segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Natal


Rubem Braga


É noite de Natal, e estou sozinho na casa de um amigo, que foi para a fazenda. Mais tarde talvez saia. Mas vou me deixando ficar sozinho, numa confortável melancolia, na casa quieta e cômoda. Dou alguns telefonemas, abraço à distância alguns amigos. Essas poucas vozes, de homem e de mulher, que respondem alegremente à minha, são quentes, e me fazem bem, "Feliz Natal, muitas felicidades!"; dizemos essas coisas simples com afetuoso calor; dizemos e creio que sentimos; e como sentimos, merecemos. Feliz Natal!

Desembrulho a garrafa que um amigo teve a lembrança de me mandar ontem; vou lá dentro, abro a geladeira, preparo um uísque, e venho me sentar no jardinzinho, perto das folhagens úmidas. Sinto-me bem, oferecendo-me este copo, na casa silenciosa, nessa noite de rua quieta. Este jardinzinho tem o encanto sábio e agreste da dona da casa que o formou. É um pequeno espaço folhudo e florido de cores, que parece respirar; tem a vida misteriosa das moitas perdidas, um gosto de roça, uma alegria meio caipira de verdes, vermelhos e amarelos.

Penso, sem saudade nem mágoa, no ano que passou. Há nele uma sombra dolorosa; evoco-a neste momento, sozinho, com uma espécie de religiosa emoção. Há também, no fundo da paisagem escura e desarrumada desse ano, uma clara mancha de sol. Bebo silenciosamente a essas imagens da morte e da vida; dentro de mim elas são irmãs. Penso em outras pessoas. Sinto uma grande ternura pelas pessoas; sou um homem sozinho, numa noite quieta, junto de folhagens úmidas, bebendo gravemente em honra de muitas pessoas.

De repente um carro começa a buzinar com força, junto ao meu portão. Talvez seja algum amigo que venha me desejar Feliz Natal ou convidar para ir a algum lugar. Hesito ainda um instante; ninguém pode pensar que eu esteja em casa a esta hora. Mas a buzina é insistente. Levanto-me com certo alvoroço, olho a rua e sorrio: é um caminhão de lixo. Está tão carregado, que nem se pode fechar; tão carregado como se trouxesse todo o lixo do ano que passou, todo o lixo da vida que se vai vivendo. Bonito presente de Natal!

0 motorista buzina ainda algumas vezes, olhando uma janela do sobrado vizinho. Lembro-me de ter visto naquela janela uma jovem mulata de vermelho, sempre a cantarolar e espiar a rua. É certamente a ela quem procura o motorista retardatário; mas a janela permanece fechada e escura. Ele movimenta com violência seu grande carro negro e sujo; parte com ruído, estremecendo a rua.

Volto à minha paz, e ao meu uísque. Mas a frustração do lixeiro e a minha também quebraram o encanto solitário da noite de Natal. Fecho a casa e saio devagar; vou humildemente filar uma fatia de presunto e de alegria na casa de uma família amiga.


Texto extraído do livro "A Borboleta Amarela", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1963, pág. 124.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Desejos


Há muito tempo que deixei de fazer planos nesta época do ano. Basicamente por acreditar que cada plano se convertia em uma expectativa que eu jogava sobre minhas costas – e a chance de me curvar diante de tanto peso sobre os ombros era gigantesca. Resolvi facilitar as coisas para mim mesmo e relaxei. O que terá de vir, acredito, virá. E o que não era para ser meu, que encontre boa acolhida em mãos alheias. Não há nada de elevação espiritual nesta atitude, é só praticidade mesmo. Fui percebendo, ao longo dos anos, que o acaso sempre falou mais alto que meus planos e que grande parte daquilo que conquistei partiu de convites, associações com amigos e mesmo de ideias alheias – que nada mais são do que outros nomes para o acaso.

Eu me recordo com muita clareza do momento em que resolvi pensar assim. Era noite de 31 de dezembro (que óbvio!) e eu estava na Praia de Jabaquara, em Paraty, uma prainha que mais parece uma lagoa de água quente. Ou, como disse um amigo que estava comigo, uma banheira sem ondas e cheia de xixi. Não importa. Faltavam alguns minutos para a meia-noite e eu podia observar a concentração das milhares de pessoas na areia, acendendo velas, professando desejos silenciosos, rezando talvez. E minha cabeça estava completamente vazia. Não conseguia desejar nada, não conseguia pensar em nada concreto para o ano que teria início dali a poucos instantes, não imaginava como seriam meu trabalho, minha saúde, minhas aspirações. Nadinha. A mente estava estranhamente pacificada e vazia. Era como se eu estivesse num restaurante de comida exótica e cardápio ilegível: não adiantava escolher, tudo que me fosse servido seria estranho e arriscado. Mas poderia ser prazeroso também. Era um jogo. O jogo de estar vivo.

Mas, como a atmosfera do local parecia exigir um desejo urgente para o ano novo, fiz o meu. E é o que eu repito até hoje, esteja eu nos últimos dias de dezembro, como agora, ou numa segunda quinzena de um julho qualquer: que eu saiba dar boas-vindas a tudo de novo que chegar na minha vida e que saiba, acima de tudo, dizer adeus ao que está indo embora. Pode parecer bobinho, mas talvez seja um aprendizado que exija uma vida toda – a certeza de que a permanência não existe e que tudo está mudando. Nem sempre para melhor. Mas nem sempre para pior também. E, entre o que chega e o que vai, que eu tenha o bom senso de ser caloroso e hospitaleiro com aquilo que realmente se anuncia como bacana, e que reserve a minha saudade sincera para os grandes afetos que eu não souber, ou não puder, conservar ao meu lado.

Porque um ano novo, um mês novo, um dia novo e talvez até uma hora nova não passam exatamente disso: de uma contabilidade em que ganhamos aqui e perdemos ali. E a esperança, neste jogo, talvez seja a torcida para que o placar penda a nosso favor. Embora eu acredite que o que vale mesmo é a partida. Assim, já que não temos outra alternativa mesmo, que venha o apito de 2010, então.

http://roveriblog.blogspot.com/

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Para Mário e Tetê


Esse carinhoso texto a mim dedicado Carlão publicou no excelente blog "SUBSTANTIVO PLURAL" de Tácito Costa.Não poderia ficar de fora do meu blog,transcrevo abaixo.


Estiveram aqui na minha casa no sábado, Tetê e Eduardinho, duas pessoas do mais alto calibre. Era para ser uma comemoração para ninguém sabe o quê, mas acabou sendo uma celebração pela recuperação do dramaturgo Mário Bertolotto. Acho que todo mundo já sabe que Bortolotto tentou defender uma amiga de um assaltante num bar em São Paulo e levou quatro tiros na semana passada. Mas ele está bem. Minha mulher agora não pára de dizer, Carlão, pelo amor de Deus, você faria o mesmo. E eu digo, não meu bem, não faria, só se fosse necessário. Só conheço Mário do que li nos jornais sobre as peças que ele escreveu, mas gostaria de saber mais. Ele é dos meus, não é um covarde como a maioria dos caras que conheci aqui em Natal. Tetê é minha amiga das antigas e a gente nunca se confundiu nos meandros das ideologias. O fato é que ela chegou e foi logo tomando conta do som da casa. Pegou seus discos na bolsa e disse, Carlão, deixa comigo. E tascou Waldick Soriano. Porra! (note que aqui eu me solto para falar palavrão). Waldick faz parte de minha vida desde que eu passava minhas férias no Vale do Açu. Minha mãe tem a base de sua família toda lá onde eu conheci um cara grosso feito papel de prego, chamado João Bolha. Ele só gostava de duas coisas na vida: mulher e caça. Não, ele gostava de outra coisa. Ficar embriagado ouvindo Waldick Soriano. Foi esse cara que um dia chegou comigo numa bodega, digna daquelas descritas por João Rosa, e disse, bote um cinzano para esse menino. Aí ele pediu ao dono do estabelecimento para colocar a música que adorava. Então eu ouvi, “minha querida, saudações…”. Na hora detestei. Mas depois descobri que ali havia um Brasil que ainda não compreendi direito. “Escrevo esta carta…”. É uma canção chorosa, com arranjo totalmente mexicano. Nunca o Brasil foi tão mexicano. Bolero, meus amigos. Mas é lindo, percebo agora. E enjoativo como qualquer bebida doce. Quando eu pensava que estava tudo resolvido, vi o documentário de Patrícia Pillar sobre Waldick Soriano. Eis aqui a história de um legítimo filho do Brasil. Mas, diferente do outro, um filho que não deu certo. Um homem pobre, que saiu do nada e ganhou a vida perdendo tudo, mulheres, filhos, e nunca a dignidade. Escolheu a boemia, a solidão. Patrícia Pillar mostra tudo, sem afetação, sem medo. É o cara que ela costumava ouvir no rádio ao lado do pai. O momento que eu mais gosto é quando ele diz no total ostracismo, “eu não sou brega, sou poeta”. Tetê me deu o disco de presente e agora escuto sempre que quero me lembrar daqueles tempos. Quando a gente envelhece aos poucos, e aceita, o passado não dói tanto. João Bolha foi para o Rio de Janeiro e virou um careta. Acho que ele ainda adora Waldick.
Carlos de Souza.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Lúcio Cardoso, Ipanema e solidão


Por Wilson Bueno

O autor de “Dias Perdidos” disturbou a cena provinciana do Rio de Janeiro do início dos 50 com uma graça profética e corajosa


Não conheci Lúcio Cardoso, mas foi como se o conhecesse.
Convivi e freqüentei Maria Helena Cardoso, praticamente até sua morte, aos 94 anos, em 1997, ela, a “irmã sempre”, de Lúcio, que era como Clarice Lispector, também íntima dos Cardoso, chamava a eterna Lelena.
Sob seu fascínio e sabedoria ancoraram meus vint’anos atordoados, nos loucos anos 70 -o mar de Ipanema, um mar de birita e naufrágios. Nem um pouco divertido. O Horror Médici e outros horrores lá fora a rugir... Lelena era então best seller nacional com um livro humaníssimo e singelo, “Por Onde Andou Meu Coração”.
Ouço na noite grande o assovio de Inácio, na novela espantosa de mesmo nome, publicada por Lúcio em 1946. Bato com ele os pequenos caminhos de terra de Mangaratiba, na leonina desolação dos fins-de-semana aterrados que o “Diário Completo”, a sua ópera prima -vida e viés- nos conta com um luxo melancolicamente suicida.
Príncipe lúgubre, por mais de 40 anos, na Ipanema encharcada de álcool e anfetamina, ele foi o vampiro cândido e de grandes olhos expectantes. Ah, já adivinho os seus olhos, que eram como se barcos bêbados em meio à agonia de viver buscando Deus em cada esquina. Terrível o destino de quem se vê a buscar Deus, dia e noite, em cada esquina.
As novas gerações talvez nunca tenham ouvido falar de Lúcio Cardoso (1913-1968), como pouco ou nada ouviram falar de Cornélio Pena (1896-1958), de Otávio de Faria (1908-1980), que se pretendeu um Balzac brasileiro com as milhares de páginas de sua “Tragédia Burguesa”, ou do poeta Marcos Konder Reis (1922-2001) a buscar o Deus da Ressurreição, ainda que lanhado a chicote e sal. Identificados todos com o melhor do pensamento cristão de seu tempo, sobretudo o que tinha no filósofo francês Jacques Maritain seu epígono.
Recomponho, viajo, desenho: aos trapos, o saltitante amor adolescil de Clarice e Lúcio, como dois meninos, a andar a Copacabana de outrora, debruada de edifícios art nouveaux, cantando, quem sabe, uma ária de Puccini. Sei que se amaram do mais fulgurante amor -ela, a menina-escritora; ele, o jovem mestre, belo como um Deus ígneo, acuado ante o espanto de viver. O que conversavam? Do que ria a sua juventude exaltada? De que amor o amor no amor?
Lúcio foi mais, bem mais que um escritor. Disturbou a cena provinciana da Ipanema do início dos 50 com uma graça profética e corajosa. Talvez ele tenha sido o primeiro hippie brasileiro, muito antes dos hippies e do “make love not war”.
Era um ser devotado a uma revolução pessoal que nele tinha ainda mais charme porque revolução secreta, íntima, uma “reviragem” pessoal que marcava o tônus dos dias e mudava as coisas de lugar. Mas isso nele era tão profundamente particular, que o fazia assim como se um personagem de si mesmo. Andava descalço pelas ruas; bêbado, desvestia a camisa para com ela abrigar um outro bêbado em sua ruína provisória na grama da praça.
Imagino Lúcio, súbita “Pietá”, a amparar nos braços um menino morto; imagino Lúcio consolando alguém que a vida nocauteou a sangue e lágrimas; imagino Lúcio abraçando-se ao último poste da madrugada, sob a névoa dos junhos do Rio de Janeiro.
Sim, senhores, Lúcio Cardoso não foi só o autor de “Crônica da Casa Assassinada”, desolado painel de sangue, veludo e solidão, o amor sufocado e mesquinho; só ali onde o Amor pode ser mesquinho -nas casas coloniais da Minas decadentosa, a manter, ainda que a pão e água, a sua arrogante aristocracia. Nem queiram saber o que transita nos corredores dessas casas mortas e nem jamais ousem tocar na taça de vinho sobre o piano, cuidado!, pode que seja uma taça de veneno.
Timóteo, personagem marcante do livro, gordo e travestido de mulher, encerra-se num dos quartos, o idiota da família. Nem Fellini para imaginar, em 1959, esses seres de augúrio e pesadelo, a contar o raconto soturno do debaixo dos ouros das Minas Gerais.
Foi homem de recolher à casa dos pais, mesmo sob os mais enérgicos protestos da família, qualquer poeta recém-chegado da província, perdido no Rio, mas capaz de guardar dentro o poema feito um acinte, e isto era o que Lúcio melhor adivinhava, posto que esta era a sua maior urgência de viver. Fez isso, sobretudo, com Walmir Ayala. Mas o fez, também, com poetas cujo segredo a sua lenda guardava feito uma esmeralda viva no bolso do velho paletó.
O AVC que o emparedou em vida durante sete anos, interditando-lhe um dos lados do corpo, fez com que brotasse da até então quase inútil mão esquerda, pinturas de uma beleza trágica e alguma vez corrosiva. Anjos de asa quebrada, viajante a cavalo num Carnaval de matizes com que a mão, que lhe sobrara do incêndio, pintava, ora oligofrênica, ora nervosa feito a mão de uma criança com medo e, por vezes, tocada pelo gênio da cor e do evanescimento.
Não chegou a ser pintor à altura do que escreveu. Gritou, contudo, desde o seu silêncio acossado, numa explosão de guaches, de óleos e aquarelas. Já que não falava nem escrevia mais, interpelou Deus de frente, e não teve medo de Suas às vezes sinistras sentenças. Nem sempre o Deus do amor, este Deus cheio de ódio, que agora o escorraçava sem dó. E o enjaulava em si mesmo.
Desde sempre, antes da doença, escrevia a intervalos “existenciais” muitas vezes grosseiros -cinco, seis meses sem abrir o caderno por onde, quando se recompunha de suas quedas e precipícios, deslizava o lápis miúdo. Ainda uma vez, outro homem, a hinar a manhãs, movido pela fé na reconstrução dos dias derruídos. Lúcio nunca perdeu as esperanças. Um dia se salvaria de si mesmo. E então, saibam todos, não beberia mais e nem faria das noites desarvoradas o sagrado altar de sua melancolia.
O estilo de Lúcio traz, em suas melhores obras, a medida exata do cáustico, sem esquecer as ferezas e o abandono brasileiro das cidades perdidas e decadentes, afundadas em vales e grotões; tanto quanto, de seus habitantes, põe a nu as mazelas de amor. Incestos, adultérios, o desejo anda e anda, violáceo, igual que os longínquos horizontes de Minas, se é o poente, o demorado poente dessas aldeias sem Deus. O revôo dos tiés-sangue a prenunciar o infortúnio.
Seja em “Crônica da Casa Assassinada” ou no inconcluso, mas ainda assim sublime, “O Viajante”; seja nas novelas que, num misto de Hoffmann e Bernanos, perguntam pela vida detrás da morte, só a Morte parece vigorar com um luxo imperial e obsedante.
Dedicou-se ao cinema e à dramaturgia, mas o que existiu de fato foi, senhores, sem erro, o melhor dele, isto é, ele mesmo. Não sem razão o “Diário Completo” é o seu canto de cisne. Secreto “serial lover” a pisar macio as noites de Ipanema. Quasímodo ou lobisomem, aquele tempo em que dançavam no escuro os pirilampos na praia quase selvagem da Vieira Souto.
Embora a sua solidão fosse a de um homem e seu quarto, a de um homem e o encontro anônimo nas dobras da madrugada; ainda que a sua solidão fosse a de um pedinte da Beleza baldia, freqüentou e foi freqüentado pelo que havia de mais fino naquele Rio de Janeiro de antigamente. De Manuel Bandeira a Drummond, de Clarice a Tom Jobim, de Vinícius a Rachel de Queiroz, de Otto Lara Resende a Murilo Mendes, de Alceu Amoroso Lima a Roberto Burle Marx.
Em seu último dia de hospital, Clarice Lispector que, de todas as mulheres do mundo foi a que ele mais amou, relata, num quase ganido de dor que, ao entrar no quarto, vira o Cristo morto. O rosto esverdeado de um El Greco. E agora, por mais que ela gritasse, ele não a ouviria jamais. Antes, mudo ou grunhindo, ainda assim ele era o prodigioso Lúcio de sua juventude apaixonada. Agora ele não a ouvia mais.
E é justamente ele, Lúcio Cardoso, quem melhor explicita o personagem que dedicadamente construiu em 57 anos de vida, ou seja, ele mesmo -o personagem Lúcio Cardoso. O “Diário Completo” que o diga.
Desde o já longínquo 17 de outubro de 1962, derradeira anotação, grafa a lápis naqueles seus cadernos de solidão, com caligrafia quase bailarina, de uma regularidade espantosa para o que nele era tormento e desesperança, pouco antes do AVC que lhe quebraria em dois, o que me parece a sua suma e também uma cerimônia de adeus:
“Aquela mesma angústia fria, aquela dor sem doer que se espalha pelo corpo inteiro, arrumo, desarrumo, faço, e refaço. Ah, como é difícil ser calmo. Encho-me de remédios, vou à janela: é a noite, a noite dos homens, a minha noite. Ruídos de carros que passam na escuridão. Rádios abertos. Vultos que transitam em apartamentos acesos. E eu, eu? Onde vou, que faço?
Ouço a voz de Cornélio Pena -naquele tempo- ‘o seu sofrimento é um sofrimento bom, de permanecer à margem’. Não há, Cornélio, pior sofrimento do que permanecer à margem. Não tenho temperamento para isto. Quero amar, viajar, esquecer -quero terrivelmente a vida, porque não creio que exista nada de mais belo e nem de mais terrível do que a vida. E aqui estou: tudo que amo não me ouve mais, e eu passo com a minha lenda, forte sem o ser, príncipe, mas esfarrapado”.
.
Wilson Bueno
É escritor, autor de "A Copista de Kafka" (ed. Planeta), entre outros títulos.

http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2920,1.shl

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

FRUTA-PÃO



Para Leo Ventura

Minha madeleine
É a memória dessa fruta
Nas beiras litoral
Entre os coqueiros e a brisa
O cheiro de sol na areia
Os movimentos livres da infância
Os agitos soltos da juventude
O amor ancorado na pulsação quieta
A poesia inscrita no sabor

João Batista de Morais Neto

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

A noite do Rei


Pela primeira vez em 50 anos de carreira, Roberto Carlos foi obrigado a adiar a gravação do seu especial de dezembro. O show, que deveria ter acontecido na semana passada, foi remarcado para ontem, terça-feira, no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo. Sem tocar no assunto das fortes dores musculares que o fustigaram no começo do mês, o cantor abriu o espetáculo falando da idade avançada e arrancou risos complacentes: "Desde que nasci – e sei que faz muito tempo...".
.
Poucos artistas no mundo podem se dar o luxo de cantar o mesmo repertório ao longo de décadas e ainda assim continuar arrastando e emocionando multidões. Roberto é um deles. Tudo neste personagem mítico parece imutável: do corte de cabelo ao velho terno azul. A impressão é de que o Rei, assim como o Natal, sempre houve e sempre haverá.
.
É possível buscar explicações racionais para o fascínio que sua figura exerce no palco – da produção global que o cerca ao naipe dos músicos que o acompanham, muitos são os fatores que fazem de Roberto Carlos o maior cantor popular do Brasil em todos os tempos. Mas só estas explicações não satisfazem.
.
O Rei está impregnado na memória do povo brasileiro. Todos, em maior ou menor grau, temos uma lembrança envolvendo uma música de sua autoria, independente de faixa etária ou classe social. Esta memória coletiva – e afetiva – é a responsável pela catarse que acontece sempre que o mito repete o gesto de caminhar lentamente em direção ao microfone e, após a introdução apoteótica da orquestra, entoar com a inconfundível voz anasalada os versos atemporais: "Quando eu estou aqui/ eu vivo este momento lindo...".
.
A abertura com Emoções é previsível, mas sempre única. Frank Sinatra também era previsível quando encerrava seus shows com New York, New York. No entanto, foi um crooner genial. Não seria a repetição uma virtude? Assim como as pessoas se sentem seguras quando constatam que a comida de seu restaurante preferido continua a mesma apesar da passagem inexorável do tempo, também os fãs do Rei se sentem acolhidos em canções como Detalhes. É como voltar para casa depois de uma viagem longa. E ele sabe disso.
.
"Vou cantar agora uma música que nunca pode ficar de fora. Uma vez deixei de cantar e parece que ficou faltando alguma coisa", comentou o cantor no momento mais introspectivo da noite. Ao banquinho e munido de violão, tal e qual João Gilberto (Roberto iniciou a carreira imitando o pai da bossa nova), colocou a orquestra e a multidão em respeitoso silêncio: "Não adianta nem tentar me esquecer/ durante muito tempo em sua vida/ eu vou viver".
.
A presença mais aguardada do evento era a da atriz Dira Paes, a nova musa de RC. Assim como Camila Pitanga no especial de 2007, Dira foi convidada a cantar Cama e Mesa. Ela fingiu se esquivar, como se tudo não tivesse sido ensaiado, e avisou que só cantava no chuveiro. "Infelizmente não foi possível montar o chuveiro aqui no palco", brincou Roberto, "mas eu gostaria muito que você cantasse comigo". A plateia masculina se manifestou efusivamente pela primeira vez. Como cantora, porém, Dira Paes mostrou ser uma boa atriz.
.
O encerramento do show, tão previsível quanto a abertura, levantou o público nas arquibancadas do Ginásio do Ibirapuera: acompanhado por uma orquestra em êxtase, cantando Jesus Cristo enquanto distribuía rosas vermelhas aos convidados da primeira fila, o Rei repetiu uma história de Natal já muito conhecida dos brasileiros. Para a Psicologia, a repetição da estrutura mítica individual reedita o mito familiar. É impossível entender como ama a família brasileira sem entender a obra de Roberto Carlos.
Escrito por Bruno Ribeiro

LONELY DRUNK por Mário Bortolotto


Eu moro sozinho. Eu durmo numa rede. Sozinho. Eu ando sozinho por aí. Também ando acompanhado. Mas nem sempre me sinto sozinho. Só às vezes. Sozinho ou acompanhado. Eu aprendi que a solidão é algo que eu carrego dentro de mim. Solidão não é descer a Rua Augusta sozinho de madrugada, admirando as garotas na calçada. Solidão não é atravessar as ruas totalmente bêbado, descer as escadas do Gruta e não encontrar ninguém pra jogar bilhar, e ficar dando voltas em torno da mesa girando um taco imaginário. Solidão talvez seja ouvir as bolas caindo na caçapa. Solidão não é uma casa no meio da neve. Solidão talvez seja minha avó contando histórias de assombração. Um garoto de doze anos chorando sozinho numa cama com saudades de casa. Solidão não é ter o telefone desligado na sua cara. É você ouvir notícias de um país distante num rádio velho. O que eu quero dizer é que há pilhas de romances e poemas sobre a solidão. E você acha que eu nunca sinto medo? Eu penso em Hemingway com a espingarda na boca e Silvia abrindo o gás. Estamos chegando perto demais? O velho bêbado apaixonado pela garota de 23 anos e sonhando em fugir com ela pra Las Vegas. Existe algum outro tipo mais cruel de solidão? Não estou vaticinando meu fim. Estou sussurrando em seu ouvido um segredo. Você faz o que quiser com ele. Pensa bem se isso também não é solidão. Saber é solidão. Não é você ser abandonado no meio do mar. É você ter consciência num navio de bêbados. Não é uma tempestade sobre a cruz no Gólgota. É aquela cidade onde o sol nunca se põe. A solidão não é uma senhora de capuz parada na beira da estrada. Talvez seja o padre vociferando no púlpito. A solidão é um show de rock and roll e a garota gordinha modernete e cheia de opiniões e que vai voltar sozinha pra casa enquanto sua amiga burra e linda ficou com o guitarrista da banda. Não é o sujeito no caixão com as mãos em torno do rosário e o nariz entupido de algodão. Isso não é solidão. A solidão é o velório que sempre foi uma piada triste. A solidão é a passagem dos dias. A solidão não é um blues de Corey Harris. A solidão é o carnaval. A solidão é um farol. Eu apenas me deixo guiar. A solidão vai durar eternamente. O dia que eu sentir que não pode mais ser assim, juro que dou um jeito nisso. Ou então como diria o último boy scout, eu arrumo um cachorro. (mário bortolloto)

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Uma crônica de Bruno Ribeiro


Tenho vontade de guardar meus amigos num frasco. De tê-los à mão para conversar deliberadamente. E sinto a necessidade de aprisionar o tempo - não para que ele não passe, mas para que retenha certos sentimentos que deveriam ser eternos. Certos bares nunca poderiam fechar suas portas e certas mulheres não deixariam de nos olhar com olhos de criança diante de um brinquedo novo. Eu tenho muitos sonhos impossíveis - na política, sobretudo, por conta da teimosia e da inesgotável esperança no futuro. Mas dos sonhos mais singelos que tenho, o mais querido é juntar numa festa todas as pessoas que amo ou amei: meus amigos, minhas mulheres, os escritores que fizeram minha cabeça, os jogadores de futebol inesquecíveis, os músicos e os compositores, os mendigos da minha infância, os cachorros que já morreram, os guerrilheiros do Araguaia, os donos dos bares onde afoguei as mágoas ou celebrei qualquer coisa. Todos estaríamos ao redor de uma mesa forrada com as comidas que eu gosto - rabada com angu e agrião, feijoada, torta de palmito, sardinha portuguesa à escabeche, bife à cavalo com fritas - e haveria uma grande confraternização e não faltaria cerveja, uísque e cachaça para ninguém. E aí, quando fosse domingo, depois de dois dias de extrema felicidade, eu morreria. Eu morreria numa cama imensa e macia, rodeado por todas as pessoas que amo ou amei. E, se não fosse pedir demais, haveria uma orquestra no telhado e ela executaria primeiro a A Cavalaria Rusticana e depois a Internacional Socialista e eu, fisgando um decote, diria alguma gracinha para uma ex-namorada, fecharia os olhos e pronto. Aí, como João Amazonas, pediria que minhas cinzas fossem jogadas no Araguaia, onde tombaram os companheiros. Só que no caminho alguém mudaria de idéia e me jogaria no rio Maracanã, onde minhas cinzas encontrariam as do Fernando Toledo e as cinzas dele perguntariam para as minhas: "E aí, como estão as coisas por lá? Continuam a mesma bosta?". E as minhas cinzas responderiam insolentes: "É, estão do mesmo jeito. Mas até que dá para o gasto, viu? Você faz falta, mano.." E então nossas cinzas entrariam pelo buraco de um encanamento qualquer e se juntariam no esgoto e, tal como na vida, faríamos parte da mesma merda. Sei lá, às vezes eu penso que só valeria a pena viver se fosse assim. E morrer também, o que acaba sendo quase a mesma coisa.
__________________________________________________

domingo, 13 de dezembro de 2009

Cristiane Lisboa


aqui na segunda divisão, o mundo é duro, rapaz. sorte tua que mudaste de camiseta nos últimos minutos do segundo tempo. sinto a testa suar mesmo com temperaturas abaixo do normal para a primavera. me recolho em silêncio e ignoro as placas onde se lê "eu já sabia". me espanto com a facilidade de julgamentos, com o volátil do que eu acreditava ser tão real e com a quantidade de cacos depois da queda das nuvens. se desse certo, era culpa nossa. como deu errado, é problema meu. papai diz ao telefone "agora levanta e anda. antes que alguém te chute." alô, telefonista?

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mário Bortolotto


Podia sentar aqui e escrever um texto longo sobre exílio e desesperança. Sobre um sujeito triste e improdutivo se arrastando por aí. Podia simplesmente publicar o poema que terminei de escrever hoje à tarde ou transcrever aqui mais um poema do velho Buk. Eu podia ficar aqui na frente da tv apenas zapeando sem nenhuma urgência. Podia abrir aquela garrafa de Jack Daniels Silver Select. Podia ouvir o LP do Joe Cocker de 1.970. Mas eu não vou fazer nada disso. Vou continuar aqui fazendo o que comecei hoje à tarde. Vou terminar de assistir "Husbands" do John Cassavetes. Porque tá quase tudo lá. Porque as pessoas continuam. Tá pensando que eu não saquei isso? Todo mundo continua. E eu também vou. Mesmo porque não me ensinaram a fazer outra coisa. E os que tentaram, eu simplesmente ignorei. E não há nada de beligerante nisso. Sou tão vulnerável quanto qualquer um. E nunca me esqueço disso.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Jessica




foi o bom Sheppard
quem me ensinou
a andar pelo deserto
mesmo assim
eu esperava
escondido
que ele saísse
com a velha camionete
não da casa de Los Angeles
mas
do rancho
no Monjave

depois eu entrava
na casa
meio sem jeito
as botas sujas
o colarinho grudando

e ela me esperava
com um leve vestido
facíl de tirar
e um copo pronto
de limonada
com muito gelo

(dezembro, 2009)

Lalo Arias

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

O ator


Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,

embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:

nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza

que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos

em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,

sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.

Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.

Eucanaã Ferraz