quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Montale visita Hemingway


DUAS PROSAS VENEZIANAS
Eugenio Montale
I
Das janelas se viam as datilógrafas.
Embaixo, o beco, cheiro de camarão frito,
o bafo nauseabundo do canal.
Belo negócio em Veneza
cair numa tal paisagem e ela
vinda de longe. Ela que amava somente
Gesualdo Bach e Mozart e eu o horrível
repertório operístico com uma ligeira preferência
pelo pior. Depois, para complicar as coisas
o relógio que marca as cinco e são quatro,
a saída intempestiva, San Marco, o Florian deserto,
o cais dos Schiavoni, a tratoria Paganelli
recomendada por algum pintor toscano unha-de-fome,
dois quartos nem mesmo comunicantes e o dia
seguinte ver-te sumir sem mesmo
te dignares dar uma olhadela no meu Ranzoni.
Perguntava-me quem andava no mundo da lua,
eu ela ou os dois, cada um nos seus trilhos
não paralelos, mas no sentido inverso. E dizer que havíamos
inventado maravilhosas quimeras sobre as rampas
que levam do Oltrarno à grande praça.
Mas agora lá entre os pombos,
fotógrafos ambulantes sob um calor bestial,
com o peso do catálogo da bienal
nunca consultado e do qual não é fácil livrar-se.
Regressamos no vaporeto transpondo migalhas de pão,
comprando keepsakes cartões-postais e óculos escuros nos camelôs.
Era, parece-me, em 34, demasiado jovens ou demasiado estranhos
para uma cidade que requer turistas e amantes anciãos.
II
O Farfarella gárrulo porteiro fiel cumpridor de ordens
disse que era proibido perturbar
o homem das corridas de touro e dos safáris.
Insisto para que tente, sou um amigo de Pound
(exagerava um pouco) e mereço um tratamento
especial. Quem sabe se… O outro levanta o receptor,
fala escuta murmura e eis que
o urso Hemingway morde a isca.
Está ainda na cama, furam o pelame
apenas os olhos e as eczemas.
Duas ou três garrafas vazias de Merlot,
vanguarda do grosso que virá.
Embaixo no restaurante já estão todos à mesa.
Falamos não dele mas da nossa
querida Adrienne Monnier, da rue de l’Odeon,
de Sylvia Beach, de Larbard, dos rugentes anos trinta
e dos zurrantes cinquenta. Paris Londres uma pocilga
New York stinking, pestífera. Sem caça em charcos,
sem patos selvagens, sem raparigas
e nem sequer a ideia de um tal livro.
Compilamos o elenco de amigos comuns dos quais
ignoro o nome. Tudo é rotten, podre.
Quase chorando me ordena não enviar-lhe nunca gente
da minha laia, sobretudo se inteligentes.
Depois se levanta, enrola-se num roupão
e me põe porta afora com um abraço.
Viveu ainda alguns anos e tendo morrido duas vezes
teve o tempo de ler seus necrológios.

Em Poesias. Record, 1996. Trad.: Geraldo Holanda Cavalcanti.

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