domingo, 7 de fevereiro de 2010

O QUE PERMANECE DEPOIS DA QUEDA


Texto que Bortolotto escreveu para a revista "bravo" e foi publicado na íntegra no seu blog "atire no pianista".


O QUE PERMANECE DEPOIS DA QUEDA

Tenho ficado quieto, sozinho. Minha filha possui o dom da invisibilidade. Mesmo dentro de uma kitchenete somos dois exilados, respeitando nossos vistos de permanência. Engraçado como cada objeto nessa kitchenete me remete a algum momento de antes da queda que é como eu chamo toda a minha história antes do incidente (pra quem não sabe, levei três tiros num assalto e quebrei meu braço esquerdo quando caí com o corpo por cima do braço e agora tô com uma placa de titânio no tal braço e uma dúzia de parafusos semi-assustadores, isso se eu fosse um sujeito um pouco mais impressionável). Eu olho a capa de um LP e lembro que ouvia determinada música num momento que estava particularmente feliz. Olho o pingüim do lado do boneco do Mutley e me lembro que o roubei de uma festa onde eu tava muito bêbado. Quando acordei no dia seguinte, vi aquele pingüim olhando pra mim de maneira amistosa e pensei: “Sempre quis ter um pingüim desses. De onde ele veio?” Vejo o flyer da peça “A Noite mais fria do ano” e me lembro dos dias amanhecendo na Praia de Copacabana ao lado da minha amiga Paulinha Cohen e dela completamente bêbada pedindo para que algum atleta matutino acendesse o seu cigarro. Quase repito mentalmente o clichê de que era feliz e não sabia. Naquele tempo, meus dedos no teclado do laptop acompanhavam freneticamente meu raciocínio vertiginoso. Hoje minhas costas doem e me avisam que já é um outro tempo. Já é “Depois da queda” e não há como voltar no tempo. Estou ilhado na minha kitchenete e tudo é silencioso demais, quase um coma, quase um túmulo. Mas minha filha liga a TV e felizmente esse silencio desgraçadamente mortal é quebrado ruidosamente. Os amigos ligam e insistem em dizer que o pior já passou. Ok, então diz isso pras minhas costas que não param de doer e que não deixam que eu me concentre pra escrever esse texto. Dia desses voltei à Praça Roosevelt, o lugar da queda. Voltei no período da tarde para tirar algumas fotos de divulgação do novo espetáculo (“Música para ninar dinossauros”). Passei batido pelo local exato da queda e nem foi intencional. Simplesmente tenho outras preocupações. E é reconfortante ter outras preocupações. Me perguntam se eu não tenho raiva do sujeito que atirou em mim. Pô, é obvio que eu tenho. Tão me tirando de Jesus Misericordioso? Sempre que eu penso nele, eu fico com muita raiva e desejo os sete cavaleiros do apocalipse e toda a sétima cavalaria do Coronel Custer no pé dele. É que eu não fico perdendo o meu tempo pensando nesse canalha. Prefiro ocupar o meu tempo com algo mais edificante como os métodos de tortura do personagem Dexter no seriado de TV. Me podem ser úteis no futuro. Por isso passei batido pelo local da queda e fui cuidar do meu trabalho, ou seja, da minha vida, já que eu nunca consegui dissociar um do outro. E agora me entrego pro trabalho, apesar da dor e de todas as limitações. Dia 18 estréio no Festival de Teatro de Curitiba (Sesc da Esquina) meu novo espetáculo totalmente gestado num momento de renascimento e dor quase que constante. Entendam que eu insisto nisso porque no momento que estou escrevendo este texto, minhas costas imploram por uma massagista nórdica com mãos santificadas. “Música para ninar dinossauros” é meu cartão de boas vindas, uma espécie de prefácio para o restante da minha obra, ou seja, a obra que por pouco não foi. Os médicos dizem que se eu demorasse mais dez minutos pra ancorar meu navio fantasma na Santa Casa (que no caso era um corsinha da polícia comigo no porta-malas e a Fernanda e o Brum me amparando), hoje estaria bebendo meu Bourbon em algum sagrado boteco do céu. Sim, porque podem ter certeza que eu vou pra lá. Sou um cara bacana. Meia dúzia de amigos facilmente corrompíveis podem atestar isso. Então fica assim: “Música para ninar dinossauros” é meu epitáfio que não deu certo. Isso quer dizer que apesar da linguagem grosseira que meus personagens costumam usar sem nenhuma espécie de economia e que costuma irritar meus críticos mais pudicos, toda a cruel poesia está lá estampada na monumental melancolia dos meus personagens de meia idade que são de uma geração que nasceram numa espécie de limbo e que demoraram demais pra colocar a cabeça pra fora do casco da tartaruga e perguntar: “Afinal que porra tá acontecendo?”

Convidei dois grandes amigos meus para entrarem comigo nesse balde que deve descer ao fundo do poço e não voltar: Lourenço Mutarelli e Paulo de Tharso. Difícil imaginar o espetáculo sem os dois como companheiros nessa “highway to hell”. Convidei também três jovens e ótimos atores que terão a ingrata tarefa de representar os nossos três personagens 20 anos antes e mais seis lindas e ótimas atrizes porque ninguém merece ficar uma hora e 20 minutos olhando pra fuça de seis marmanjos mal ajambrados. O que eu quero dizer é que apesar de todas as dores, todas as limitações e todo o cinismo que continua incompreendido, é possível se divertir, se emocionar e ainda alimentar nossa necessária cota de raiva diária. Eu dou as boas vindas à minha nova vida. Espero que alguém apareça sereno como numa abertura de um filme do Sérgio Leone e brinde comigo. Pela espuma que tá caindo, meu copo tá cheio de cerveja. E o seu?



- Mário Bortolotto –



47 anos ou sei lá, 47 dias essa noite. Depois da queda.



Muita gente me pergunta o que mais me incomoda nesse período de recuperação (?) Respondo que entendo que as pessoas costumam ser sempre muito bem intencionadas, mas se tem uma coisa que é foda é todo mundo que chega e pergunta automáticamente: "Tudo bem?" Não é por nada não, mas se tivesse tudo bem, meu braço não tava numa tipóia, né? Também não suporto os inevitáveis "o pior já passou" e "tem que ter paciência". E além das dores todas e o lance dos dedos da minha mão esquerda estarem sem movimentos, ainda rolam as crises de depressão. Sim, eu tenho crises de depressão, geralmente quando estou sozinho na quitinete. E eu gosto muito de ficar sozinho, porque até crises de depressão a gente merece ter em paz.


Escrito por Mário Bortolotto às 02h16

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