sexta-feira, 29 de maio de 2009

As horas felizes de Lygia


Para o escritor, jornalista e crítico José Castello, colunista do Prosa & Verso, os livros de Lygia Fagundes Telles revelam uma "procura intensa da felicidade por entre as fendas de dor". No texto abaixo, publicado no Prosa & Verso deste sábado, Castello desvenda um pouco mais da obra de Lygia falando de seus livros e lembrando histórias da escritora, que também ajudam a entender o fio da meada de sua literatura. Lygia Fagundes Telles costuma recordar uma frase que leu no mostrador de um relógio de praça, em Paris: “Horas non numero nisi serenas” (“Conto somente as horas felizes”). A máxima estabelece uma difícil noção de felicidade: a que carrega em seu fundo a infelicidade. O importante, sugere, é, mesmo sem negá-la, não se submeter à infelicidade. Saltar sobre elas, e fixar-se nas horas felizes. Momentos que, para Lygia, tomam corpo na literatura.
Agora que sua obra recebe uma edição de luxo com o selo da Companhia das Letras — o lançamento no Rio será na próxima quinta-feira, dia 28, na Academia Brasileira de Letras — a frase volta a se oferecer como guia para seus leitores. Seus livros são uma procura intensa da felicidade por entre as fendas de dor. Nessa luta, o escritor conta com a sensibilidade. Como escreve Ananta Medrado, personagem do romance “As horas nuas”, de 1989: “Eu me aproximo das pessoas como um ladrão que se aproxima de um cofre, os dedos limados, aguçados, para descobrir, tateantes, o segredo.” Para Lygia, o escritor precisa cultivar três atributos: a insatisfação, a percepção e a intuição. Dito de outro modo: nenhum escritor vive sem sua fome, seu faro e seus arrepios. Compara os escritores aos gatos, animais pelos quais é apaixonada. Não há outra maneira de avançar por entre os escombros da realidade: pisando levemente. A própria vida de Lygia está cheia de momentos em que a invenção e a alegria brotaram da dor.
Ano de 1971, plena ditadura militar. Lygia rascunha as primeiras páginas de “As meninas” — um dos três primeiros livros agora reeditados. Começa seus relatos tateando no escuro; a luz vem de onde menos ela espera e pode, até, vir das trevas. O porteiro a interrompe trazendo a correspondência. Entre as cartas, um panfleto anônimo. Impresso em um mimeógrafo, com rasuras e borrões, ele relata a tortura de um preso político.
Trêmula, Lygia o mostra ao marido, Paulo Emílio Salles Gomes. “O que faço com isso?”, pergunta. “Aproveite em seu romance”, ele sugere. “É arriscado, mas acho que vale o risco”. Nesse momento nasceu Lia, a “subversiva”, que, ao lado da “burguesa” Lorena e da “drogada” Ana Clara, protagonizam “As meninas”. Moças de seu tempo, sempre em combate contra os limites estreitos da realidade. Surgia, em particular, a dolorosa narrativa de uma tortura, que se estende por duas páginas do romance (148 e 149). Depois de redigir a cena, Lygia a mostrou a Paulo. “Está ótimo. Perigoso, mas ótimo”, ele disse. Vendo o terror estampado em seus olhos, procurou tranquilizá-la: “Caso você venha a ser interrogada, dirá simplesmente que não pode responder pelas suas personagens, que são livres, completamente livres”.
Dois anos depois, a crítica recebeu “As meninas” com grande entusiasmo. As posições se inverteram: Lygia não cabia em si de alegria, mas Paulo, agora, andava preocupado. Um dia, porém, chegou rindo em casa. Tinha um amigo que era próximo aos homens da censura política. Através dele, soube que o censor encarregado de ler “As meninas” não conseguiu passar da página 40. “Ele achou tudo muito chato”. A preguiça intelectual o fez largar o livro 108 páginas antes daquele que é, talvez, seu momento mais forte. “Você escapou!”
Uma apreciação sutil veio, pouco depois, do poeta Carlos Drummond de Andrade: “Que matéria viva e lancinante”, escreveu. Em “As meninas”, como em suas outras narrativas, Lygia não se limita a narrar a realidade brutal. Frequenta, também, zonas escuras que a carregam para além das circunstâncias. Aos que lhe perguntam sobre o que busca quando escreve, costuma responder com uma ideia do filósofo Henri Bergson: “Nunca saberemos até que ponto vamos atingir, se não nos pusermos imediatamente a caminho”. Se o escritor é um peregrino da realidade, nos mostra Lygia, ele é também alguém que não dispõe de uma bússola e que só conta consigo mesmo. Ou, com aquilo que Bergson chamava de intuição, força inexplicável que nos carrega para o coração das coisas. A literatura se transforma, assim, em uma procura. Segue os versos célebres de Carlos Drummond: “Penetra surdamente no reino das palavras/ Lá estão os poemas que esperam ser escritos”. Lygia Fagundes Telles é uma leitora apaixonada de Drummond. Agarra-se a momentos assim: “Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”. Lygia sempre leu mais poesia que prosa. É não só uma escritora intimista, mas uma miniaturista, que se apega às miudezas do humano — pequenas partes que, uma vez retiradas, porém, tornam o humano, desumano. A literatura é um instrumento para esmiuçar o mundo. Esse gosto pelo menor, muitas vezes, é entendido como perversidade. Nada a faz, porém, perder a elegância. Em certo jantar, em São Paulo, ouviu de Jorge Luis Borges uma revelação. “Tenho um amigo que morreu quando deixou de sonhar”. Gosta de repetir a frase espantosa, mas sempre esconde o nome do amigo misterioso de Borges. “No exato momento em que Borges mencionou seu nome, alguém deixou cair uma taça, e não consegui ouvir”, explica.
O nome perdido do amigo de Borges é o ponto zero — ponto morto — sobre a qual ela tece seus escritos. Voltemos a “As meninas”: romance solar, forte retrato de uma época. Muito bem. Mas quando o leitor resolve procurar em qual das três protagonistas Lygia se esconde, nada acha. Lygia não é nenhuma delas, mas um rombo — um zero — que entre elas se abre. Zero que sustenta a escrita. O zero é um número que não tem nuances; é um número desumano ou, com outras palavras, é um ralo pelo qual o humano escorre. É sobre esse abismo que Lygia escreve.
Uma de suas personagens, Lorena, resume a visão de mundo dominante em sua literatura: “No fundo somos todos um pouco loucos”. Isto é: não somos intercambiáveis. Seus personagens não escapam da perplexidade e, por isso, parecem estranhos. Lygia trabalha em um mundo intermediado pelas sombras e pelos meios tons, em que a nitidez é uma mentira. Nada mais opressor que uma imagem nítida; elas estão banidas de seus livros. Era nisso, por certo, que o crítico Otto Maria Carpeaux pensava quando falou da “delicadeza atmosférica” de Lygia.
Quando visitou São Paulo, no início dos anos 50, o escritor William Faulkner passou a maior parte do tempo alcoolizado. “Ele nunca sabia onde estava, olhava para nós como se estivesse submergindo”, Lygia — leitora apaixonada de Faulkner — descreveu depois. Certa tarde, ela o acompanhou a uma visita ao Butantã. Depois de cumprimentá-la, Faulkner, muito sereno, perguntou: “Isso aqui é Chicago?” Com a placidez dos monges, Lygia respondeu: “Não, Sr. Faulkner, estamos em São Paulo, Brasil”. Recorda ainda hoje seu olhar de espanto. Pouco depois, Faulkner se virou e disse: “Você tem lindos olhos”. Sempre irônico, o escritor Mário da Silva Brito, que os acompanhava, resmungou nos ouvidos da amiga: “Não esqueça de colocar esse comentário na orelha de seu próximo livro. É o único comentário que Faulkner conseguiu fazer a respeito da literatura brasileira”. Lygia riu, mas estava em outra sintonia. Aquele instável Faulkner confirmava toda a grandeza que dele se esperava. As zonas de mistério são, por definição, o cenário de suas narrativas. Não cede, po$ém, à sedução do fantástico, ou do espantoso. Para Lygia, o mistério — como em Julio Cortázar, com quem tem um vínculo secreto — se esconde nas pequenas coisas, nas insignificâncias. O surpreendente não é que existam extraterrestres, ou vampiros. O surpreendente, como já disse, é que, na Pérsia, todos os gatos sejam persas.
Escreve por impulsos — sente-se impelida a trilhar certa direção e simplesmente avança. A intuição a governa. Certa vez, durante um voo da Cidade do México a Paris, o avião enfrentou uma fortíssima tempestade. Naquele avião que sacolejava, ela se sentiu como se estivesse escrevendo. “Não sei o que há lá fora. Não sei o que vai acontecer. Eu me entrego”, resumiu depois. Não escreve para chegar a esse, ou àquele lugar. Gosta de uma reflexão de Cortázar: “Um livro é um gato. Você o joga para o alto e do jeito que ele cair, caiu”.
(http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/)

Um comentário:

Nivaldete disse...

Valeu, TT! Você tem faro pra achar coisas boas, estimulantes... Vou abrir esse post outras vezes, com certeza.