Sou assumidamente apaixonada por Caio.Foi ele quem melhor escreveu sobre minha geração.Transcrevo aqui no meu blog a resenha de Marcelo Moutinho sobre dois livros recém-lançados e que jogam luz na vida e na obra de Caio Fernando Abreu.
Personagem de si mesmo
Marcelo Moutinho
Corriam os anos 70. A tarde se desenrolava sem sobressaltos na redação da revista Pop quando alguém entregou a Paula Dipp, repórter ainda iniciante, um recado sob forma de bilhete. “Todos já receberam o convite para seu aniversário; por acaso você teria se esquecido de mim ou ainda posso ter esperanças de ser convidado?”, dizia o texto. Assinava Caio Fernando Abreu.
Paula organizara uma "festa de arromba". "Enviei convites, avisei pessoas, e o Caio, justo ele, foi ficando para trás. (...) Não foi esquecimento e sim uma espécie de cautela. Adiei o convite porque ele me intimidava”, conta ela, que acaba de cumprir, com a publicação de Pra sempre teu, Caio F, a promessa feita numa das tantas correspondências trocadas com o escritor após aquele episódio inaugural: reabrir seu baú de guardados e tirar da penumbra os afetos, as dores e idiossincrasias que moldaram quase 20 anos de amizade. Do início, farto em afinidades e promessas, ao último telefonema, a voz de Caio cambaleante falando da bem-sucedida cirurgia na vesícula.
Missivista contumaz, o escritor sempre insistiu em que a gente não devia permitir que as cartas se tornassem obsoletas, “mesmo que, talvez, já tenham se tornado”. Hoje possivelmente enviaria e-mails com a mesma intensidade. “As cartas eram uma forma de organizar a vida, a dele e a nossa”, comenta Paula no livro, cuja essência é justamente o teor dessas correspondências, às quais ela adicionou depoimentos, muitos depoimentos, de gente que conviveu com o autor. De Antonio Bivar a Adriana Calcanhotto. De José Márcio Penido a Marcos Breda. De Maria Adelaide Amaral a Okky de Souza.
Entre afagos e críticas algumas vezes duras, o livro contempla o escritor soturno que varava madrugadas em busca de inspiração, o jornalista que não atrasava a entrega dos textos, o ser marcadamente gregário, a personalidade instável, vertentes que nem sempre pareciam se integrar. Além disso, o sujeito encrenqueiro, o comentarista mordaz, o homem carente capaz de cenas públicas de ciúme, como a que se deu na redação da Pop.
Para reconstituir essa história, Paula se fez também personagem. E não se limitou a tratar do que é matéria íntima. Em mais de 500 páginas, pavimentou a trajetória do autor com as imagens, as modas, os humores, enfim, com os ícones que constituíram o zeitgeist da geração pós-ditadura. Até porque Caio surfou todas as ondas. Vibrou nas cordas lisérgicas do movimento hippie, gritou contra a burguesia ao lado dos punks, botou broche do PT no peito. Transou quiromancia, tarô, foi a cartomantes. Leu o I Ching, frequentou o Santo Daime, terreiros de Candomblé. E, no esteio desses muitos percursos, personificou, talvez como nenhum outro ficcionista, a mixórdia de inocência e esperança que animava os corações àquela época.
Paula traz revelações interessantes sobre a criação de obras como “Morangos mofados” e “Onde andará Dulce Veiga?”. Exemplo: a obsessão de Caio por desenhar os mapas astrais dos personagens, fixando data, hora e local de nascimento, para depois montar um perfil psicológico adequado e então começar a escrever. Essa paixão pela astrologia seria levada ao paroxismo em “Triângulo das águas”, cujas três novelas se inspiram nos arquétipos de Peixes, Câncer e Escorpião.
O livro cataloga também expressões que ele criou, com algum humor e muito sarcasmo, e que saíram de seu vocabulário pessoal para o repertório de pessoas próximas, como a própria Paula. “Lasanha”, para designar homem bonito; “adendo”, para os “chatos que colam na gente”; “nigrinha”, para gente simples que se quer descolada, mas batalha pesado pela sobrevivência. “Nigrinha não falta a vernissage por causa das empadinhas e não paga impulso de jeito maneira. Só liga da repartição”, fazia graça.
Pra sempre teu, Caio F. ajuda a confirmar que o sonho/temor que o autor mantinha quanto à glória póstuma se efetivou. Mais de 50 teses a seu respeito já foram defendidas ou estão em andamento, no Brasil e no exterior. Suas obras foram relançadas, as peças de teatro estão agrupadas num volume caprichado e as cartas, compiladas em livro. Ele é simplesmente “o Caio”, tal a afinidade com seus escritos, para muitos jovens fãs que mal andavam em 1996. E acaba de ganhar uma biografia: “Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável”, da jornalista Jeanne Callegari.
Em narrativa linear, Jeanne descortina a errante caminhada do autor, desde o menino-cinéfilo da pequena cidade gaúcha de Santiago do Boqueirão; passando pelas temporadas na Europa, onde chegou a morar em casas invadidas; pelos ciclos místicos no sítio de Hilda Hilst; até desembocar no drama da Aids. Há agora uma moda de se falar em “auto-ficção”. O conceito se aplica à perfeição: narrador e personagem, Caio o tempo todo escreveu a si mesmo.
Os livros de Paula e Jeanne têm algo em comum. Ambos espelham a eterna procura que se refletiu em seus contos, suas crônicas, suas cartas, seus romances, numa imbricação em que vida e obra se alimentaram sempre, mutuamente, e que ele sintetizou num texto-desabafo publicado na revista Around: “O bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor. Até as relações de produção, a luta de classes, a ecologia, o jogo pelo poder: tudo, questão de amor, (...) o nome que inventamos para dar nome ao Sol abstrato em torno do qual giram nossos pequeninos egos ofuscados, entontecidos, ritmados”.
A impressão é que, mesmo ante a sensação de fracasso por nunca experimentar um acontecimento externo “que justificasse toda a largueza de dentro”, como lamenta o personagem do conto “A chave a porta”; mesmo sob o sol negro que luziu melancolia sobre a maior parte de seus dias, Caio no fundo sempre soube tirar, das coisas, a beleza possível. Em 1978, talvez sem uma consciência precisa, ele mesmo sugeria isso ao afirmar: “Moro sozinho, minha casa é muito bonita, eu sempre digo que posso ter uma solidão medonha, mas sempre vai haver um vasinho de flores num canto. A gente pode enfeitar a amargura”.
Ainda assim, foi surpreendente o modo como enfrentou o diagnóstico da contaminação pelo HIV, fatal naquela década de 90. Ele pedia apenas para ver o ano de 2000 chegar (não deu), e trocou o natural pavor diante da morte inevitável pela serenidade de quem cultiva rosas no jardim de casa, sorvendo o mel que cada fino grão de segundo pode oferecer. “Aquilo que eu supunha fosse o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia guarda seu fio de luz”, declarou, como se renovasse a certeza de que, quando mofam os morangos, há como se colherem outros, “vivos, vermelhos”. Há sempre como se plantar.
* Esta é a versão sem cortes da resenha publicada hoje no caderno Prosa & Verso (O Globo)
Personagem de si mesmo
Marcelo Moutinho
Corriam os anos 70. A tarde se desenrolava sem sobressaltos na redação da revista Pop quando alguém entregou a Paula Dipp, repórter ainda iniciante, um recado sob forma de bilhete. “Todos já receberam o convite para seu aniversário; por acaso você teria se esquecido de mim ou ainda posso ter esperanças de ser convidado?”, dizia o texto. Assinava Caio Fernando Abreu.
Paula organizara uma "festa de arromba". "Enviei convites, avisei pessoas, e o Caio, justo ele, foi ficando para trás. (...) Não foi esquecimento e sim uma espécie de cautela. Adiei o convite porque ele me intimidava”, conta ela, que acaba de cumprir, com a publicação de Pra sempre teu, Caio F, a promessa feita numa das tantas correspondências trocadas com o escritor após aquele episódio inaugural: reabrir seu baú de guardados e tirar da penumbra os afetos, as dores e idiossincrasias que moldaram quase 20 anos de amizade. Do início, farto em afinidades e promessas, ao último telefonema, a voz de Caio cambaleante falando da bem-sucedida cirurgia na vesícula.
Missivista contumaz, o escritor sempre insistiu em que a gente não devia permitir que as cartas se tornassem obsoletas, “mesmo que, talvez, já tenham se tornado”. Hoje possivelmente enviaria e-mails com a mesma intensidade. “As cartas eram uma forma de organizar a vida, a dele e a nossa”, comenta Paula no livro, cuja essência é justamente o teor dessas correspondências, às quais ela adicionou depoimentos, muitos depoimentos, de gente que conviveu com o autor. De Antonio Bivar a Adriana Calcanhotto. De José Márcio Penido a Marcos Breda. De Maria Adelaide Amaral a Okky de Souza.
Entre afagos e críticas algumas vezes duras, o livro contempla o escritor soturno que varava madrugadas em busca de inspiração, o jornalista que não atrasava a entrega dos textos, o ser marcadamente gregário, a personalidade instável, vertentes que nem sempre pareciam se integrar. Além disso, o sujeito encrenqueiro, o comentarista mordaz, o homem carente capaz de cenas públicas de ciúme, como a que se deu na redação da Pop.
Para reconstituir essa história, Paula se fez também personagem. E não se limitou a tratar do que é matéria íntima. Em mais de 500 páginas, pavimentou a trajetória do autor com as imagens, as modas, os humores, enfim, com os ícones que constituíram o zeitgeist da geração pós-ditadura. Até porque Caio surfou todas as ondas. Vibrou nas cordas lisérgicas do movimento hippie, gritou contra a burguesia ao lado dos punks, botou broche do PT no peito. Transou quiromancia, tarô, foi a cartomantes. Leu o I Ching, frequentou o Santo Daime, terreiros de Candomblé. E, no esteio desses muitos percursos, personificou, talvez como nenhum outro ficcionista, a mixórdia de inocência e esperança que animava os corações àquela época.
Paula traz revelações interessantes sobre a criação de obras como “Morangos mofados” e “Onde andará Dulce Veiga?”. Exemplo: a obsessão de Caio por desenhar os mapas astrais dos personagens, fixando data, hora e local de nascimento, para depois montar um perfil psicológico adequado e então começar a escrever. Essa paixão pela astrologia seria levada ao paroxismo em “Triângulo das águas”, cujas três novelas se inspiram nos arquétipos de Peixes, Câncer e Escorpião.
O livro cataloga também expressões que ele criou, com algum humor e muito sarcasmo, e que saíram de seu vocabulário pessoal para o repertório de pessoas próximas, como a própria Paula. “Lasanha”, para designar homem bonito; “adendo”, para os “chatos que colam na gente”; “nigrinha”, para gente simples que se quer descolada, mas batalha pesado pela sobrevivência. “Nigrinha não falta a vernissage por causa das empadinhas e não paga impulso de jeito maneira. Só liga da repartição”, fazia graça.
Pra sempre teu, Caio F. ajuda a confirmar que o sonho/temor que o autor mantinha quanto à glória póstuma se efetivou. Mais de 50 teses a seu respeito já foram defendidas ou estão em andamento, no Brasil e no exterior. Suas obras foram relançadas, as peças de teatro estão agrupadas num volume caprichado e as cartas, compiladas em livro. Ele é simplesmente “o Caio”, tal a afinidade com seus escritos, para muitos jovens fãs que mal andavam em 1996. E acaba de ganhar uma biografia: “Caio Fernando Abreu: inventário de um escritor irremediável”, da jornalista Jeanne Callegari.
Em narrativa linear, Jeanne descortina a errante caminhada do autor, desde o menino-cinéfilo da pequena cidade gaúcha de Santiago do Boqueirão; passando pelas temporadas na Europa, onde chegou a morar em casas invadidas; pelos ciclos místicos no sítio de Hilda Hilst; até desembocar no drama da Aids. Há agora uma moda de se falar em “auto-ficção”. O conceito se aplica à perfeição: narrador e personagem, Caio o tempo todo escreveu a si mesmo.
Os livros de Paula e Jeanne têm algo em comum. Ambos espelham a eterna procura que se refletiu em seus contos, suas crônicas, suas cartas, seus romances, numa imbricação em que vida e obra se alimentaram sempre, mutuamente, e que ele sintetizou num texto-desabafo publicado na revista Around: “O bicho homem não faz outra coisa a não ser pensar no amor. Até as relações de produção, a luta de classes, a ecologia, o jogo pelo poder: tudo, questão de amor, (...) o nome que inventamos para dar nome ao Sol abstrato em torno do qual giram nossos pequeninos egos ofuscados, entontecidos, ritmados”.
A impressão é que, mesmo ante a sensação de fracasso por nunca experimentar um acontecimento externo “que justificasse toda a largueza de dentro”, como lamenta o personagem do conto “A chave a porta”; mesmo sob o sol negro que luziu melancolia sobre a maior parte de seus dias, Caio no fundo sempre soube tirar, das coisas, a beleza possível. Em 1978, talvez sem uma consciência precisa, ele mesmo sugeria isso ao afirmar: “Moro sozinho, minha casa é muito bonita, eu sempre digo que posso ter uma solidão medonha, mas sempre vai haver um vasinho de flores num canto. A gente pode enfeitar a amargura”.
Ainda assim, foi surpreendente o modo como enfrentou o diagnóstico da contaminação pelo HIV, fatal naquela década de 90. Ele pedia apenas para ver o ano de 2000 chegar (não deu), e trocou o natural pavor diante da morte inevitável pela serenidade de quem cultiva rosas no jardim de casa, sorvendo o mel que cada fino grão de segundo pode oferecer. “Aquilo que eu supunha fosse o caminho do inferno está juncado de anjos. Aquilo que suja treva parecia guarda seu fio de luz”, declarou, como se renovasse a certeza de que, quando mofam os morangos, há como se colherem outros, “vivos, vermelhos”. Há sempre como se plantar.
* Esta é a versão sem cortes da resenha publicada hoje no caderno Prosa & Verso (O Globo)
Um comentário:
Eu li Morangos... indicado por TT, assim que foi lançado. Caio era de uma nova safra de bons escritores.Abç
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