terça-feira, 27 de julho de 2010

Miriam Fraga


INOCÊNCIA

Sai de casa anteontem mesmo,
Com minha camisa de manga comrida branca de cassa
Engomada meigamente por minha mãe.
É difícil acreditar.
Mas esses olhos que hoje enxergam
Um dia brilharam feito esmeraldas
Este dia me trouxe de volta
Com este terno
Sólido
Interno.
Por onde anda aquele menino
De olhar ingênuo
Que nascera na Rua da Matriz
Itaquara?
O menino do olhar
Envelheceu-se.
E,
Das esmeraldas
Resta-me hoje,
Calada,
Esta fotografia infante
Distante
Mais nada.

sexta-feira, 23 de julho de 2010

A MERCÊ DAS MANHÃS


Eu, pecado

me confesso

nessa manhã de domingo

voltando do banheiro

e pedindo um croque monsieur

Eu voltei pro alcoolismo

se tenho que ver essa garota linda

quase etérea no balcão

intimidando meus passos

a carinha de Juliete Binoche

perguntando: “o que cê tá fazendo?”

“você não tá gostando?”

“continua”.

meus dedos roçando suavemente

o lóbulo de sua orelha

atravessando a cidade

morrendo no balcão de uma padaria

Tenho a bandeira brasileira na porta do meu quarto

e um 38 na gaveta do criado

Tenho os olhos injetados

quando leio um poema do Del na frente do hotel

não preciso beber vodka

ninguém vai cheirar meu hálito quando eu chegar em casa

não tem ninguém esperando por mim nessa manhã

peço um corn flakes e misturo com cerveja

Se esse poema parece um epitáfio

é porque descobri que só é possível morrer

quando os deuses se distraem

Vou entrar num restaurante coreano

e pedir um karaokê

Me parece um bom lugar pra morrer



Mário Bortolotto

quinta-feira, 15 de julho de 2010

velhas variações sobre a produção contemporânea


Agora mesmo algum maluco
deve estar postando qualquer treco
genial na internet,
alguém deve estar pensando
em como melhorar aquele
texto enquanto lota o especial
de vinagrete, perseguindo
obstinadamente um acorde
voltando da padaria.

Agora mesmo alguém
pode estar pensando
que guardamos só pra gente
o lado ruim das coisas lindas –
assim, trancafiado a sete chaves
de carinho – alguém
pode estar sentindo tudo ao mesmo tempo
sozinho, assim brutalmente
sentimental, feito coubesse
toda a dignidade humana
num abraço tímido.

Agora mesmo alguém deve estar limpando
cuidadosamente o CD com a camisa,
pulando a ponta do pão pullman,
sentindo o baque da privada gelada,
perguntando quanto está o metro
daquela corda de nylon, trepando
no carro, empurrando o filho
no balanço com uma mão
e na outra equilibrando
a lata e o cigarro, agora mesmo
alguém deve estar voltando,
alguém deve estar indo,
alguém deve estar gritando feito um louco
para um outro alguém
que não deve estar ouvindo.

Agora mesmo alguém
pode estar encontrando sem querer
o que há muito já nem era procurado,
alguém no quinto sono
deve estar virando para o outro lado,
alguém, agora mesmo, no café da manhã
deve estar pensando em outras coisas
enquanto a vista displicentemente lê
os ingredientes do Toddy.

Marcelo Montenegro

sábado, 10 de julho de 2010

Hélio Pellegrino em carta a Fernando Sabino


"O homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que, ganhando o mundo, conseguirá ganhar-se a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-lo na sua libérrima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita inutilidade. O comêço da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe em plena treva, pobre e nu. Êste é o preço do encontro, do possível encontro com o outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem que merece o seu nome."

Hélio Pellegrino em carta a Fernando Sabino, à guisa de prefácio de "O Encontro Marcado"

terça-feira, 6 de julho de 2010

REGIS BONVICINO


Este Poema

Este poema
não chama a atenção
é igual a milhares –
sequer por um momento

ilustra, apático, o passado
caça moscas
paga juros
não tem saco aéreo

víboras, ratos,
ladrões desprezam seu túmulo
uivam lobos de pelúcia
não tem futuro

é abelha cega com sua parelha de óculos
sua língua não é uma esponja
suas antenas farejam Drummond
não enxerga no escuro

não cria inimigos
não morre depois do ataque
não tem farpas
tolera o mundo

domingo, 4 de julho de 2010

SEPARAÇÃO


Desmontar a casa
e o amor. Despregar
os sentimentos das paredes e lençóis.
Recolher as cortinas
após a tempestade
das conversas.
O amor não resistiu
às balas, pragas, flores
e corpos de intermeio.

Empilhar livros, quadros,
discos e remorsos.
Esperar o infernal
juizo final do desamor.

Vizinhos se assustam de manhã
ante os destroços junto à porta:
-pareciam se amar tanto!

Houve um tempo:
uma casa de campo,
fotos em Veneza,
um tempo em que sorridente
o amor aglutinava festas e jantares.

Amou-se um certo modo de despir-se
de pentear-se.
Amou-se um sorriso e um certo
modo de botar a mesa. Amou-se
um certo modo de amar.

No entanto, o amor bate em retirada
com suas roupas amassadas, tropas de insultos
malas desesperadas, soluços embargados.

Faltou amor no amor?
Gastou-se o amor no amor?
Fartou-se o amor?

No quarto dos filhos
outra derrota à vista:
bonecos e brinquedos pendem
numa colagem de afetos natimortos.

O amor ruiu e tem pressa de ir embora
envergonhado.

Erguerá outra casa, o amor?
Escolherá objetos, morará na praia?
Viajará na neve e na neblina?

Tonto, perplexo, sem rumo
um corpo sai porta afora
com pedaços de passado na cabeça
e um impreciso futuro.
No peito o coração pesa
mais que uma mala de chumbo.

(Affonso Romano de Sant’Anna, grande poeta e intelectual mineiro, casado com Marina Colsassanti)

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Chico Buarque



Desci à Avenida Atlântica, chuviscava, a praia estava deserta, as águas escuras e crespas. Busquei abrigo num quiosque, e me perguntei se algum dia saberia viver longe do mar, em cidade que não terminasse assim num acidente, mas agonizando para todos os lados.

(Trecho extraído do livro Budapeste do genial Chico Buarque)