sábado, 29 de maio de 2010

Matinal - Paulo Henriques Britto



Nesta manhã de sábado e de sol
em que o real das coisas se revela
na forma nada transcendente
de uma paisagem na janela
num momento captado em pleno vôo
pela discreta plenitude
de não ser mais que um par de olhos
parado no meio do mundo
tantas coisas se fazem conceber
fora do tempo e do espaço
até que o instante se dissolva
enfim em mil e um pedaços
feito esses furos de pregos
numa parede vazia
a insinuar uma constelação
isenta de qualquer mitologia.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

ana rusche


CALMARIAS

Antes minha tristeza era afluente dos teus olhos.
Mas ela foi se esvaindo em lençóis,
escorreu pelo pé da cama,
inundou o corredor, molhou as portas,
serpenteou pelas ruas, infiltrou-se pela terra,
pela areia, contaminou as brumas,
diluindo-se em todos os oceanos.
Até que me dei conta que
o triste represado nas águas de meus olhos acabou tingindo todo o mar e todo o céu
de blue.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Restos Inúteis


uma flor de plástico murcha
palitos de fósforo queimados
velas que não se sustentam acesas
por mais de quatro horas
livros que não suportam uma terceira leitura
um verso parnaso de pé-quebrado
(pau que nasce torto morre torto)
o quinto replay de um gol impedido
de um jogo da terceira divisão
cabides puídos por golas mal passadas
relógios parados há seis anos
pilhas fracas guardadas no criado-mudo
tempo feio num quadro encardido na parede
moinhos de ventos extintos
órfãos do fantasma de Dom Quixote
velhas lambretas estacionadas
no cemitério da infância
ratoeiras inativas
pregos enferrujados
pedaços de cera de carnaúba esquecidos
curiós empalhados
gaiolas de buriti podres
baganas abandonadas num cinzeiro quebrado qualquer
a última faixa do lado B de um vinil arranhado
que repete há 32 minutos
cacos de cotovelo apoiados em janela inútil
quem olha dali vê passar a grande marcha do nada



Celso Borges
para Marcelo Montenegro, que abriu este baú
(in Belle Epoque)


Foto: Bresson

terça-feira, 11 de maio de 2010

Rubem Braga


O Desaparecido

Rubem Braga



Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.

Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.

Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.


Do livro "A Traição das Elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, pág. 112, extraímos o texto acima.

sábado, 8 de maio de 2010

Manuel Bandeira


Auto-Retrato

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

domingo, 2 de maio de 2010

Iracema Macedo


PRISÕES


Iracema Macedo



Antes eu era o incêndio

Agora faço seguro contra fogo

Contra roubos


Eu mesma era furacão

Eu mesma roubava

Agora apaziguo tudo e tranco


Antes eu era as perdas

Agora sou vista pelo bairro, precavida,

Comprando cadeados sob medida


(A poeta potiguar Iracema Macedo é professora de Filosofia do Instituto Federal Fluminense (IFF), Cabo Frio/RJ. Em 2006, lançou sua tese de doutorado em Filosofia “Nietzsche, Wagner e a época trágica dos gregos” (Annablume, São Paulo). Publicou dois livros de poemas: Lance de dardos, Edições Estúdio 53, Rio de Janeiro (2000) e Invenção de Eurídice, Editora da palavra, Rio de Janeiro (2004))

sábado, 1 de maio de 2010

Balada do Esplanada


Ontem à noite
Eu procurei
Ver se aprendia
Como é que se fazia
Uma balada
Antes de ir
Pro meu hotel.
É que este
Coração
Já se cansou
De viver só
E quer então
Morar contigo
No Esplanada.

Eu queria
Poder
Encher
Este papel
De versos lindos
É tão distinto
Ser menestrel
No futuro
As gerações
Que passariam
Diriam
É o hotel
É o hotel
Do menestrel

Pra me inspirar
Abro a janela
Como um jornal
Vou fazer
A balada
Do Esplanada
E ficar sendo
O menestrel
De meu hotel

Mas não há, poesia
Num hotel
Mesmo sendo
'Splanada
Ou Grand-Hotel

Há poesia
Na dor
Na flor
No beija-flor
No elevador

Oswald de Andrade