segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Herivelto no toca-fitas

Até hoje me lembro do repertório que meu pai guardava em fitas cassete e formava, ao lado dos programas Haroldo de Andrade e A cidade contra o crime, a trilha sonora de nossas viagens Barra/Madureira. Como morávamos longe, ele me levava para o colégio, que ficava em Piedade, antes de rumar para a loja da Avenida Edgar Romero.
As fitas juntavam sambistas, como Roberto Ribeiro, João Nogueira e Beth Carvalho, a cantores do que ele chamava de “seresta”. Nelson Gonçalves, Altemar Dutra, Sílvio Caldas, cujas músicas estavam sempre presentes nos eventos lá de casa. Na minha memória, essas canções e as transmissões em AM se empastelam na imagem do pai dirigindo seu Corcel 2.
Odiava algumas daquelas músicas. Como Fica comigo esta noite, com seus pronomes em segunda pessoa. Ou a que falava de uma normalista e eu achava de uma cafonice sem par — na minha escola, havia o curso Normal e aquelas meninas me pareciam fora de tempo e lugar.
De outras, gostava. Matriz ou filial, cujo tema principal na verdade talvez ainda não entendesse bem. Esses moços, que antecipava a melancolia funda que sempre me acompanhou. Sentimental demais, cuja lembrança se confunde com as matérias de TV sobre a morte de Altemar Dutra.
Nesse grupo, no entanto, havia duas canções que se destacavam particularmente. As duas, eu viria saber muitos anos depois, compostas pela mesma pessoa: Herivelto Martins. Refiro-me a Caminhemos e a Segredo.
Sou capaz de redesenhar perfeitamente a manhã em que o pai mencionou pela primeira vez o nome de Herivelto dentro do carro. O toca-fitas tocava Ave Maria no morro, e ele fez um elogio entusiasmado. Talvez ali eu tenha começado a fazer relações entre aquelas duas músicas que me tocavam de forma tão particular e a assinatura do compositor.
Todas essas recordações vieram à tona há algumas semanas, quando revi o DVD do programa Ensaio, da TV Cultura, no qual Herivelto é o entrevistado. No programa, ele fala muito de suas canções e pouco da atribuladíssima vida ao lado de (e, depois, em confronto com) Dalva de Oliveira.
Um dos pontos altos do DVD é o dueto entre Herivelto e o filho, Pery Ribeiro, que parece bastante emocionado na cena. Eu olhava para aqueles dois homens cantando lado a lado e imaginava como as coisas foram difíceis para Pery. Ser a ponta mais frágil de uma briga pública entre os pais, artistas de sucesso. Viver a queda brusca do glamour à decadência, ainda que como personagem periférico.
Então fui ler o livro que ele escreveu, com a ajuda da mulher, Ana Duarte, tratando dessa história. Minhas duas estrelas mostra que qualquer coisa que se possa imaginar de terrível sobre a situação de Pery é pouco, quase nada. O drama de que ele trata é barra pesada, muito pesada.
Pery narra a trajetória de Dalva e Herivelto desde os primeiros momentos, na Dupla Preto e Branco + Dalva de Oliveira (que, batizado pelo comunicador César Ladeira, da Radio Mayrink Veiga, viria a se transformar no bem sucedido Trio de Ouro), passando pela belicosa separação, cantada em verso (nas canções) e em prosa (no Diário da Noite) por Herivelto, com a ajuda do jornalista David Nasser, e pelos arrependimentos mútuos, até chegar à morte dos dois protagonistas.
O livro traz revelações curiosas, como a recusa de Benedito Lacerda em entrar na parceria de Ave Maria no morro, após ouvir de Herivelto o primeiro esboço de letra. “Não entro nem a pau. Isso é música de igreja”, disse Lacerda. Ou o xixi que Pery, então um garoto, fez na cama de Carmen Miranda, para satisfação da cantora. Carmen cismara que só fecharia contrato com um empresário norte-americano se alguma criança molhasse seus lençóis.
Mas a gênese é mesmo o coração de um filho a se abrir, página a página, com relação a pais que pelas circunstâncias poderia simplesmente odiar.
Não há dicotomias preto/branco, certo/errado. Pery não esconde as dores que sentiu (e que, de certo modo, carregou consigo até a morte), mas é sábio ao reconhecer que o tributo de um filho a quem o concebeu passa por cortes outros que não a perfeita organização da infância. E vislumbra outro espólio, enviesado, fruto da experiência de quem testemunhou a tragédia de não se saber desculpar: a capacidade do perdão.
Ao fim conclui que, se os caminhos dessa vida comprida estrada alongada são tão estranhos, é alvissareiro saber que algo de bom sempre fica. Algo, acrescento, capaz de nos remeter ao de bom que passou. Como as frescas manhãs, ao lado de meu pai, ouvindo Herivelto em seu velho Corcel 2.

Marcelo Moutinho

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