sábado, 28 de novembro de 2009

quinta-feira, 26 de novembro de 2009


A verdade, mais tola e mais simples, mais certa e mais secreta é que me fazes falta, esse vácuo, esse oco sem precisão ou contorno, sem nome ou lógica. Tu me fazes falta e me fazes carregar comigo uma ausência indefinível e perpétua, um esgar que é antes um tatear no vazio do que um estender de mão em direção a algo. Tu me fazes falta, me cavas um buraco, pões em meu rosto um borrão que não me desfigura, antes me torna um enigma para mim mesma. E venho me definindo e me reconfigurando ao redor disto: da tua falta. Sou esta que se ressente da tua ausência sem saber mais sequer como é a tua presença, que forma tem o teu corpo, qual o cheiro do teu hálito, qual a cor dos teus olhos, que gosto tem a tua boca assim que despertas. E no entanto sei disso: me fazes falta, essa falta ampla e completa que toma o dia cada vez que me vem o teu nome, essa falta que abre uma fresta no tempo, que suspende os ruídos do mundo, que modifica a direção do vento e que toma o centro de mim e ao redor da qual eu brinco de ser uma outra, que eu inventei para parecer que continuei vivendo.

Ticcia

quarta-feira, 25 de novembro de 2009


Isso de mim que anseia despedida
(Para perpetuar o que está sendo)
Não tem nome de amor. Nem é celeste
Ou terreno. Isso de mim é marulhoso
E tenro. Dançarino também. Isso de mim
É novo: como quem come o que nada contém.
A impossível oquidão de um ovo.
Como se um tigre
Reversivo,
Veemente de seu avesso
Cantasse mansamente.

Não tem nome de amor. Nem se parece a mim.
Como pode ser isso? Ser tenro, marulhoso
Dançarino e novo, ter nome de ninguém
E preferir ausência e desconforto
Pra guardar no eterno o coração do outro.

(Hilda Hilst)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009


O tempo, amigo, está contaminado.
Estamos todos comprometidos numa traição
que não sabemos
heróis e cúmplices de alguma coisa prestes a acontecer
que não acontece.
Amigo, se eu te pudesse depor
como se depõe uma veste
que face (terrível ou heróica)
eu voltaria para estas manhãs que já
nascem mortas
que palavra silente me umedeceria a boca?
Amigo, se eu te pudesse depor
(como depor o caminho como as mãos
os braços como o sonho a luz esta
rosa e o seu vermelho?)
Se eu te/me pudesse depor
amigo, se eu te/me
que noite mais escura ainda
seria nossa guarida
do que estes tempos contaminados
em que as palavras morrem em minha boca?

Maria do Carmo Barreto Campello de Melo

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

ASILO SANTA LEOPOLDINA





Todos os dias volto a Maceió.

Chego nos navios desaparecidos, nos trens sedentos, nos aviões cegos/

Que só aterrizam ao anoitecer.

Nos coretos das praças brancas passeiam caranguejos.

Entre as pedras das ruas escorrem rios de açúcar

Fluindo docemente dos sacos armazenados nos trapiches

e clareiam o sangue velho dos assassinados.

Assim que desembarco tomo o caminho do hospício.

Na cidade em que meus ancestrais repousam em cemitérios marinhos

só os loucos de minha infância continuam vivos e à minha espera.

Todos me reconhecem e me saúdam com grunhidos

e gestos obscenos ou espalhafatosos.

Perto, no quartel, a corneta que chia

Separa o pôr-do-sol da noite estrelada.

Os loucos langorosos dançam e cantam entre as grades.

Aleluia! Aleluia! Além da piedade

a ordem do mundo fulge como uma espada.

E o vento do mar oceano enche os meus olhos de lágrimas.
LEDO IVO

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Sobretudo



o paletó azul me separou da multidão
de horas que grudavam feito gente
fiquei mirando, um olho avisado
algum segredo que foi meu bem antes:
um raio um tilt o teu primeiro bei
jo acordes me acordando o teu lençol
pião sorvendo num ralo ligei
ro a cor e a antesala dos avós
a letra mágica a página ímã
do Reinações na tarde de ambrosia
a voz do filho já não mais a mi
nha azul de ar o corpo tão alheio
quadriculado, eis que me incandesceu
- feito uma insígnia, quase absurdo -
arcaizando o meu presente inerte.
estava andando e então senti o sopro
o dia abriu em dois, nitidamente:
o paletó azul estava tecido com o poema
um clown sem nuvens atravessando a ponte.



Claudia Roquette-Pinto

sábado, 14 de novembro de 2009

FRAGMENTOS


Eu sei, de vez em quando vem as guerras porque não somos somente paz. Mas escute, amor: a guerra é lá fora, contra quem quiser pisar na sua cabeça. Não, eu não quero. Eu sou fraca, o amor é fraco, o amor já se entregou. E se isso não tiver graça, eis a hora de partir, pois não é amor o que você procura. Eu só posso lhe oferecer a experiência assustadora e aterrorizante de ser amado.



E se existe alguma guerra é essa: meus dedos em sua pele, delicadamente, arrancando da superfície o que nem você gostaria de ver em si mesmo. Pois está vendo esses dedos? São eles que fazem carinho quando o mundo nos dá vontade de encolher num canto do sofá e dormir chorando... O Outro não pode amar aquilo que Eu não legitimo, não pode! Essa é a guerra! O risco de descobrir-se sem vestes, fraco, humano como qualquer outro, e ainda assim amado. É tão exposto quanto nascer, e não saber como será o mundo; assim como, nu e frágil, não saber o peso daqueles olhos em você.



Hoje eu quis inventar uma outra palavra, não pena. Que em pena a perspectiva é vertical. Em pena, sou eu olhando para baixo, e eu uma outra que traduzisse assim: eu olhando para dentro. Então eu assisto àquilo, olhando um cadáver ainda morno e digo sim, sim, ele tinha dentes muito bonitos, sim. Mas não fui eu que inventei a morte, não fui, a culpa não é minha. Eles dizem: alimente-se bem, beba pouco, não fume. Não fui eu que inventei isso de a morte entrar pela boca. É uma lei natural. Tudo o que é só corpo, pele ou matéria está se desgastando: o guarda-roupa, a Brigitte Bardot, tudo.



Então, o que se salva senão o intangível, senão os gestos que construímos em silêncio, de olhos fechados? E de olhos fechados, sonhei que você voltava dessa guerra e entrava embaixo de minhas cobertas: era o lugar mais quente depois que nada disso importava mais. Eu te abraçava bem forte, sem nada perguntar, porque o modo como você aquecia os meus pés friorentos era mais bonito do que tudo, tudo.

Escrito por Rita Apoena

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

A QUEIMADA


“Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose

os recortes antigos e as fotografias amareladas.
Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados,os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita”.
LEDO IVO

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A um apostador


pra mim

o páreo
é dentro

corro
por fora

(aéreo,
atento)

e fim.
(autor: Duda Machado. livro: Crescente. editora: Duas Cidades.)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Um texto de André Pereira


Andava sem rumo,sua ternura estava imprópria para consumo humano,feitos os pastéis adormecidos nos vidros do botequim,cumpriu sua faina;soturnamente comeu o desjum de sempre,acendeu seu cigarro e falou manso para o dono do boteco:-como está a vida hoje seu honor.O velho entre rabugento e sarcástico gritou como sempre,UMA MERDA MEU QUERIDO DOUTOR!sorriu aquiescente e viu uma bela colegial passando com suas pernas brancas rumo ao colégio,lembrou da infância e de tudo que estava longe,muito longe;soltou uma grande baforada para o infinito e resmungou:prá que tantas pernas meus deus,porém seus olhos não diziam nada,era a vida na sua essência cotidiana.

sábado, 7 de novembro de 2009

Insuportavelmente feliz


Outro dia, discuti com uma pessoa. Discordamos, e rapidamente a alternância entre sarcasmo e respostas agressivas virou um bate-boca. Não me importo muito com embates e cada vez menos me altero com eles. Por outro lado, a pessoa gritava cada vez mais alto, me insultava e acabou me ameaçando. Quase levei uma bofetada. O motivo da discussão era pífio, o que é comum no mundo do estresse em que a maior parte das pessoas socialmente integradas vive. Ironicamente, um pouco antes, na mesma tarde, vi a pessoa em questão entretida com a leitura de Inteligência Emocional, best-seller de Daniel Goleman, PhD, que defende a tese de que o sucesso pessoal depende muito mais da capacidade de ser gentil e amável nos relacionamentos do que da capacidade intelectual das pessoas.

Ela lia por que achava que precisava desse tipo de livro? Ou por outro motivo qualquer?

Livros de auto-ajuda são de uma canalhice quase inconcebível. Voltam-se a pessoas carentes, doentes da alma ou ambiciosas, com sede de sucesso. Não duvido do poder deles, já que a maioria se baseia no conceito da mentalização: é preciso ver a coisa feita na mente antes que aconteça na realidade. Mas duvido que seja preciso escrever tantos livros, com variações das fórmulas de sucesso, para descobrir isso. Tento me cercar de pessoas agradáveis e, se possível, otimistas. Ou de pessimistas inteligentes, e sei que é cada vez mais difícil achá-los. Nossa era padece de um mal terrível: a obrigação de ser feliz. Insuportavelmente feliz.

Meu avô trabalhava na Sears, loja de departamentos de que os mais velhos vão se lembrar. Nessa época, uma pessoa como ele podia ser feliz, simplesmente. Ele não tinha estudado até o nível superior, mas a formação técnica lhe dava um trabalho capaz de suprir as necessidades de sua família, uma esposa linda e amada, três filhos inteligentes e saudáveis, uma casa confortável, ainda que sem luxos. Não sei se no íntimo meu avô era feliz, mas quando eu era criança, brincávamos em parquinhos, ele me ensinou a reconhecer canto de sabiá e de bem-te-vi, fazer dobraduras, ouvir histórias e amar cavalos (ele era viciado nas corridas do Jóquei, embora não apostasse). Não acho que uma pessoa infeliz fique satisfeita com esses pequenos prazeres; pelo contrário, mal consegue se dar conta de que eles existem. E isso é o mal de uma época: por processos midiáticos, econômicos e sociais, tudo é ambição e expectativa. No plano profissional, por exemplo, ter um emprego e salário digno não bastam: é preciso ser realizado. E a mesma ciranda roda em todos os aspectos da vida.

Muitas palavras-chave fazem o inferno da vida contemporânea: fama, poder, motivação, reconhecimento, independência, liberdade, sucesso, amor. Um ciclo de esforços infindável se desenrola: faculdade, cursos de idiomas que nunca serão praticados, pós-graduação, aparelhos eletrônicos sofisticadíssimos e que logo serão obsoletos, redes de relacionamento virtuais, maquiagens, o par perfeito, o relacionamento afetivo sem tremores, álbuns de viagens com fotos de lugares descolados, horas de malhação na academia e tratamentos estéticos. Tudo isso para quê? Para satisfazer a quem? Não sou uma adepta voraz da vida simples nem neohippie à deriva. Mas acredito que os livros de auto-ajuda são um efeito colateral de uma sociedade que está tão imersa em seus processos de evolução que não se dá conta de que eles existem. Assimilar a criação social que nos cerca como um fato natural é perigoso. Perde-se a consciência de si e do outro, e há o sentimento de ânsia permanente. Nada mais lógico, portanto, do que buscar uma resposta qualquer para a vida que parece tão sem sentido, tão à espera de que algo mais finalmente aconteça.

Dou a cara à tapa, contudo: li um livro muito interessante, que abriu meus horizontes. Era de auto-ajuda financeira: Mulheres boazinhas não enriquecem, de Lois P. Frankel. Não espero enriquecer por causa dele, mas pelo menos percebi porque o dinheiro não pára na minha mão. A tese central do livro é que as mulheres não valorizam o dinheiro e carreira em causa própria, e sim com a finalidade de cuidar das pessoas amadas e lhes proporcionar bem-estar. Descrições de alguns padrões de comportamento femininos, puras e simples, acompanhadas de dezenas de exemplos e dicas práticas, me pareceram sensatos e razoáveis, factíveis. Além de adaptáveis a vários tipos de problemas, desde sair do vermelho no cartão de crédito a como pleitear um salário mais condizente com as qualificações profissionais. Desse, gostei bastante.

Em termos de auto-ajuda emocional, ficção me parece muito mais eficaz do que os guias que forram as prateleiras das livrarias. A literatura é cheia de histórias capazes de mudar o ser humano. O dilema de Antígona, na tragédia grega, entre atender a um dever de Estado e deixar o irmão insepulto, ou cumprir a obrigação familiar e os costumes e prover-lhe um enterro, me valeu por anos de terapia e vários tratados de ética. Mais recentemente, encontrei um verdadeiro refrigério moral e emocional na série de TV House. O personagem principal é um médico que faz escolhas nos planos pessoal e profissional extremamente radicais, fundadas num sistema de valores complexo e pessoal. O ganho que a série me trouxe (como fizeram vários livros, discos e filmes) foi uma percepção nova sobre minha realidade. Livros de auto-ajuda trazem respostas; a arte geralmente traz perguntas. Por escolha pessoal, fico com a arte.

A auto-ajuda se baseia um mundo irreal onde tudo pode dar certo, onde perder não é uma opção. Não me parece uma opção para evoluir e amadurecer, embora muitas vezes esses livros estejam recheados de boas dicas pessoais e profissionais. Vale a pena buscá-las, é um paliativo tão útil como assistir Top Hat, musical de 1935. A cena em que Ginger Rogers e Fred Astaire dançam ao som de “Cheek to Cheek” é capaz de curar, por cinco minutos que seja, qualquer ferida na alma. Não à toa, é com essa cena que termina A Rosa Púrpura do Cairo, filme de Woody Allen em que Cecília, a personagem de Mia Farrow, volta a ter esperança depois de ter sua vida arrasada, com essa tomada. O filme é um acalanto, uma resposta a um país em crise. Mas muito mais do que de respostas, o ser humano precisa de perguntas, que os livros de auto-ajuda nunca trarão.

Verônica Mambrini

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

"sentido sem título":


quando penso que queria
que caísse sobre nós
a pedra da gávea

dou aquela risadinha
maligna em seguida
aquela choradinha

invisível, atravessada
entre o olho e a garganta
nem piscando passa.
(Bruna Beber)