sábado, 2 de janeiro de 2010

Memórias da emoção


Caio Fernando Abreu definia-se como um autor que corria por fora, distante do pequeno mundo onde os intelectuais das letras brasileiras habitam. Chegou mesmo a afirmar que a literatura brasileira era feita de telefonemas oportunos, de cartão e tal, e que, excetuando-se Heloísa Buarque de Hollanda e Flora Sussekind, a crítica brasileira sofria da incapacidade de absorção de sua literatura. O interessante é que, para fazer todas estas acusações, Caio vivenciou o ambiente literário por dentro. Enquanto viveu, trabalhou como jornalista nas principais revistas do País, colaborou em inúmeros jornais, conheceu autores importantes, ganhou prêmios, ingressou em diversos círculos, teve portas de editoras abertas e fechadas, viajou, voltou, foi traduzido e publicado no exterior.

Foi um grande realizador, transitando da crônica jornalística ao drama com fluidez, apesar da compreensão de que o escritor brasileiro fosse “um escritor de fim de semana, feriados e horas vagas”. Reclamou da falta de profissionalismo para a profissão, de ter de ocupar-se com o jornalismo para sobreviver; ainda mais um jornalismo tão subserviente, “canalha, vendendo comportamentos, manipulando a cabeça das pessoas”, quando sentia que sua vocação era a criação, a tentativa de escrever, aproximar-se de alguma coisa que, imaginava, seria a literatura.

Quem nunca leu nada de Caio Fernando Abreu não sabe o que está perdendo. Mas, se não leu, certamente já ouviu falar dele. Eu ouvi pela primeira vez em 1982, quando li sua obra mais emblemática, Morangos Mofados.

Agora, pegando a edição do livro lançada pela Agir e lendo o segundo conto Os Sobreviventes fiquei presa numa frase que é a cara da chamada geração perdida: “(...) ai que gracinha nossos livrinhos de Marx, depois Marcuse, depois Reich, depois Castañeda, depois Laing embaixo do braço, aqueles sonhos colonizados nas cabecinhas idiotas, bolsas na Sorbonne, chás com Simone e Jean-Paul nos 50, em Paris; 60 em Londres ouvindo here comes the sun here comes the sun, little darling; 70 em Nova York dançando disco-music no Studio 54; 80, a gente aqui, mastigando essa coisa porca sem conseguir engolir nem cuspir fora nem esquecer esse gosto azedo na boca”.

Relendo Morangos Mofados me descobri sublinhando frases, trechos, anotando idéias recorrentes a partir da releitura. E, com o antigo exemplar na mão, fiz um contraponto dos meus momentos atuais com os dos anos 80. Minhas anotações de então funcionam atualmente como sentinelas da memória e das emoções que a releitura do livro me provoca. E descobri que, assim como nos anos 80, Caio e seus livros ainda constituem meu repertório de referências para pensar em minha identidade. Assim como nos anos 80, o estilo de Caio Fernando Abreu ainda vai direto à medula, ao centro nervoso. O Mofo, em nove contos, ainda me deprime... E Os Morangos, em oito contos, dão um fiapo de esperança.

O primeiro conto, Diálogo, é uma conversa entre duas personagens, A e B, na qual uma pergunta insinua um comprometimento que tanto pode ser ideológico quanto afetivo, ficando pautados o medo e a insegurança de ser denunciado ou ser amado, sem abdicar do desejo de ver-se como um igual e sem a coragem de assumir-se como tal. Estes vazios prenunciados no conto de abertura, o dito e o não-dito, marcarão as personagens dos contos seguintes.

Um dos melhores contos do livro é Além do Ponto. Nele é narrada a incursão de um homem rumo ao seu amor ou ao encontro de alguém que ele julga ser o seu amor, expondo toda a sua fragilidade e o desejo de proteção primordial de todos nós, desde que deixamos o ventre materno. A beleza deste conto é comovedora. A linguagem toma forma do fluxo de pensamento e não sabemos se a personagem é louca ou incrivelmente sincera na sua consciência do ser.

E, finalmente no conto que dá título ao livro, Caio sinaliza uma esperança: os morangos estão mofados, mas ainda assim guardam o frescor de sua essência. É como diz o próprio Caio no livro, é como se o personagem se rebelasse, libertando-se do autor e decidindo o final da obra à revelia dele.

Morangos Mofados atravessou o tempo contingente de sua criação para perpetuar-se nas dobras da memória, fertilizando o pensamento, estimulando sucessivas releituras, ato criativo de resignação da obra original. E desta forma tornou-se um ícone, um objeto da história e da reflexão do autor. O discurso de Morangos Mofados ainda me agrada e descubro, relendo a obra, mais um motivo para reler Nietzsche sem perder a esperança nos outros.

Tacilda Aquino - Goiânia.

http://www.overmundo.com.br/overblog/memorias-da-emocao

Um comentário:

Nivaldete disse...

Muito bom o texto. E termina com uma referência Nietzsche... Só uma observação sobre "sem perder a esperança nos outros". Nietzsche escreveu com esperança nos outros: a esperança de o ser humano ultrapassar a si mesmo, os velhos valores, a moral de rebanho, para se atingir como um ser singular, criador, não-hipnotizado pelas representações sociais, pelas opiniões... Livre, enfim...
Valeu.