, corpos, perversões e desejos; uma cidade globalizada pelos sites pornográficos e pela prostituição. Nosso provincinismo é essa atitude emocional habitual de envergonhar-se e encolher a si mesmo para negar nossa modernidade.

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A cidade de Câmara Cascudo, deste que se definia como um “provinciano incurável”, também conheceu Mario de Andrade e Jorge Fernandes, esse último o nosso poeta modernista. Cidade das contradições e contra-sensos, das dubiedades e incongruências, de “vaqueiros motorizados” e “dandis jecas”.

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Esta é também a cidade dos modismos. Nela nada dura o suficiente, e quase tudo é irritantemente passageiro e efêmero. Tudo se consome num prazo de dois verões. Ninguém cultua tanto o novo como o natalense; os novos bares e boates, os novos restaurantes, casas-de-show e teatros em shopping’s centers. Tal é, em geral, que cada novidade é veementemente celebrada, agitada, propalado às raias da comoção pública, pois significa mais uma ocasião para a ostentação e para o esporte predileto dos natalenses, a exibição, pois não se sabe ao certo o quanto essa mais nova novidade irá durar.

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Aqui a aparência tem que ter sempre razão. Nesta cidade quase todos são vigiados pelo colunismo social. Por toda parte se estar cercado por um sem número de colunistas sociais ordinários que, por cima dos ombros, espiam sorrateiros de quais roupas, marcas, amigos e objetos seus vigiados se cercam. Aqui, nutrimos um gosto pelo acusatório, uma predileção por gestos reativos e pelo ressentimento semi-esclarecido. O ressentimento é o elemento intelectual desta cidade. Não se enganem, Natal é a mais pequeno-burguesa das cidades brasileiras, pois seus conterrâneos não cessam de atribuir à culpa e o mal aos outros – políticos, imprensa, o povo etc. – sem perceber como absurdo sua própria autoexclusão do contexto que denunciam.

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Grande parte dos natalenses sente-se mal em sua própria casa, mas porque, de alguma maneira, se concebem como maiores, melhores e mais verdadeiros do que o restante da cidade. Os natalenses, em sua porção média, são estrangeiros em sua própria terra; dizem estar de passagem, de partida pra não sei onde – talvez para alguma cidade no Canadá. Porque Natal, em seu provincianismo e artificialidade, não os cabe, nem os merece e tão pouco os aquilata em sua singularidade e autenticidade.

*

Nossa vocação política é fabricar cartões-postais artificiais. Esta é uma cidade que não sonha porque nunca desperta. Natal não é nada do que fez crer – e desejou crer – de si. E, assim, aprendeu a conhecer somente medos e dúvidas, frustrações e fracassos. Uma cidade impossível…

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Bruna Beber


"Lusofeelings"

"quando formiga e arde
o nariz e o olho
engulo
choro com saliva ou qualquer
coisa que comprometa
a fala
a despedida é tão intrigante
quanto a saudade
desnecessária
ou quanto a rima
desnecessária
banho de água fria
se cura com um balde
de café
beijo a mão e aceno
para o espelho
o dedo do meio

terça-feira, 6 de setembro de 2011

às vezes nos reveses


às vezes nos reveses


penso em voltar para a england
dos deuses
mas até as inglesas sangram
todos os meses
e mandam her royal highness
à puta que a pariu.
digo: agüenta com altivez
segura o abacaxi com as duas mãos
doura tua tez
sob o sol dos trópicos e talvez
aprenderás a ser feliz
como as pombas da praça matriz
que voam alto
sagazes
e nos alvejam
com suas fezes
às vezes nos reveses

Angélica Freitas